sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Capítulo 25 - Como eu era antes de você

Katrina

Louisa não saiu do quarto por trinta e seis horas completas depois que voltou da viagem.
Chegou do aeroporto no final da tarde de domingo, pálida como um fantasma sob seu bronzeado – e, no começo, não entendemos, já que ela com certeza havia dito que viria nos ver na segunda-feira cedo. Eu apenas preciso dormir, ela tinha dito quando se trancou no quarto e foi direto para a cama. Achamos um pouco estranho, mas o que sabíamos? Afinal, Lou era peculiar desde que nasceu.
De manhã, mamãe levou uma caneca de chá e Lou não tinha se mexido. Na hora do jantar, mamãe ficou preocupada e a sacudiu para ver se estava viva. (Mamãe pode ser meio melodramática – mas, na verdade, tinha feito torta de peixe e certamente queria que Lou experimentasse.) Mas Lou não comeu, nem falou, nem desceu. Só quero ficar um pouco aqui, mãe, disse, com a cara no travesseiro. Finalmente, mamãe a deixou sozinha.
— Ela está diferente — disse mamãe. — Será que é uma reação retardatária à coisa com Patrick?
— Ela não dava a mínima para o Patrick — disse papai. — Contei que ele ligou para nos avisar que chegou em centésimo quinquagésimo sétimo lugar no tal Norseman e ela não pareceu nem um pouco interessada. — Ele bebericou seu chá. — Se quer saber, para ser sincero, também acho difícil ficar animado com o centésimo quinquagésimo sétimo lugar.
— Será que ela está doente? Ela está terrivelmente pálida debaixo daquele bronzeado. E dormiu tanto. Não costuma fazer isso. Deve estar com alguma doença tropical horrível.
— Ela só está sentindo o jet lag — disse eu. Falei com certa autoridade, sabendo que meus pais me consideravam uma especialista em toda a sorte de coisas que nenhum de nós realmente tínhamos a menor ideia.
— Jet lag! Bom, se é assim que se fica após uma viagem longa, acho que vou ficar em Tenby. O que você acha, Josie, querida?
— Não sei... quem poderia imaginar que uma viagem poderia deixar você tão doente? — mamãe balançou a cabeça.
Subi depois do jantar. Não bati à porta. (Aquele ainda era, estritamente falando, o meu quarto, afinal de contas.) O quarto estava parado e denso, abri a cortina e uma janela, então Lou virou-se, grogue, embaixo do edredom, protegendo os olhos da luz, as partículas de poeira voando em círculos ao redor dela.
— Você vai me dizer o que houve? — Coloquei uma caneca de chá na mesa de cabeceira.
Ela piscou na minha direção.
— Mamãe acha que você contraiu o vírus ebola. Está ocupada em advertir a todos os vizinhos que se inscreveram na viagem para PortAventura pelo Clube de Bingo.
Ela não disse nada.
— Lou?
— Pedi demissão — disse ela, baixo.
— Por quê?
— Por que você acha? — Sentou-se na cama e, desajeitada, alcançou a caneca, tomando um longo gole de chá.
Para alguém que tinha acabado de passar quase duas semanas nas Ilhas Maurício, ela parecia mesmo horrível. Os olhos estavam pequenos e vermelhos, e a pele, não fosse o bronzeado, pareceria ainda mais avermelhada. Os cabelos estavam eriçados em um dos lados. Parecia que estava sem dormir havia anos. Mas, acima de tudo, ela parecia triste. Nunca vi minha irmã tão triste.
— Acha que ele vai mesmo seguir adiante com isso?
Ela concordou com a cabeça. Depois, engoliu em seco, com dificuldade.
— Merda. Ah, Lou. Sinto muito, de verdade.
Cheguei perto para abraçá-la e subi na cama ao lado dela. Ela deu mais um gole no chá e então encostou a cabeça no meu ombro. Estava com a minha camiseta. Não comentei nada sobre isso. Eu me sentia muito mal por ela.
— O que faço, Treen?
A voz dela era fraca, como a de Thomas quando se machucava e tentava ser realmente corajoso. Lá fora, podíamos ouvir o cachorro do vizinho correr de um lado para outro na cerca do jardim, caçando os gatos da vizinhança. De vez em quando, ouvíamos uma explosão de latidos loucos; a cabeça dele devia estar exatamente naquele momento em cima da cerca, os olhos saltados de frustração.
— Não sei se há algo que você possa fazer. Céus. Tudo aquilo que você arrumou para ele. Todo aquele esforço...
— Eu contei para ele que o amava — disse ela, a voz descendo de tom até um sussurro. — E ele apenas disse que isso não bastava. — Seus olhos estavam arregalados e vazios. — Como posso aguentar isso?
Eu sou a pessoa da família que sabe tudo. Leio mais que todo mundo. Faço faculdade. Sou aquela que deve ter resposta para tudo.
Mas olhei para minha irmã mais velha e balancei a cabeça.
— Não faço a menor ideia — respondi.

* * *

Ela finalmente se levantou no dia seguinte, tomou um banho, vestiu roupas limpas e eu disse para papai e mamãe não comentarem nada. Dei a entender que era problema com namorado e papai ergueu as sobrancelhas e fez uma cara como se isso explicasse tudo e só Deus sabia por que estávamos fazendo tanta confusão a respeito do caso.
Mamãe ligou correndo para o Clube do Bingo para avisar que mudou de opinião sobre os perigos das viagens aéreas.
Lou comeu um pedaço de torrada (não quis almoçar), colocou um grande chapéu de abas largas e fomos ao castelo com Thomas para dar comida aos patos. Acho que ela não estava com muita vontade de ir, mas mamãe insistiu que todos nós precisávamos de ar fresco. Isso, na linguagem de mamãe, queria dizer que ela estava louca para entrar no quarto, arejá-lo e trocar a roupa de cama. Thomas correu e pulou na nossa frente, segurando um saco de cascas de pão, e nos esquivamos dos turistas graças a anos de prática, evitando levar mochiladas e contornando casais fazendo pose para fotos. O castelo assava no sol quente do verão, o chão de terra estava rachado e a grama rala parecia os derradeiros fios de cabelo na cabeça de um careca. As flores nos canteiros pareciam derrotadas, como se já se preparassem para o outono.
Lou e eu falamos pouco. O que havia para se dizer?
Quando passamos pelo estacionamento, eu a vi olhar sob a aba do seu chapéu na direção da casa dos Traynor. Estava lá, elegante com seus tijolos vermelhos, suas altas e vazias janelas disfarçando qualquer tragédia transformadora que pudesse estar acontecendo lá dentro, talvez até naquele mesmo instante.
— Sabe, você podia ir falar com ele — disse eu. — Eu espero por você aqui.
Ela olhou para o chão, cruzou os braços no peito e continuamos a andar.
— Não adianta — disse ela. Eu conhecia a outra parte, a parte que ela não mencionou. Ele provavelmente nem estará lá.
Demos uma pequena volta no castelo, olhando Thomas rolar nas partes íngremes da colina, dar comida aos patos que, a essa altura do ano, estavam tão gordos que mal se incomodavam em vir receber mero pão. Observei minha irmã enquanto andávamos, vendo suas costas bronzeadas na blusa de frente única, os ombros caídos, e concluí que, mesmo se ela ainda não tivesse notado, tudo tinha mudado para ela. Ela não poderia ficar ali agora, não importava o que acontecesse com Will Traynor. Estava com um jeito, um jeito novo de conhecimento, de coisas vistas, lugares em que esteve.
Finalmente, minha irmã tinha novos horizontes.
— Ah — falei, quando íamos para os portões de saída —, chegou uma carta para você. Da faculdade, quando você estava viajando. Desculpe... eu abri, pensei que fosse para mim.
— Você abriu?
Eu esperava que fosse um dinheiro extra da bolsa de estudos.
— Você tem uma entrevista.
Ela piscou, como se recebesse notícias de um passado distante.
— É. E a grande novidade é que a entrevista é amanhã — completei. — Por isso, achei que esta noite podíamos rever umas perguntas.
Ela balançou a cabeça.
— Não posso fazer uma entrevista amanhã.
— O que mais você tem para fazer amanhã?
— Não posso, Treen — disse ela, triste. — Como vou pensar em qualquer outra coisa, a essa altura?
— Escute, Lou. Eles não fazem entrevistas como quem dá pão para os patos, sua idiota. É importante. Sabem que você é uma estudante madura, está se candidatando na época errada do ano e, mesmo assim, marcaram. Você não pode arruinar tudo.
— Não interessa. Não posso pensar nisso.
— Mas você...
— Apenas me deixe sozinha, Treen. Certo? Não posso fazer isso.
— Ei — disse eu, parando na frente dela. Thomas estava correndo atrás de um pombo, logo adiante. — Este é exatamente o tempo que você tem para pensar nisso. Queira ou não, está na hora de pensar no que vai fazer pelo resto da sua vida.
Estávamos bloqueando o caminho. Os turistas tinham de nos contornar para passar – faziam isso de cabeça baixa ou olhando, meio curiosos, as irmãs discutirem.
— Não posso.
— Muito bem, então. Caso não se lembre, você está desempregada. Não tem Patrick para ajudar. E se perder a entrevista, daqui a dois dias estará de volta ao Centro de Trabalho vendo se prefere processar frangos, dançar pole dance ou limpar a bunda de outra pessoa para viver. Acredite se quiser, você tem quase trinta anos e sua vida já está definida. E tudo isso, tudo o que aprendeu nesses seis meses, terá sido perda de tempo. Tudo.
Ela olhou bem para mim, com aquela raiva muda de quando sabe que tenho razão e não pode responder nada. Thomas surgiu ao nosso lado naquele momento e segurou minha mão.
— Mamãe... você disse bunda.
Minha irmã continuava a olhar para mim. Mas vi que pensava.
Virei-me para Thomas.
— Não, querido, eu disse que a praia era funda. Vamos voltar para casa, não é, Lou? E ouvir histórias sobre a praia funda que ela visitou. Depois que vovó der banho em você, vou ajudar a tia Lou a fazer o dever de casa.

* * *

Fui à biblioteca no dia seguinte, e mamãe ficou com Thomas, então me despedi de Lou no ônibus sabendo que não a veria até a hora do chá. Eu não tinha muita esperança naquela entrevista, mas, a partir do momento em que a deixei, não pensei mais nisso.
Pode soar um pouco egoísta, mas não gosto de me atrasar no meu curso e foi um certo alívio ter uma folga no sofrimento de Lou. Ficar perto de alguém tão deprimido é meio desgastante. Você pode sentir pena, mas não dá para não pedir que a pessoa procure se recompor também. Coloquei minha família, minha irmã e a enorme confusão onde ela se meteu num arquivo mental, fechei a gaveta e concentrei minha atenção no Imposto sobre Valor Agregado. Tive as segundas melhores notas no ano em Contabilidade I e nada no mundo me faria deixar essa nota cair só por causa dos caprichos de um sistema de avaliação da Arrecadação de Tributos e Impostos de Sua Majestade. Cheguei em casa por volta de quinze para as seis, coloquei minhas pastas na cadeira da entrada e todos já estavam espreitando a mesa da cozinha enquanto mamãe começava a servir. Thomas pulou em mim, enganchou as pernas na minha cintura e dei um beijo nele, sentindo aquele delicioso cheiro de menininho levado.
— Sentem-se, sentem-se — pediu mamãe. — Papai acabou de chegar.
— Como vão seus livros? — perguntou papai, dependurando o paletó nas costas da cadeira. Ele sempre perguntava pelos “meus livros” como se tivessem vida própria e obedecessem ordens.
— Vão bem, obrigada. Estou quase no final do módulo Contabilidade II. Amanhã tenho direito corporativo. — Desvencilhei-me de Thomas, coloquei-o na cadeira ao meu lado, uma das mãos repousando sobre seu cabelo macio.
— Ouviu essa, Josie? Direito corporativo. — Papai roubou uma batata da tigela e enfiou-a na boca antes que mamãe visse. Pronunciou “direito corporativo” como se gostasse do som. E provavelmente gostava mesmo.
Conversamos um pouco sobre os temas do módulo. Depois, falamos do trabalho dele, sobretudo sobre como os turistas quebravam tudo. Não dava para acreditar em como era preciso haver manutenção, aparentemente. Até mesmo os postes de madeira da entrada do estacionamento precisavam ser substituídos em poucas semanas porque os idiotas não conseguiam passar o carro num espaço de dois metros. Particularmente, eu aumentaria o preço do estacionamento para cobrir essas despesas, mas isso sou eu.
Mamãe terminou de servir e finalmente se sentou. Thomas comia com as mãos quando pensava que ninguém estava vendo e dizia bunda baixo com um sorriso secreto, e vovô comia com o olhar voltado para cima, como se pensasse mesmo em algo totalmente diferente. Olhei para Lou. Ela estava encarando o prato, empurrando o frango assado para o lado como se tentasse escondê-lo. Oh-oh, pensei.
— Não está com fome, querida? — perguntou mamãe, acompanhando o meu olhar.
— Não muita — respondeu ela.
— Está muito calor para frango — concedeu mamãe. — Só pensei que isso a faria melhorar um pouco.
— Então... não vai nos contar como foi a entrevista? — O garfo do papai parou à caminho da boca.
— Ah, isso. — Ela parecia distraída, como se papai perguntasse sobre algo que tivesse feito cinco anos antes.
— Sim, isso.
Ela separou um pedacinho de frango.
— Foi bem.
Papai olhou para mim.
Dei de ombros levemente.
— Só “bem”? Eles devem ter lhe dado uma ideia de como você foi.
— Fui aprovada.
— O quê?
Ela continuava olhando para baixo, para o prato. Parei de mastigar.
— Disseram que sou exatamente o tipo de candidata que eles procuram. Vou fazer uma espécie de curso básico, que dura um ano, depois posso me requalificar.
Papai recostou-se na cadeira.
— Que notícia maravilhosa.
Mamãe deu um tapinha no ombro de Lou.
— Muito bem, querida. Isso é ótimo.
— Nem tanto. Não sei se consigo bancar quatro anos de estudos.
— Não pense nisso agora. De verdade. Veja como Treena está se saindo. Ei — ele fez um sinal para ela — vamos dar um jeito. Sempre damos, não é? — papai sorriu para nós duas. — Acho que está tudo melhorando para nós, agora, meninas. Acho que será uma boa época para esta família.
Então, sem mais, Lou se derramou em lágrimas. Lágrimas de verdade. Como Thomas chora, gemendo, o nariz e as lágrimas escorrendo, sem se importar com quem estava escutando, os soluços entrando no silêncio da pequena cozinha como uma faca.
Thomas ficou olhando para ela, boquiaberto, então tive de colocá-lo no colo e distraí-lo para não se descontrolar também. E enquanto eu brincava com pedaços de batata e ervilhas falantes, Lou contou para eles.
Contou tudo – de Will e do contrato de seis meses e o que aconteceu nas Ilhas Maurício. À medida que ela falava, mamãe pôs a mão na boca. Vovô parecia solene. O frango esfriou, o molho ficou estagnado na molheira.
Papai balançou a cabeça, incrédulo. E aí, quando minha irmã contou detalhes do voo de volta do Oceano Índico, sua voz foi diminuindo até virar um sussurro, e quando ela revelou as últimas palavras que disse para a Sra. Traynor, papai empurrou a cadeira e se levantou. Contornou a mesa devagar e tomou Lou nos braços, como fazia quando éramos pequenas. Ele ficou ali e a segurou bem, bem junto a ele.
— Ah, meu Deus, coitado. E coitada de você. Ah, meu Deus.
Não sei se algum dia vi papai tão chocado.
— Que confusão dos infernos.
— Você passou por tudo isso? Sem dizer nada? E nós só recebemos um cartão-postal sobre mergulho submarino? — Minha mãe estava incrédula. — Pensamos que você estava na melhor viagem da sua vida.
— Não passei por tudo sozinha. Treena sabia — disse Lou, olhando para mim. — Ela foi ótima comigo.
— Não fiz nada — disse, abraçando Thomas. Ele se desinteressou da conversa depois que mamãe colocou uma lata aberta de biscoitos diante dele. — Eu apenas ouvi. Você fez o resto. Você teve todas as ideias.
— E algumas ideias se concretizaram. — Ela se inclinou para papai, parecendo desolada.
Papai segurou no queixo dela para que o olhasse.
— Você fez tudo o que pôde.
— E fracassei.
— Quem disse? — Papai puxou os cabelos dela para trás, tirando-os do rosto. Sua expressão era carinhosa. — Estou pensando no que sei sobre Will Traynor, o que sei sobre homens como ele. Vou lhe dizer uma coisa: não sei se alguém no mundo conseguiria convencê-lo de alguma coisa se ele estivesse decidido. Ele é assim. Não se pode mudar as pessoas.
— Mas os pais! Eles não podem permitir que o rapaz se mate! — disse mamãe. — Que gente é essa?
— São pessoas normais, mamãe. A Sra. Traynor não sabe mais o que fazer.
— Bom, não levá-lo para essa maldita clínica já ajuda — disse mamãe, zangada. Dois pontos de cor surgiram em seu rosto. — Eu lutaria por vocês duas, por Thomas, até o último suspiro.
— Mesmo se ele já tivesse tentado se matar? — perguntei. — De forma bem cruel?
— Ele está doente, Katrina. Deprimido. As pessoas vulneráveis não deviam ter chance de fazer algo de que possam... — Ela ficou numa raiva muda e secou os olhos com o guardanapo. — Essa mulher deve ser insensível. Sem coração. E pensar que eles meteram Louisa nisso. Ela é juíza, pelo amor de Deus. A gente imagina que uma juíza saiba o que é certo e errado. Mais que todo mundo. Tenho vontade de ir lá agora e trazê-lo para cá.
— É complicado, mamãe.
— Não. Não é. Ele está vulnerável e a mãe não pode fazê-lo mudar de ideia. Estou chocada. Aquele coitado. Coitado. — Ela se levantou da mesa, levando consigo as sobras do frango, e foi para a cozinha.
Louisa olhou-a, meio surpresa. Mamãe nunca ficava irritada. Acho que a última vez que a vimos falar alto foi em 1993.
Papai balançou a cabeça, os pensamentos aparentemente longe dali.
— Acabei de me lembrar... não tenho visto o Sr. Traynor no castelo. Fiquei pensando onde ele estaria. Presumi que estivessem numa espécie de viagem de família.
— Eles... eles viajaram?
— Ele não aparece no trabalho há dois dias.
Lou desmontou na cadeira.
— Ah, merda — disse eu, e coloquei as mãos nos ouvidos de Thomas.
— É amanhã.
Lou olhou para mim e olhei para o calendário na parede.
— Treze de agosto. É amanhã.

* * *

No último dia, Lou não fez nada. Ficou na minha frente, olhando pela janela da cozinha.
Choveu, depois parou, depois choveu de novo. Ela ficou no sofá com vovô, bebeu o chá que mamãe fez para ela e a cada meia hora, mais ou menos, olhava devagar para a cornija da lareira e checava o relógio. Foi horrível de se ver. Levei Thomas para nadar e tentei fazê-la ir conosco. Disse que mamãe cuidaria dele se Lou quisesse ir a umas lojas comigo mais tarde. E que eu iria com ela ao pub, só nós duas, mas ela recusou todos os convites.
— Será que eu errei, Treena? — perguntou, tão baixo que só eu ouvi.
Olhei para vovô, mas ele só via a corrida de cavalos na TV. Acho que papai ainda apostava para ele às escondidas, apesar de negar para mamãe.
— O que você quer dizer?
— E se eu tivesse ido com ele?
— Mas... você disse que não podia.
Lá fora, o céu estava cinzento. Ela olhou através das nossas imaculadas vidraças para aquele dia horrível.
— Eu sei que disse isso. Mas não consigo suportar não saber o que está acontecendo agora. — Ela franziu um pouco o rosto. — Não consigo suportar não saber o que ele sente. Não consigo suportar o fato de que eu nem sequer me despedi dele.
— Não pode ir agora? Talvez tentar conseguir um voo?
— É tarde demais — disse ela. E então fechou os olhos. — Não chegaria a tempo. Faltam apenas duas horas para... a clínica fechar. Eu pesquisei. Na internet.
Esperei.
— Eles não... fazem... isso... depois das cinco e meia. — Ela balançou a cabeça, perplexa. — Alguma coisa a ver com os funcionários do governo suíço que precisam estar presentes. Eles não gostam... de verificar... coisas depois do horário oficial.
Quase ri. Mas não sabia o que dizer. Não conseguia imaginar precisar esperar por uma coisa que aconteceria num lugar distante. Jamais gostei de homem algum como ela parecia gostar de Will. Claro que gostei de alguns, quis dormir com eles, mas às vezes me perguntava se me faltava algum chip de sensibilidade. Não conseguia me ver chorando por ninguém com quem já tivesse estado. A única coisa equivalente era pensar em Thomas à espera da morte em algum país estranho e, assim que esse pensamento surgiu, alguma coisa dentro de mim se revirou, era horrível demais. Então eu também coloquei essa ideia no fundo do arquivo mental, com a etiqueta: Impensável.
Sentei-me ao lado de minha irmã no sofá e olhamos em silêncio a Corrida dos Potros das três e meia, depois o páreo das quatro horas e os quatro que vieram a seguir, com a preocupação intensa de quem tinha realmente apostado todo o dinheiro do mundo no vencedor.
Então, a campainha de casa tocou.
Em segundos, Louisa saiu do sofá e foi para o corredor. Abriu a porta de uma forma tão violenta que fez meu coração parar.
Mas não era Will que estava na soleira. Era uma jovem, de maquilagem pesada e muito bem-feita, os cabelos bem-cortados na altura do queixo. Ela fechou o guarda-chuva e sorriu, alcançando a grande bolsa que tinha pendurada no ombro. Pensei por um instante que fosse a irmã de Will Traynor.
— Você é Louisa Clark?
— Sim?
— Sou do The Globe. Será que poderia nos dar uma palavrinha?
— The Globe?
Eu podia ouvir a confusão na voz de Louisa.
— Do jornal? — perguntei, atrás de minha irmã. Vi o bloco de anotações na mão da moça.
— Posso entrar? Gostaria de conversar um pouquinho sobre William Traynor. Você trabalha para ele, não?
— Sem comentários — respondi. E antes que a mulher pudesse dizer mais alguma coisa, bati a porta na cara dela.
Minha irmã ficou pasma no corredor. Vacilou quando a campainha tocou outra vez.
— Não atenda — sibilei.
— Mas como...?
Comecei a empurrar Louisa escada acima. Céus, ela estava incrivelmente lenta. Era como se estivesse meio dormindo.
— Vovô, não atenda a porta! — gritei. — Para quem você contou? — perguntei, quando chegamos no andar de cima. — Alguém deve ter dito a eles. Quem sabe disso?
— Srta. Clark — a voz da mulher entrou pela caixa do correio. — Se me der apenas dez minutos... compreendemos que é um assunto muito delicado. Gostaríamos que desse a sua versão do fato...
— Isso quer dizer que ele está morto? — Os olhos dela se encheram de lágrimas.
— Não, quer dizer que algum idiota está querendo faturar. — Pensei por um instante.
— Quem era, meninas? — A voz de mamãe subiu pela escada.
— Ninguém, mamãe. Apenas não abra a porta.
Olhei por cima do corrimão da escada. Mamãe estava segurando um pano de prato e olhando para o vulto sombreado nos vidros da porta da frente.
— Não é para atender a porta?
Segurei o cotovelo da minha irmã.
— Lou... você não contou nada para Patrick, contou?
Ela não precisou responder. A cara assustada disse tudo.
— Certo. Não precisa ter um troço. Apenas não chegue perto da porta. Não atenda o telefone. Não fale nada a ninguém, certo?

* * *

Mamãe não gostou. Gostou menos ainda quando o telefone começou a tocar. Após o quinto telefonema, deixamos todas as ligações serem atendidas pela secretária eletrônica, mas continuamos a ouvir aquelas vozes invadindo o nosso pequeno corredor.
Eram quatro ou cinco, todas iguais. Todas oferecendo a Lou a chance de dar a “versão dela”, como diziam. Como se Will Traynor tivesse se transformado numa apólice que todos queriam. O telefone e a campainha tocavam. Mantivemos as cortinas fechadas, ouvindo os repórteres na calçada do lado de fora do nosso portão, conversando uns com os outros e falando nos celulares.
Era como estar sitiado. Mamãe torceu as mãos e berrou pela caixa do correio para eles saírem da porra do nosso jardim, sempre que um deles ultrapassava o portão.
Thomas olhou pela janela do banheiro de cima e perguntou por que tinha gente no nosso jardim. Quatro vizinhos ligaram querendo saber o que estava acontecendo. Papai parou o carro na Ivy Street e veio para casa pelo quintal, e tivemos uma conversa bastante séria sobre castelos medievais e óleo fervente.
Então, depois de pensar mais um pouco, liguei para Patrick e perguntei quanto tinha ganhado com aquela pequena dica sórdida. A sutil demora em negar me disse tudo o que eu precisava saber.
— Seu merda — gritei. — Vou dar um chute tão forte nas suas canelas de maratonista que você vai achar que o centésimo quinquagésimo sétimo lugar foi mesmo uma boa colocação.
Lou sentou-se na cozinha e chorou. Não propriamente soluçando, apenas lágrimas silenciosas que escorriam por seu rosto e que ela limpava com a palma da mão. Eu não sabia o que dizer para ela.
O que foi ótimo. Eu tinha muita coisa para dizer a todos os demais.
Todos os jornalistas sumiram lá pelas sete e meia da noite, menos um. Eu não sabia se tinham desistido, ou se haviam se cansado pelo fato de Thomas jogar peças de Lego pela caixa do correio toda vez que eles passavam mais um bilhete. Pedi para Louisa dar banho nele para mim, principalmente porque eu queria que ela saísse da cozinha, mas também porque assim eu poderia ouvir todos os recados da secretária eletrônica e apagar os que fossem de jornais enquanto ela não estivesse ouvindo. Vinte e seis. Vinte e seis daqueles cretinos. Todos parecendo tão simpáticos, tão compreensivos. Alguns chegaram a oferecer dinheiro.
Apaguei cada uma delas. Até as que ofereciam dinheiro, embora tenha de admitir que fiquei um pouquinho tentada a saber quanto davam. O tempo todo, ouvi Lou conversar com Thomas no banheiro, o barulho dele bombardeando os quinze centímetros de espuma com seu Batmóvel. Isso é algo que só se sabe depois de ter filhos – a hora do banho, Lego e tirinhas de peixe empanadas não a deixam viver numa tragédia por muito tempo. E então eu cheguei à última mensagem.
— Louisa? É Camilla Traynor. Pode me ligar, com urgência?
Fiquei olhando a secretária eletrônica. Rebobinei e ouvi a mensagem de novo. Então corri para cima, tirei Thomas do banho tão rápido que ele nem percebeu o que houve. Ficou lá, a toalha firmemente enrolada nele como um bandagem de curativo, e Lou, hesitante e confusa, já estava no meio da escada, sendo empurrada por mim pelo ombro.
— E se ela estiver com ódio de mim?
— A voz não dava essa impressão.
— Mas e se a imprensa os estiver cercando? E se acharem que isso é culpa minha? — Os olhos dela estavam arregalados e assustados. — E se for para me avisar que ele morreu?
— Ah, pelo amor de Deus, Lou. Ao menos uma vez na vida, fique calma. Você só vai saber a resposta se ligar. Ligue para ela. Apenas ligue. Não há outra maldita escolha.
Voltei correndo para o banheiro para deixar Thomas sair. Enfiei o pijama nele, disse que vovó lhe daria um biscoito se ele fosse bem rápido até a cozinha. E então dei uma olhadela pela porta do banheiro para espiar minha irmã ao telefone no corredor.
Estava de costas para mim, passando a mão pelo cabelo da nuca. Esticou o braço para se equilibrar.
— Sim — dizia ela. — Sei. — Depois: — Certo.
E após uma pausa:
— Sim.
Ficou por um bom tempo olhando para os próprios pés depois de desligar.
— Então? — perguntei.
Ela olhou para cima como se só então tivesse me visto ali e balançou a cabeça.
— Não era nada sobre os jornais — respondeu, a voz ainda entorpecida pelo choque. — Ela me pediu, me implorou, para ir à Suíça. Já reservou passagem no último voo desta noite.

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