2009
São cento e cinquenta e oito passos
entre o ponto de ônibus e minha casa, mas é possível esticar esse número
para cento e oitenta se você não estiver com pressa, ou, por exemplo,
se estiver usando sapatos de plataforma. Ou se estiver com os sapatos
que você comprou num brechó e que possuem borboletas nos dedos e
nunca ficam bem presos nos calcanhares, o que explica por que custaram a
pechincha de uma libra e noventa e nove centavos. Virei a esquina na
nossa rua (sessenta e oito passos) e logo pude ver a casa – uma casa
geminada de quatro quartos numa sequência de outras casas geminadas de
três e quatro quartos. O carro de papai estava do lado de fora, o que
significava que ele ainda não tinha ido para o trabalho.
Às minhas costas, o sol se punha
atrás do castelo Stortfold, sua sombra escura escorrendo pela colina
feito cera derretida para me engolir. Quando eu era pequena,
costumávamos fazer com que nossas sombras alongadas participassem de
tiroteios, nossa rua era o O.K. Corral. Em outro dia, eu poderia
contar tudo o que vivi nessa rua: onde papai me ensinou a andar de
bicicleta sem rodinhas; onde a Sra. Doherty, com sua peruca torta, fazia
bolos galeses para nós; onde Treena, aos onze anos, prendeu a mão numa
cerca viva e perturbou um ninho de vespas nos fazendo correr aos gritos
por todo o trajeto até o castelo.
O triciclo de Thomas estava jogado
no meio do caminho e, ao fechar o portão atrás de mim, eu o arrastei até
a entrada e abri a porta. O calor me atingiu com a força de um air bag.
Mamãe é torturada pelo frio e mantém a calefação ligada o ano inteiro.
Papai está sempre abrindo janelas, reclamando que ela vai nos levar à
falência. Ele diz que nossa conta de luz é maior que o PIB de um pequeno
país africano.
— É você, querida?
— Sou eu. — Pendurei minha jaqueta no gancho, lutando para conseguir um espaço no meio das outras.
— Eu quem? Lou? Treena?
— Lou.
Da porta da sala, olhei ao redor.
Papai estava de bruços no sofá, o braço enfiado entre as almofadas, como
se elas estivessem tentando engoli-lo. Thomas, meu sobrinho de cinco
anos, o observava atentamente logo atrás.
— Lego. — Papai virou-se para mim, o
rosto vermelho devido ao esforço. — Não sei por que eles fazem as
malditas peças tão pequenas. Você viu o braço esquerdo de Obi-Wan
Kenobi?
— Estava em cima do aparelho de DVD. Acho que ele trocou o braço do Obi pelo do Indiana Jones.
— Bom, aparentemente Obi não pode ter braços bege agora. Temos de achar os braços pretos.
— Eu não me preocuparia. Darth Vader
não arranca o braço dele no segundo episódio? — Apontei para minha
bochecha para Thomas dar um beijo. — Cadê a mamãe?
— No andar de cima. Veja o que eu achei! Uma moeda!
Olhei para cima bem a tempo de
escutar o conhecido ranger da tábua de passar. Josie Clark, minha mãe,
jamais se senta. É uma questão de honra. Era conhecida por ficar numa
escada do lado de fora pintando as janelas, parando de vez em quando
para acenar, enquanto o restante de nós jantava rosbife.
— Você pode achar o bendito braço
para mim? Thomas está me obrigando a procurar por isso há meia hora e
preciso me arrumar para o trabalho.
— Você está no turno da noite?
— Sim. São cinco e meia.
Dei uma olhada no relógio.
— Na verdade, são quatro e meia.
Ele retirou o braço de baixo das almofadas e estreitou os olhos para conferir o relógio de pulso.
— E o que você está fazendo em casa tão cedo?
Balancei a cabeça vagamente, como se não tivesse entendido a pergunta direito, e entrei na cozinha.
Vovô estava sentado na cadeira ao lado da janela, completando um sudoku.
O assistente social nos tinha dito que o jogo seria bom para melhorar a
concentração dele, que ajudaria nisso depois dos derrames. Desconfio de
que eu era a única a perceber que ele apenas preenchia os quadradinhos
com o primeiro número que lhe viesse à cabeça.
— Oi, vovô.
Ele me olhou e sorriu.
— Quer uma xícara de chá?
Ele balançou a cabeça e abriu um pouco a boca.
— Uma bebida gelada?
Ele anuiu.
Abri a porta da geladeira.
— Não tem suco de maçã. — Disse, e então me lembrei de que suco de maçã era muito caro. — Quer um pouco de Ribena?
Ele balançou a cabeça.
— Água?
Ele fez que sim e murmurou alguma coisa que poderia ser um obrigado quando lhe entreguei o copo.
Minha mãe entrou na cozinha carregando um enorme cesto de roupas lavadas e cuidadosamente dobradas.
— São suas? — perguntou, exibindo ostensivamente um par de meias.
— São de Treena, eu acho.
— Também pensei que fossem dela. Cor
estranha. Devem ter ficado junto com o pijama cor de ameixa do seu pai.
Você chegou cedo. Vai a algum lugar?
— Não. — Enchi um copo com água da torneira e bebi.
— Patrick vem aqui mais tarde? Ele ligou para cá de manhã. Você desligou seu celular?
— Hum.
— Ele falou que está tentando marcar
as férias de vocês. Seu pai disse que ele viu alguma coisa sobre isso
na TV. Vocês querem ir para onde? Ipsos? Calipso?
— Skiathos.
— É, isso. Você precisa verificar o
hotel com muito cuidado. Faça isso pela internet. Ele e seu pai viram
algo no noticiário da hora do almoço. Parece que estão fazendo uns
sites, oferecendo pacotes pela metade do preço, e você só fica sabendo
quando chega lá. Papai, quer uma xícara de chá? Lou não ofereceu uma
para você? — Ela colocou a chaleira com água para esquentar e olhou para
mim. Finalmente deve ter percebido que eu não disse nada. — Você está
bem, querida? Está tão pálida.
Colocou a mão na minha testa como se eu tivesse bem menos que meus vinte e seis anos.
— Acho que não vamos tirar férias.
A mão da minha mãe ficou imóvel. O olhar dela tinha aquela coisa meio raio x desde quando eu era criança.
— Você e Pat estão com algum problema?
— Mãe, eu...
— Não estou querendo me intrometer. É
que vocês estão juntos há tanto tempo. É muito natural que as coisas se
compliquem de vez em quando. Quer dizer, eu e seu pai, nós...
— Fui demitida.
Minha voz cortou o silêncio. As
palavras ficaram ali, no ar, esmorecendo na pequena cozinha por muito
tempo após o som ter sumido.
— Você o quê?
— Frank vai fechar o café. Amanhã. —
Estendi a mão com o envelope meio molhado que, em estado de choque, eu
havia apertado ao longo de todo o trajeto para casa. Todos os cento e
oitenta passos desde o ponto de ônibus. — Ele pagou os três meses do
seguro.
* * *
O dia tinha começado como outro
qualquer. Todo mundo que eu conhecia detestava manhãs de segunda-feira,
mas eu nunca me incomodei. Gostava de chegar cedo ao The Buttered Bun,
ligar a enorme máquina de chá, trazer os caixotes de leite e pão do
depósito e conversar com Frank enquanto nos preparávamos para abrir.
Gostava do calor abafado com aroma
de bacon que havia no café, das pequenas rajadas de ar frio quando a
porta se abria e se fechava, do murmúrio das conversas e, quando estava
tudo calmo, do rádio de Frank tocando baixinho no canto. Não era um
lugar moderninho, as paredes eram cobertas de fotos do castelo da
colina, as mesas ainda ostentavam tampos de fórmica e o cardápio era o
mesmo desde que comecei lá, exceto por algumas mudanças nos tipos de
chocolate servidos no balcão e pela inclusão de brownies e bolinhos de
chocolate na bandeja de bolos gelados.
Mas, acima de tudo, eu gostava dos
clientes. Gostava de Kev e de Angelo, os encanadores que vinham quase
todas as manhãs e brincavam com Frank perguntando de onde vinha a carne
que ele servia. Gostava da Sra. Dente-de-leão, apelidada assim por causa
da cabeleira branca, que comia ovo com fritas de segunda a quinta-feira
e se sentava para ler os jornais de distribuição gratuita, bebendo duas
xícaras inteiras de chá de um jeito único. Sempre me esforçava para
conversar com ela. Desconfiava de que fosse a única conversa que a
velhinha tinha durante todo o dia.
Gostava dos turistas, que paravam em
seu caminho, indo e vindo do castelo; das crianças agitadas do colégio
que davam uma passada lá depois das aulas; dos habitués dos escritórios
que ficavam do outro lado da rua; e de Nina e Cherie, as cabeleireiras
que sabiam quantas calorias tinha cada produto que oferecíamos em The
Buttered Bun.
Nem os clientes chatos, como a
mulher ruiva, que gerenciava a loja de brinquedos e reclamava do troco
pelo menos uma vez por semana, me incomodavam.
Testemunhei o início e o fim de
relacionamentos naquelas mesas; pais divorciados entregando e recebendo
os filhos de seus ex-cônjuges; o alívio culpado dos que não suportavam
cozinhar e o prazer secreto dos aposentados diante de um café da manhã
com frituras. Todo tipo de pessoa frequentava aquele lugar e a maioria
partilhava algumas palavras comigo, fazendo piadas e comentários por
cima das canecas de chá fumegantes. Papai sempre dizia que jamais sabia o
que sairia da minha boca, mas lá no café isso não importava.
Frank gostava de mim. Era calado por natureza e dizia que eu animava o lugar.
Para mim, era como ser garçonete de bar, mas sem a chatice dos bêbados.
Até que, naquela tarde, depois que o
movimento do almoço terminou e o café ficou vazio por um breve período,
Frank, limpando as mãos no avental, saiu de trás da chapa do fogão e
virou a pequena placa de Fechado para a rua.
— Ai, ai, Frank, eu já disse a você.
O salário-mínimo não inclui horas-extra. — Frank era, como dizia papai,
esquisito como um gnu azul. Olhei para ele. Ele não estava sorrindo.
— Oh-oh. Não coloquei de novo sal no pote de açúcar, coloquei?
Ele estava torcendo um pano de prato
com as duas mãos e eu nunca o vira mais desconfortável. Supus, num
lampejo, que alguém tivesse reclamado de mim. Então ele fez sinal para
eu me sentar.
— Desculpe, Louisa — disse, depois
de me contar. — Vou voltar para a Austrália. Meu pai não está bem e
parece que o castelo vai mesmo começar a servir seus próprios lanches.
Tem um aviso na parede.
Acho que fiquei lá sentada,
literalmente de boca aberta. Frank então me entregou o envelope e
respondeu minha pergunta antes que ela saísse da minha boca.
— Sei que nunca tivemos, você sabe,
um contrato formal ou algo do tipo, mas eu não quero deixá-la na mão. No
envelope tem três meses de salário. Fechamos amanhã.
* * *
— Três meses! — explodiu papai,
quando mamãe colocou uma xícara de chá adoçado nas minhas mãos. — Bom, é
generoso da parte dele, já que ela trabalhou como escrava naquele lugar
nos últimos seis anos.
— Bernard. — Mamãe lançou-lhe um
olhar de aviso, indicando Thomas com a cabeça. Meus pais cuidavam dele
depois da escola até Treena voltar do trabalho.
— Que diabo ela deve fazer agora? No mínimo, poderia ter sido avisada com mais de um dia de antecedência.
— Bom... ela simplesmente vai ter de arrumar outro emprego.
— Não tem outra porcaria de emprego, Josie. Você sabe tão bem quanto eu. Estamos numa maldita recessão.
Mamãe fechou os olhos por um instante, como se estivesse se controlando antes de falar.
— Ela é uma garota inteligente. Vai
achar alguma coisa. Tem um currículo consistente, não tem? Frank vai
escrever uma boa carta de referências.
— Ah, grande coisa... “Louisa Clark é muito boa em passar manteiga na torrada e excelente com o velho bule de chá.”
— Obrigada pelo voto de confiança, pai.
— Só estou dizendo.
Eu sabia o verdadeiro motivo da
preocupação de papai. Eles dependiam do meu salário. Treena ganhava
quase nada na floricultura. Mamãe não podia trabalhar, pois tinha de
cuidar do vovô e a pensão dele era mínima; papai estava sempre tenso em
relação a seu emprego na fábrica de móveis. Fazia meses que o patrão
vinha resmungando sobre um possível corte de pessoal. Em casa,
comentava-se sobre dívidas, sobre a ilusão dos cartões de crédito. Dois
anos antes, um motorista sem seguro destruíra o carro de papai e, de
certa maneira, foi o que bastou para pôr abaixo o instável edifício que
eram as finanças de meus pais. Meu modesto salário vinha sendo um
pequeno pilar no orçamento doméstico, suficiente para ajudar a cuidar de
nossa família a cada semana.
— Não vamos nos precipitar. Amanhã
ela pode ir ao Centro de Trabalho e ver quais são as ofertas. Ela tem o
suficiente para se sustentar, por enquanto. — Eles falavam como se eu
não estivesse ali. — E é inteligente. Você é inteligente, não é,
querida? Talvez possa fazer aulas de digitação. Trabalhar em um
escritório.
Eu me sentei enquanto meus pais
discutiam que trabalhos eu poderia conseguir com minhas poucas
qualificações. Operária de fábrica, especialista em ferramentas
mecânicas, passadora de manteiga. Pela primeira vez naquela tarde, tive
vontade de chorar. Thomas me olhava com seus grandes olhos redondos e,
sem dizer nada, me deu a metade de um biscoito babado.
— Obrigada, Tommo — falei apenas movendo os lábios, sem emitir som, e comi o biscoito.
* * *
Ele estava na academia de ginástica,
como eu sabia que estaria. De segunda a quinta, pontual como um relógio
suíço, Patrick ficava lá se exercitando ou dando voltas na pista
bem-iluminada. Subi a escada abraçando a mim mesma para me proteger do
frio e entrei devagar na pista, acenando quando ele chegou perto o
bastante para conseguir me ver.
— Venha correr comigo — disse ele, ofegante, ao se aproximar. Sua respiração formava nuvens claras. — Faltam quatro voltas.
Relutei por um instante e então
comecei a correr ao seu lado. Era o único jeito de conseguir ter
qualquer tipo de conversa com ele. Eu estava com meus tênis rosa com
cadarços turquesa, o único sapato com o qual eu conseguia correr.
Tinha passado o dia em casa,
tentando ser útil. Acho que isso aconteceu uma hora antes de eu começar a
perturbar minha mãe. Ela e vovô tinham sua rotina e minha presença
atrapalhava os dois. Papai estava dormindo, já que havia passado para o
turno da noite naquele mês, e não podia ser incomodado. Arrumei meu
quarto, depois me sentei e assisti à TV em volume baixo e, algumas
vezes, quando me lembrava por que eu estava em casa no meio do dia,
sentia uma leve dor no peito.
— Não estava esperando por você.
— Eu me cansei de ficar em casa. Pensei que talvez pudéssemos fazer alguma coisa.
Ele me olhou de soslaio. Seu rosto tinha uma leve camada de suor.
— Quanto antes você arrumar outro emprego, querida, melhor.
— Eu perdi meu emprego há apenas
vinte e quatro horas. Será que eu posso me sentir um pouco infeliz e
desanimada? Sabe, só por hoje?
— Você precisa ver o lado bom. Você sabia que não poderia ficar naquele emprego para sempre. Precisa seguir em frente.
Dois anos antes, Patrick tinha sido
eleito o Jovem Empreendedor do Ano de Stortfold e ainda não tinha se
recuperado bem da fama. Ele até havia conseguido um sócio, Ginger Pete,
com quem montou uma empresa que oferecia formação pessoal para clientes
num raio de duzentos metros e contava com dois furgões financiados.
Também tinha um quadro branco no escritório onde ele gostava de
rabiscar, com grossos marcadores pretos, a projeção que fazia para o
volume de seus negócios, escrevendo e reescrevendo os números até
corresponderem a suas expectativas. Nunca tive muita certeza de que os
números tivessem alguma ligação com a realidade.
— Lou, perder o emprego pode mudar a
vida de uma pessoa. — Ele deu uma olhada no relógio, conferindo o tempo
que fizera naquela volta. — O que você quer fazer? Podia estudar. Tenho
certeza de que o mercado valoriza gente como você.
— Gente como eu?
— Sim, que busca uma nova oportunidade. O que você quer ser? Poderia ser esteticista. É bonita o bastante.
Fez um sinal para mim enquanto corria, como se eu devesse agradecer o elogio.
— Você conhece minha rotina de beleza. Água, sabão e um saco de papel enfiado na cabeça.
Patrick começava a parecer exasperado.
E eu, a ficar para trás. Detesto correr. E detestei-o por não ir mais devagar.
— Pense... lojista. Secretária. Corretora de imóveis. Sei lá... deve ter alguma coisa que você queira fazer.
Mas não tinha. Eu gostava de
trabalhar no café. Gostava de saber tudo o que era possível saber a
respeito do The Buttered Bun e de escutar sobre a vida das pessoas que
frequentavam o lugar. Eu me sentia bem lá.
— Não pode ficar infeliz, querida.
Você precisa superar isso. Todos os melhores empreendedores lutaram para
se reerguer dos piores infortúnios. Jeffrey Archer fez isso. Richard
Branson também. — Ele deu uma batidinha no meu braço, tentando me
animar.
— Duvido que Jeffrey Archer algum
dia tenha perdido seu emprego de esquentar bolinhos para o chá. — Perdi o
fôlego. E estava com o sutiã errado. Desacelerei, baixei as mãos e as
apoiei nos joelhos.
Ele se virou e voltou, a voz agitando o ar parado e frio.
— Mas se ele tivesse... estou só
falando. Pense melhor, ponha uma roupa bonita e vá ao Centro de
Trabalho. Ou posso treinar você para trabalhar comigo, se quiser. Você
sabe que isso dá dinheiro. E não se preocupe com a viagem. Eu pago.
Sorri para ele.
Ele me jogou um beijo e sua voz ecoou pelo ginásio vazio.
— Você pode me pagar quando voltar a trabalhar.
* * *
Minha primeira tentativa foi na
Agência de Empregos. Fiz uma entrevista individual que durou quarenta e
cinco minutos e outra em grupo, na qual fiquei sentada com mais ou menos
vinte pessoas, entre homens e mulheres, metade delas com a mesma
expressão meio apalermada que eu também devia estar exibindo, a outra
metade com a expressão vazia e desinteressada de quem já estivera ali
diversas vezes. Eu vestia o que papai chamou de meus trajes “civis”.
Como resultado desses esforços,
consegui um estágio noturno numa fábrica de processamento de frangos (o
que me causou pesadelos por semanas) e dois dias de treinamento no
Conselho de Energia Doméstica. Cheguei bem rápido à conclusão de que
estava sendo orientada a convencer idosos a trocar de fornecedores de
energia e disse ao meu “conselheiro” pessoal, Syed, que não conseguia
fazer isso. Ele insistiu para que eu continuasse, então fiz uma lista
com alguns métodos que eles me pediram para usar e, a essa altura,
ele ficou meio calado e sugeriu que nós (tudo era sempre “nós”, embora
fosse bastante óbvio que um de nós tinha emprego) tentássemos outro
cargo.
Fiquei duas semanas numa rede de
lanchonetes. O horário era bom, eu podia lidar com o fato de o uniforme
dar estática no meu cabelo, mas achei impossível aguentar o regulamento
de “respostas adequadas”, com seus “Posso ajudar?” e “Gostaria de
adicionar uma porção grande de batata frita?”, e desisti depois que uma
das garotas que fazia rosquinhas me pegou discutindo com uma criança de
quatro anos sobre as diversas vantagens dos brinquedos gratuitos. O que
posso dizer? Ela era uma menina de quatro anos inteligente. E eu também
achava as Belas Adormecidas bobinhas.
Agora eu estava sentada, esperando a quarta entrevista, enquanto Syed explorava o touch screen em
busca de outras “oportunidades” de trabalho. Até ele, que tinha o jeito
terrivelmente animado de quem conseguia empregos para os candidatos
mais improváveis, estava começando a parecer um pouco preocupado.
— Hum... já pensou em trabalhar na indústria de entretenimento?
— Em que função? Assistente de mágico?
— Não. Mas há uma vaga para dançarina de pole dance. Várias, aliás.
Ergui uma sobrancelha.
— Por favor, diga que está brincando.
— São trinta horas por semana sem carteira assinada. Acredito que as gorjetas sejam boas.
— Por favor, por favor, diga que
você não acabou de sugerir que eu aceite um emprego que envolva desfilar
de calcinha na frente de estranhos.
— Você disse que tem muita
facilidade para lidar com pessoas. E parece gostar de... roupas...
teatrais. — Ele lançou um olhar para minha meia-calça, que era verde e
brilhante. Pensei que aquela meia pudesse me animar. Thomas tinha
cantarolado a música-tema de A Pequena Sereia durante todo o café da manhã.
Syed deu um tapinha em algo no teclado.
— O que acha de “supervisora de conversas telefônicas adultas”?
Olhei bem para ele.
Ele encolheu os ombros.
— Você disse que gostava de conversar com pessoas.
— Não. Também não quero ser
garçonete seminua. Nem massagista. Ou operadora de webcam. Qual é, Syed.
Deve ter alguma coisa que eu possa fazer sem necessariamente causar um
ataque cardíaco no meu pai.
Ele pareceu intrigado.
— Não sobra muita coisa mais, a não ser vagas no comércio de varejo, com horário flexível.
— Arrumar prateleiras à noite? — Já estive aqui tantas vezes que sou capaz de falar a língua deles.
— Tem lista de espera para essa
vaga. Quem tem filhos costuma gostar, porque combina com os horários
escolares — disse Syed, desculpando-se. Ele estudou novamente a tela. —
Então, só nos resta o serviço de cuidadora.
— Limpar traseiro de velho.
— Receio, Louisa, que você não tenha
qualificação para muito mais que isso. Se quisesse aprender outra
ocupação, eu teria prazer em lhe mostrar o caminho certo. Há vários
cursos para adultos no centro de educação.
— Mas já falamos sobre isso, Syed. Se eu fizer o curso, perco o seguro-desemprego, certo?
— Se você não estiver disponível para trabalhar, sim.
Ficamos em silêncio por um instante.
Olhei para as portas, onde estavam dois seguranças corpulentos e me
perguntei se teriam arrumado o emprego pelo Centro de Trabalho.
— Não sou boa em lidar com idosos, Syed. Meu avô mora conosco desde que sofreu os derrames e não consigo lidar com ele.
— Ah. Então você tem alguma experiência como cuidadora.
— Não é bem assim. Minha mãe faz tudo para ele.
— Sua mãe estaria interessada em trabalhar?
— Engraçadinho.
— Não estou fazendo graça.
— Então quer que eu fique cuidando
do meu avô? Não, obrigada. Aliás, agradeço por ele e por mim também. Não
tem nada em algum café?
— Acho que não há cafés em
quantidade suficiente para que sobre um emprego para você, Louisa.
Podemos tentar o KFC. Você pode conseguir alguma coisa por lá.
— Acha que eu seria muito mais convincente ao oferecer um Balde KFC do que um Chicken McNugget? Acho que não.
— Bom, então temos de procurar algo ainda mais longe.
— Nossa cidade tem apenas quatro
linhas de ônibus. Você sabe disso. E você disse que eu devia procurar o
ônibus de turismo, mas liguei para a estação e ele para de circular às
cinco da tarde. Além disso, é duas vezes mais caro que o ônibus normal.
Syed recostou-se na cadeira.
— A essa altura, Louisa, eu
realmente preciso dizer que, sendo apta e capaz, para continuar a
receber seu auxílio, você precisa...
— ...mostrar que estou tentando conseguir um emprego. Eu sei.
Como explicar para aquele homem o
quanto eu queria trabalhar? Ele tinha alguma ideia do quanto eu sentia
falta do meu antigo emprego? O desemprego era um conceito, algo
vagamente citado nos noticiários, que referia-se a estaleiros ou
fábricas de automóveis. Nunca pensei que se pudesse sentir falta de um
emprego como se sente de um braço ou de uma perna, algo que está sempre
ali, que faz parte de você. Não imaginei que, além dos medos óbvios
sobre dinheiro e futuro, perder o emprego fizesse a pessoa se sentir
inadequada e um pouco inútil. Que pode ser mais difícil levantar de
manhã do que quando se é brutalmente trazido à consciência pelo toque do
despertador. Que você pode sentir falta dos colegas de trabalho, não
importando quão pouco você se identificava com eles. Ou até mesmo que
você pode ficar procurando rostos conhecidos ao andar pela rua. A
primeira vez que vi a Sra. Dente-de-leão vagando na frente das lojas,
parecendo estar tão sem rumo quanto eu, tive de lutar contra o ímpeto de
ir até lá e dar um abraço nela.
A voz de Syed interrompeu meu devaneio.
— Ah, isto aqui pode dar certo.
Tentei dar uma olhada na tela.
— Acabou de aparecer. Neste minuto. Uma oferta de emprego como cuidadora assistente.
— Eu lhe disse que não sou boa com...
— Não é com idosos. É uma... vaga
confidencial. Para ajudar na casa de alguém, e o endereço fica a menos
de três quilômetros de onde você mora. “Cuidados e companhia para
deficiente físico.” Você sabe dirigir?
— Sei. Mas eu teria de limpar o...
— Não é necessário limpar traseiros,
pelo que entendi. — Ele examinou a tela. — Ele é... tetraplégico.
Precisa de alguém de dia para ajudá-lo a se alimentar e para assisti-lo.
Geralmente, nesse tipo de emprego é preciso acompanhar a pessoa quando
ela quer ir a algum lugar, ajudar com coisas simples que ela não possa
fazer. Ah. Paga muito bem. Muito mais do que o piso.
— Provavelmente porque deve envolver limpeza de traseiro.
— Vou ligar para confirmar isso. Se não precisar, você aceita fazer uma entrevista?
Ele perguntou como se houvesse dúvida.
Mas nós dois já sabíamos a resposta.
Suspirei e peguei minha bolsa, pronta para voltar para casa.
* * *
— Jesus Cristo — exclamou meu pai. —
Dá para imaginar? Como se já não fosse castigo suficiente ficar numa
cadeira de rodas enferrujada, você ainda tem como acompanhante a nossa
Lou.
— Bernard! — minha mãe o repreendeu.
Atrás de mim, vovô ria com a caneca de chá encostada na boca.
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