Ser atirada para dentro de uma vida totalmente diferente –
ou, pelo menos, jogada com tanta força na vida de outra pessoa a ponto de
parecer bater com a cara na janela dela – obriga a repensar sua ideia a
respeito de quem você é. Ou sobre como os outros o veem.
Para meus pais, em quatro curtas semanas eu fiquei um pouco mais interessante. Passei a ser o canal
para um mundo diferente. Minha mãe, particularmente, todo dia me fazia
perguntas sobre a Granta House e os hábitos domésticos de seus moradores, como
se fosse uma zoóloga forense observando alguma estranha criatura nova e seu hábitat.
— A Sra. Traynor usa guardanapos de linho em todas as
refeições? — ela poderia perguntar, ou: — Eles passam aspirador na casa todos
os dias, como nós? — Ou ainda: — Como eles preparam as batatas?
Mamãe se despedia de mim de manhã com recomendações
estritas para que eu descobrisse que marca de papel higiênico eles usavam, ou
se os lençóis eram de algodão misto. Isso era fonte de grande decepção, já que
na maioria das vezes eu não conseguia me lembrar de investigar nada. Minha mãe
estava secretamente convencida de que os bacanas viviam como porcos – isso
desde que eu contei, aos seis anos, sobre uma colega bem-nascida cuja mãe não
nos deixava brincar na sala “porque íamos levantar a poeira”.
Quando eu chegava em casa e contava
que, sim, o cachorro
definitivamente podia comer
na cozinha ou que, não, os Traynor não varriam a escada da frente todos
os dias
como minha mãe fazia, ela contraía os lábios, olhava de soslaio para meu
pai e
acenava com a cabeça em muda satisfação, como se tivesse acabado de
confirmar tudo de que suspeitava sobre os modos desleixados da
classe alta.
O fato de minha família depender do meu salário, ou de
saber que eu não gostava mesmo do meu trabalho, significou receber um pouco mais de respeito em casa. Isso, na
verdade, não mudava muito as coisas: no caso de meu pai, ele parou de me chamar
de “gordota” e, quanto a mamãe, passei a ter uma caneca de chá à minha espera quando
chegava em casa.
Para Patrick e minha irmã, eu era a mesma: ainda alvo de
piadas, e a recebedora de abraços, beijos e maus humores. Eu não me sentia
diferente. Parecia a mesma pessoa, ainda vestida, segundo Treen, como se
tivesse enfrentado uma luta greco-romana num brechó de caridade.
Eu não fazia ideia do que os moradores da Granta House
achavam de mim. Will era indecifrável. Para Nathan, eu devia ser apenas mais
uma em uma longa lista de cuidadoras contratadas. Ele era bastante simpático,
mas um pouco distante. Suspeitava de que ele não estava convencido de que eu
fosse durar muito. O Sr. Traynor me cumprimentava, afável, quando nos
cruzávamos no hall, ocasionalmente me perguntava como estava o trânsito ou se
tudo ia bem. Mas não sei se me reconheceria se nos víssemos em um outro
cenário.
Mas para a Sra. Traynor – ó, céus! – para ela eu era
aparentemente a pessoa mais idiota e mais irresponsável do mundo.
Tudo começou com os porta-retratos. Nada naquela casa
escapava à observação da Sra. Traynor, e eu deveria saber que a destruição dos
porta-retratos seria considerada um evento sísmico. Ela me interrogou para
saber por quanto tempo exatamente eu tinha deixado Will sozinho; o que havia
motivado aquilo; quão rápido eu havia arrumado tudo. Não chegou a me criticar –
era muito discreta até mesmo para aumentar a voz – mas o jeito de piscar os
olhos devagar a cada resposta que eu dava, os breves hum-hums
conforme
eu falava, disseram tudo o que eu precisava saber. Não fiquei surpresa quando Nathan me contou que ela era
magistrada.
Ela achava que seria uma boa ideia se eu não deixasse
Will sozinho da próxima vez, não importando quão desagradável fosse a situação,
hum? E
que, na próxima vez que eu tirasse o pó dos móveis, eu poderia me certificar de que os objetos não estivessem tão na beirada de
modo a evitar que caíssem acidentalmente no chão, hum?
(Ela parecia preferir crer que aquilo fora um acidente). A Sra. Traynor fazia
com que eu me sentisse uma idiota de primeira categoria e, consequentemente,
foi isso que me tornei quando estava perto dela. Ela sempre chegava quando eu
tinha acabado de deixar alguma coisa cair no chão, ou estava lutando com os
botões do fogão, ou então ela estava de pé na entrada, aparentando um pouco de
irritação quando eu pisava de volta na casa depois de buscar lenha lá fora,
como se eu tivesse ido muito mais longe do que de fato eu tinha ido.
Estranhamente, o comportamento da Sra. Traynor me atingia
mais do que a agressividade de Will. Em algumas ocasiões, tive vontade de
perguntar abertamente se havia algo errado. Você
disse que estava me contratando mais pela minha postura do que por minhas
habilidades profissionais, eu
quis dizer. Bem, aqui estou
eu, sendo animada a cada dia duro. Sendo forte, como você queria. Então, qual é
o seu problema?
Mas Camilla Traynor não era o tipo de mulher para quem se
podia dizer isso. Além do mais, eu achava que ninguém naquela casa falava
qualquer coisa diretamente para outra pessoa.
— Lily, a nossa última garota, tinha o inteligente hábito
de usar uma mesma panela para cozinhar dois legumes de uma vez. — O que significava: Você
está fazendo muita bagunça.
“Talvez você queira uma xícara de chá, Will” significava Não
faço a menor ideia do que falar para você, Will.
“Acho que tenho alguns papéis para organizar” significava Você
está sendo grosseiro, vou sair do quarto.
Tudo isso dito com aquela expressão levemente sofrida e
os dedos delgados movendo de um lado para o outro o crucifixo na corrente. Ela era contida demais, reprimida demais.
Fazia minha mãe se parecer com a Amy Winehouse. Eu sorria educadamente, fingindo
que não havia reparado, e fazia o que era paga para fazer.
Ou, pelo menos, tentava.
— Por que, raios, você está tentando esconder cenouras no
meu garfo?
Dei uma olhada para o prato. Eu estava assistindo a
apresentadora na TV e pensando como meu cabelo ficaria tingido na cor do dela.
— Hein? Não tentei.
— Tentou. Você amassou as cenouras e tentou escondê-las
no molho da carne. Eu vi.
Enrubesci. Ele tinha razão. Eu estava dando comida a Will
enquanto assistíamos, meio distraídos, ao noticiário da hora do almoço. A
refeição era rosbife com purê de batatas. A mãe de Will tinha dito para colocar
três tipos de legumes no prato, embora ele tivesse deixado bem claro que não
queria legumes naquele dia. Acho que não existia uma única refeição que eu
fosse instruída a preparar que não fosse milimetricamente balanceada em termos
nutricionais.
— Por que você está querendo me contrabandear cenouras?
— Não quero.
— Quer dizer que não tem cenoura aí?
Olhei para os pedacinhos cor de laranja.
— Bom... está certo...
Ele estava esperando, sobrancelhas erguidas.
— Hum... acho que pensei que legumes poderiam fazer bem a
você.
Fiz isso em parte em obediência à Sra. Traynor e em parte
por hábito. Eu costumava dar comida para Thomas, cujos legumes precisavam ser
amassados e escondidos em montes de batata, ou ocultados em bocados de
macarrão. Cada pedacinho que passava por ele era como uma pequena vitória.
— Deixe-me ver se entendi. Você acha que uma colher de
chá de cenoura vai melhorar minha qualidade de vida?
De fato, era muito idiota quando ele colocava a coisa
daquele jeito. Mas eu tinha aprendido que era importante não parecer intimidada
por nada que Will dissesse ou fizesse.
— Entendi seu ponto — falei, calma — não farei de novo.
E então, do nada, Will Traynor riu. Explodiu de dentro
dele num arquejar, como se tivesse sido totalmente inesperado.
— Pelo amor de Deus. — Ele balançou a cabeça.
Encarei-o.
— O que mais você tem escondido na minha comida? Daqui a
pouco vai dizer para eu abrir o túnel e o Sr. Trem vai levar um pouco de brotos
de couve-de-bruxelas até a próxima estação.
Pensei naquilo por um minuto.
— Não — disse eu, séria — eu só lido com o Sr. Garfo, e
ele não se parece com um trem.
Alguns meses antes, Thomas tinha me dito isso, bem firme.
— Minha mãe mandou você fazer isso?
— Não. Olhe, Will, desculpe. Eu... não estava
raciocinando.
— Como se isso alguma vez acontecesse.
— Tudo bem, tudo bem. Vou tirar as benditas cenouras, se
incomodam tanto a você.
— Não são as benditas cenouras que me incomodam, mas sim
tê-las escondidas em minha comida por uma mulher maluca que chama os talheres
de Sr. e Sra. Garfo.
— Era uma brincadeira. Olhe, deixe eu tirar as cenouras e...
Ele virou a cara.
— Não quero mais nada. Só faça uma xícara de chá para
mim. — Saí da sala e ele berrou: — E não tente colocar uma porcaria de uma
abobrinha no chá.
Nathan entrou quando eu estava terminando com os pratos.
— Ele está de bom humor — disse, quando lhe entreguei uma
caneca de chá.
— Está? — Eu estava comendo meus sanduíches na cozinha.
Estava muito frio lá fora e de algum modo a casa não parecia tão hostil nos
últimos tempos.
— Ele disse que você está querendo envenená-lo. Mas disse...
você sabe... de um jeito legal.
Fiquei estranhamente satisfeita com a notícia.
— É... bom... — disse eu, tentando esconder o que eu
sentia — preciso de tempo.
— Ele também tem falado um pouco mais. Havia semanas em
que mal dizia uma palavra, mas nos últimos dias ele anda definitivamente mais a
fim de conversar.
Pensei em Will dizendo que, se eu não parasse com aquela
porcaria de assovio, ele teria de me despedir.
— Acho que a noção de conversa dele é pouco diferente da
minha.
— Bom, nós conversamos um pouco sobre críquete. E vou lhe
dizer... — Nathan baixou a voz — Há mais ou menos uma semana, a Sra. T.
perguntou se eu achava que você estava indo bem. Eu disse que achava você muito
profissional, mas eu sabia que não era isso que ela queria saber. Então, ontem
ela me disse que tinha ouvido vocês dois rindo.
Lembrei da tarde anterior.
— Ele estava rindo de
mim — expliquei.
Will tinha achado muito engraçado que eu não soubesse o
que era pesto.
Eu disse que o jantar seria “macarrão com molho verde”.
— Ah, ela não se importa com isso. É que há muito tempo
ele não ri de alguma coisa.
Era verdade. Parecia que Will e eu tínhamos encontrado um
jeito mais simples de conviver. O que girava em torno, principalmente, de ele
ser rude comigo e de eu, de vez em quando, devolver a grosseria. Will dizia que
eu tinha feito algo errado e eu perguntava se aquilo era da conta dele, então
ele falava de maneira educada. Ele me xingava, ou dizia que eu era um pé no
saco, e eu respondia que ele poderia tentar ficar
sem aquele pé no saco específico.
Era meio exagerado, mas parecia funcionar para ambos os lados. Às vezes,
parecia até um alívio para ele que houvesse alguém preparado para tratá-lo mal,
contradizê-lo ou alertá-lo para o fato de que estava sendo desagradável.
Eu tinha a sensação de que, desde o acidente, todo mundo
andava na ponta dos pés ao redor dele, exceto talvez Nathan, a quem Will
parecia tratar com um respeito maquinal e que provavelmente não se incomodaria
de todo modo com nenhum dos comentários afiados de Will. Nathan era um veículo
blindado em forma de homem.
— Você deve procurar continuar sendo o alvo das piadas
dele, certo?
Coloquei minha caneca na pia.
— Acho que isso não será um problema.
A outra grande mudança, além das condições atmosféricas
no interior da casa, era que Will não pedia para ficar
sozinho tanto quanto antes, e em algumas tardes até me perguntava se eu queria ficar e assistir a um filme
com ele. Não me incomodei muito quando foi a vez de O
exterminador do futuro –
embora eu já tivesse assistido a todos os filmes
da série – mas quando ele me mostrou o filme
francês legendado, dei uma rápida olhada na capa e disse que achava que eu
preferia deixar passar aquele.
— Por quê?
Dei de ombros.
— Não gosto de filme legendado.
— É o mesmo que não gostar de filmes com atores. Não seja ridícula. Do que você não
gosta? De precisar ler ao mesmo tempo que vê alguma coisa?
— Eu só não gosto mesmo de filme estrangeiro.
— Qualquer filme
que não se enquadre no festival de cinema local é estrangeiro. Você acha que Hollywood
é um subúrbio de Birmingham?
— Muito engraçado.
Ele não acreditou quando eu admiti
que nunca tinha visto
um filme legendado. Mas meus
pais costumavam monopolizar o controle remoto à noite e era tão
plausível que Patrick
assistisse a um filme estrangeiro quanto
seria sugerir que nós nos matricularíamos em aulas noturnas de crochê. O
multiplex na cidade mais próxima da nossa só passava os últimos filmes
de tiroteio ou comédias românticas e ficava tão lotado de crianças
encapuzadas perturbando durante
a sessão que a maioria das pessoas que moravam perto da cidade nem se
dava o
trabalho de ir ao cinema.
— Você precisa assistir a esse filme, Louisa. Na verdade, isso é uma ordem. — Will moveu
sua cadeira de rodas para trás e fez sinal com a cabeça em direção à poltrona. —
Ali. Sente-se ali. Não se mexa até que termine. Nunca assistiu a um filme estrangeiro! Pelo amor de Deus — resmungou ele.
Era um filme
antigo sobre um corcunda que herda uma casa no interior da França e Will disse
que era baseado num livro famoso, mas posso dizer que eu nunca ouvi falar nele.
Passei os primeiros vinte minutos me sentindo meio irrequieta, irritada com as legendas
e pensando se Will ia ficar ofendido se eu dissesse que precisava ir ao
banheiro.
E então, aconteceu uma coisa. Parei de pensar em como era
difícil ouvir e ler ao mesmo tempo, esqueci os horários dos remédios de Will e
mesmo se a Sra. Traynor poderia pensar que eu estava sendo indolente, e comecei
a ficar nervosa pelo pobre homem
e sua família, que estavam sendo enganados por vizinhos inescrupulosos.
Quando o Corcunda morreu, eu soluçava baixinho, limpando
a coriza que se espalhava com a manga da minha blusa.
— Então — disse Will, surgindo ao meu lado. Deu uma
olhadela furtiva na minha direção — você não gostou mesmo.
Olhei para ele e descobri, para minha surpresa, que lá
fora estava escuro.
— Você agora vai tripudiar, não é? — resmunguei, pegando
a caixa de lenços de papel.
— Um pouco. Estou pasmo que você tenha alcançado a madura
idade de... quanto mesmo?
— Vinte e seis.
— Vinte e seis anos sem nunca ter visto um filme legendado. — Ele me observou enxugar os olhos.
Vi o lenço de papel e percebi que não tinha restado rímel
em meus olhos.
— Não pensei que fosse obrigatório — rosnei.
— Certo. Então o que você faz, Louisa Clark, se não
assiste a filmes?
Amassei o papel.
— Você quer saber o que eu faço quando não estou aqui?
— Foi você que quis que nos conhecêssemos. Então, vamos
lá, fale sobre você.
Ele tinha aquele jeito de falar que não nos deixava saber
se estava zombando ou não.
Eu esperava o troco.
— Por que, de repente, ficou interessado?
— Ah, pelo amor de Deus. Sua vida social não é segredo de
Estado, é? — Ele começou a parecer irritado.
— Sei lá o que faço... — respondi. — Saio para beber em
um pub. Assisto um pouco de TV. Vou ver meu namorado correr. Nada demais.
— Vai ver seu namorado correr.
— É.
— Mas você mesma não corre.
— Não. Na verdade, eu não... — Olhei para o meu tórax. — ...
não levo jeito.
Isso fez com que ele sorrisse.
— E o que mais?
— Como assim, o que mais?
— Tem hobbies? Viaja? Lugares onde gosta de ir?
Ele estava começando a soar como o meu velho orientador
vocacional.
Tentei pensar.
— Não tenho hobbies. Leio um pouco. Gosto de roupas.
— Conveniente — disse ele, seco.
— Você perguntou. Não sou uma pessoa de hobbies. — Minha
voz ficou estranhamente
defensiva. — Não faço muita coisa, certo? Trabalho e vou para casa.
— Onde você mora?
— Do outro lado do castelo. Na Renfrew Road.
Ele pareceu pasmo. Claro. Havia pouca gente transitando
entre os dois lados do castelo.
— É depois da rodovia com pista dupla. Perto do
McDonald’s.
Ele balançou a cabeça, embora eu não estivesse certa de
que ele realmente conhecia o lugar de que eu estava falando.
— Férias?
— Fui à Espanha com Patrick. Meu namorado — acrescentei.
— Quando eu era pequena, só íamos a Dorset. Ou Tenby. Minha tia mora lá.
— E o que você quer?
— O que eu quero do quê?
— Da vida?
Pisquei.
— Isso é um pouco íntimo, não?
— O que você quer no geral. Não estou pedindo para se
autoanalisar. Só estou perguntando o que você quer. Casar? Ter alguns
pestinhas? Sonha com alguma profissão? Gostaria de viajar pelo mundo?
Fez-se uma longa pausa.
Acho que eu sabia que minha resposta o desapontaria mesmo
antes de eu dizer aquelas palavras.
— Não sei. Nunca pensei nisso.
*
* *
Na sexta-feira, fomos ao hospital. Fiquei feliz por só
ter sido avisada da consulta quando cheguei para trabalhar de manhã, pois teria
ficado acordada a noite inteira preocupada se soubesse que
ia de levá-lo de carro até lá. Claro que sei dirigir. Mas posso dizer que dirijo
do mesmo jeito que falo francês. Sim, fiz
o exame de habilitação e passei. Mas, desde então, não usei essa habilidade
específica mais que uma vez por
ano. A ideia de colocar Will e sua cadeira de rodas na minivan adaptada,
levá-lo e trazê-lo da cidade vizinha me enchia de terror.
Durante semanas, desejei que meu dia de trabalho
envolvesse algum tipo de fuga daquela casa. Mas, naquele momento, eu teria
feito qualquer coisa para ficar
ali dentro.
Encontrei um cartão do hospital no meio da pasta com seus
documentos, que tinha grossas divisórias intituladas Transporte, Seguro, Viver com Deficiência
e Compromissos. Peguei o cartão e verifiquei
que a data que estava nele era a de hoje.
Uma parte de mim esperava que Will estivesse errado.
— Sua mãe vai conosco?
— Não. Ela não acompanha as consultas.
Não consegui esconder minha surpresa. Eu havia pensado
que ela quisesse supervisionar cada aspecto do tratamento dele.
— Ela costumava ir — disse Will. — Agora temos um acordo.
— Nathan vai?
Eu estava ajoelhada na frente dele. Fiquei tão nervosa
que deixei cair um pouco do almoço em sua calça, e tentava inutilmente esfregar
aquilo, de modo que uma boa parte de sua roupa estava ensopada. Will não disse
nada, apenas mandou eu parar de me desculpar, o que não ajudou muito com meu
estado geral de nervosismo.
— Por quê?
— Por nada. — Eu não queria que ele soubesse quão
amedrontada eu estava.
Passei a maior parte daquela manhã (tempo que em geral
usava para limpar as coisas) lendo e relendo o manual de instruções do
dispositivo para içar a cadeira no carro, mas eu ainda estava apavorada com o
momento em que seria a única responsável por levantá-lo na cadeira a meio metro
do chão.
— Ora, Clark. Qual é o problema?
— Está bem. Eu só... eu só achei que seria mais fácil se,
na primeira vez, alguém que estivesse a par das coisas fosse também.
— Ao contrário de mim — disse ele.
— Não foi o que eu quis dizer.
— Acha que não sei me cuidar?
— Você opera o içador de cadeira? — perguntei, grosseiramente.
— É capaz de me dizer exatamente o que eu preciso fazer?
Ele ficou
me olhando no mesmo nível. Se estivera procurando briga, parecia que tinha
mudado de ideia.
— Você venceu. Sim, Nathan vai. Ele é um par extra de
mãos bastante útil. Além disso, achei que você ficaria menos nervosa se ele
fosse também.
— Não estou nervosa — protestei.
— É evidente que não. — Ele olhou para o próprio colo,
que eu ainda esfregava com um pano. Eu conseguira tirar o molho de macarrão,
mas Will estava encharcado. — Então, eu vou sair na rua parecendo sofrer de
incontinência urinária?
— Não terminei. — Liguei o secador de cabelos e
direcionei o bocal para o meio das pernas dele.
No momento em que o ar quente atingiu suas calças, suas
sobrancelhas se ergueram.
— Sim, bem... — falei. — Também não era o que eu
planejava fazer numa tarde de sexta-feira.
— Você está mesmo tensa, não é?
Eu podia sentir que ele me observava.
— Ah, anime-se, Clark. Sou eu que estou recebendo ar
escaldante nos genitais.
Não respondi. Ouvi a voz dele por cima do barulho do
secador.
— Vamos lá, qual é a pior coisa que poderia me acontecer:
acabar numa cadeira de rodas?
Pode parecer idiota, mas não consegui não rir. Era o mais
perto que Will chegara de realmente tentar fazer algo para me animar.
*
* *
Do lado de fora, o carro parecia um
veículo comum, mas
quando se abria a porta traseira, uma rampa descia pela lateral e se
nivelava
com o chão. Com Nathan acompanhando, guiei a cadeira de uso externo
(Will tinha
uma só para viagens) precisamente até em cima da rampa, conferi o freio
elétrico e programei para que Will fosse içado devagar para dentro do
carro.
Nathan deslizou para o banco do passageiro, colocou o cinto em Will e
verificou as rodas. Tentando fazer com que minhas mãos parassem
de tremer, soltei o freio de mão do carro e dirigi devagar pelo caminho
até o hospital.
Longe de casa, Will pareceu encolher um pouco. Fazia frio
e Nathan e eu o enrolamos num cachecol e num casaco grosso, mas ele continuou
calado, o maxilar endurecido, de certa forma oprimido pela vastidão ao seu
redor. Toda vez que eu olhava no espelho retrovisor (o que acontecia com
frequência – mesmo com Nathan lá, eu estava morrendo de medo de que a cadeira
se soltasse da amarração), ele estava espiando para fora da janela com uma expressão
insondável. Mesmo quando eu parava ou freava forte, o que ocorreu várias vezes,
ele apenas estremecia um pouco e esperava que eu prosseguisse.
Quando chegamos ao hospital, uma fina camada de suor
cobria meu corpo. Percorri o estacionamento do hospital três vezes, apavorada
demais para dar marcha a ré mesmo na maior das vagas, até que eu percebi que
Nathan e Will estavam começando a perder a paciência. Então, finalmente, desci a rampa da cadeira de rodas e Nathan ajudou
Will a sair.
— Bom trabalho — disse Nathan, dando um tapinha nas
minhas costas ao sair do carro, mas achei difícil acreditar que fora mesmo um
bom trabalho.
Há coisas que você não percebe até acompanhar uma pessoa
numa cadeira de rodas. Uma delas é como a maioria dos calçamentos é
malconservada, com buracos mal remendados ou desnivelada. Andando devagar ao
lado de Will enquanto ele mesmo dirigia a cadeira, notei que cada laje em
desnível causava nele uma dolorosa chacoalhada, ou como ele frequentemente
precisava se desviar com cuidado de algum obstáculo em potencial. Nathan fingia não notar, mas eu vi que ele também observava.
Will estava apenas sério e decidido.
A outra coisa é como a maioria dos motoristas é
desatenta. Param em cima da calçada ou tão perto de outro carro que é impossível
para alguém em uma cadeira de rodas atravessar a rua. Fiquei pasma, algumas
vezes até pensei em deixar um bilhete grosseiro espetado no limpador de
para-brisa, mas Nathan e Will pareciam estar acostumados. Nathan mostrou um
lugar onde dava para atravessar e enfim
conseguimos, cada um de nós flanqueando Will.
Ele não disse uma única palavra desde que saímos de casa.
O hospital era um prédio baixo e reluzente, cuja recepção
imaculada parecia com um desses hotéis modernosos, talvez para provar que se tratava
de um hospital particular. Recuei enquanto Will dizia seu nome para a
recepcionista, e então segui Nathan e ele por um longo corredor. Nathan
carregava uma enorme mochila com tudo o que Will podia precisar durante aquela
rápida visita, desde copos especiais até roupas extras. Ele havia feito a
mochila na minha frente durante a manhã, detalhando cada possível
eventualidade.
— Acho bom que não precisemos fazer isso sempre — disse
ele, surpreendendo minha expressão assustada.
Não acompanhei a consulta. Nathan e eu nos recostamos nas
confortáveis cadeiras do lado de fora da sala do médico. O lugar não tinha
aquele cheiro de hospital e havia um jarro com flores
frescas no peitoril da janela. E não eram flores
comuns. Eram enormes coisas exóticas cujo nome eu desconhecia, artisticamente
arrumadas em buquês minimalistas.
— O que eles estão fazendo lá dentro? — perguntei, depois
que estávamos lá havia meia hora.
Nathan levantou os olhos do livro.
— É apenas o check-up semestral.
— Para ver se ele está melhorando?
Nathan pousou o livro.
— Não vai melhorar. Ele tem uma lesão na coluna.
— Mas você faz fisioterapia e outras coisas com ele.
— Para manter as condições físicas, para os músculos não
atrofiarem, os ossos não desmineralizarem,
evitar trombose nas pernas, essas coisas.
Quando voltou a falar, sua voz era suave, como se achasse
que podia me desapontar.
— Ele não vai mais andar, Louisa. Isso só acontece nos filmes de Hollywood. Tudo o que fazemos é tentar evitar que
sinta dor e manter os movimentos que ele tem.
— Ele faz essas coisas com você? As coisas de fisioterapia? Parece que ele não quer fazer nada do que eu
sugiro.
Nathan franziu o nariz.
— Sim, ele faz as coisas, mas acho que sem emoção. Quando
comecei, ele estava muito determinado. Mergulhou fundo na reabilitação, mas,
depois de um ano sem melhoras, acho que concluiu que era muito difícil
continuar acreditando que isso funcionaria.
— Acha que ele deve continuar?
Nathan olhou para o chão.
— Sinceramente? Ele é um tetraplégico com lesão em C5 e
C6. Isso significa que nada funciona
abaixo daqui, mais ou menos... — Nathan colocou a mão na parte superior do
tórax. — Os médicos ainda não conseguiram descobrir como consertar a medula
espinhal.
Olhei para a porta, pensando na expressão de Will no
percurso ensolarado de inverno, e no rosto alegre do homem esquiando naquelas
férias.
— No entanto, ainda há muitos tipos de avanços médicos,
não? Quer dizer... em algum lugar como este aqui... devem estar trabalhando
nessas coisas o tempo todo.
— É um hospital muito bom — disse ele, calmamente.
— Onde há vida, há esperança, não é assim?
Nathan olhou para mim e depois voltou-se para seu livro.
— Sem dúvida — concordou.
*
* *
Às quinze para as três, fui pegar um café a pedido de
Nathan. Ele disse que aquelas consultas podiam demorar e que montaria guarda no
forte até que eu voltasse. Circulei um pouco pela recepção, folheei umas
revistas na banca de jornais, me demorando nas barras de chocolate.
E, como era de se esperar, me perdi na volta e tive de
perguntar a várias enfermeiras para onde eu deveria ir. Duas delas não tinham
ideia. Quando consegui chegar, com o café esfriando em minhas mãos, o corredor
estava vazio. Ao me aproximar, pude ver que a porta do consultório estava
escancarada. Hesitei do lado de fora, mas agora eu escutava a voz da Sra.
Traynor em minhas orelhas o tempo todo, criticando-me por não ficar com ele. Eu
tinha feito de novo.
— Então, nos veremos daqui a três meses, Sr. Traynor —
dizia uma voz masculina. — Dosei os remédios antiespasmódicos e vou garantir
que alguém telefone para o senhor com o resultado dos exames. Provavelmente na
segunda-feira.
Ouvi a voz de Will.
— Posso comprar esses remédios na farmácia lá de baixo?
— Sim. Aqui mesmo. Eles também devem ter um pouco mais
desses.
Uma voz de mulher.
— Posso pegar a pasta?
Percebi que eles deviam estar prestes a sair. Bati na
porta e alguém disse para eu entrar. Dois pares de olhos giraram em minha
direção.
— Sinto muito — disse o médico, levantando-se —, pensei
que fosse o fisioterapeuta.
— Sou a... ajudante de Will — falei, segurando na porta.
Will estava inclinado na cadeira de rodas enquanto Nathan vestia a camisa nele.
— Desculpe... pensei que estivesse pronto.
— Um minuto, pode ser, Louisa? — A voz de Will cortou a
sala.
Murmurando desculpas, saí com o rosto queimando.
O que me chocou não foi ver o corpo de Will descoberto,
magro e cheio de escaras. Não foi o olhar vagamente irritado do médico, do
mesmo gênero que a Sra. Traynor me lançava todos os dias – um olhar que me
convencia de que eu continuava a ser a abominável mulher das neves, mesmo
ganhando mais por hora.
Não, o que me chocou foram as marcas vermelhas arroxeadas
nos pulsos dele, as compridas e denteadas cicatrizes que não podiam ser
disfarçadas, por mais rápido que Nathan puxasse as mangas da camisa.
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