Lembro exatamente do dia em que perdi o medo.
Foi há quase sete anos, nos últimos
dias quentes e preguiçosos de julho, quando as ruas estreitas ao redor
do castelo estavam apinhadas de turistas e eram preenchidas pelo barulho
dos passos ociosos e dos sinos das onipresentes vans de sorvete que se
enfileiravam no alto da colina.
Minha avó tinha morrido um mês
antes, após uma longa doença, e o verão acabou revestido por uma fina
camada de tristeza que tirava a graça de tudo o que fazíamos, levando
Treena e eu a perdermos nossa tendência para o drama e a cancelar nossa
rotina de verão com pequenas folgas e dias ao ar livre. Minha mãe
passava quase todos os dias lavando louça, as costas tensas devido ao
esforço de tentar conter as lágrimas; já papai, saía toda manhã para o
trabalho com uma cara decidida e séria e voltava horas depois com o
rosto brilhando de suor e parecia incapaz de falar uma palavra antes de
abrir uma cerveja com um estalido. Minha irmã havia chegado em casa após
seu primeiro ano na universidade, mas seus pensamentos estavam bem
longe da nossa cidadezinha. Eu tinha vinte anos e iria conhecer Patrick
em menos de três meses. Era um daqueles raros verões de total liberdade,
sem responsabilidades financeiras, sem dívidas, sem hora marcada com
ninguém. Eu tinha um emprego temporário e todo o tempo do mundo para
aprimorar minhas técnicas de passar maquiagem, de usar salto alto, o que
causava estranhamento ao meu pai e, geralmente, o fazia questionar quem
eu era.
Na época, eu me vestia normalmente.
Ou, melhor dizendo, eu me vestia como as outras garotas da cidade:
cabelo comprido na altura dos ombros, jeans, camisetas bem justas para
mostrar a cintura fina e os seios fartos. Ficávamos horas retocando o
brilho nos lábios e esfumaçando a sombra nos olhos até ficar perfeita.
Qualquer roupa caía bem em nós, mas passávamos horas reclamando de
celulites e rugas inexistentes.
E eu tinha planos. Coisas que queria
fazer. Um dos rapazes que conheci no colégio fez uma viagem ao redor do
mundo e retornou, de alguma forma, mudado e irreconhecível, deixando de
ser o garoto de onze anos que fazia bolhas de cuspe durante as duas
aulas seguidas de francês. Num rompante, reservei passagens baratas para
a Austrália e estava à procura de alguém que quisesse ir comigo. Gostei
do jeito exótico e diferente que meu colega ganhou com a viagem. Ele
trouxe a brisa suave de um mundo vasto e estranhamente atraente. Afinal,
todos ali naquela cidadezinha sabiam tudo a meu respeito. E com uma
irmã como a minha, era impossível esquecer alguma dessas coisas.
Era uma sexta-feira e eu tinha
passado o dia todo trabalhando em um estacionamento com colegas do
colégio, acompanhando visitantes na feira de artesanato dos jardins do
castelo. Passamos o dia rindo e bebendo espumante debaixo do sol quente,
e os raios solares no céu azul batiam nas ameias do castelo. Acho que
não houve um só turista que não sorrisse para mim naquele dia. É difícil
alguém ficar sério com um grupo de garotas alegres e animadas.
Recebemos trinta libras de pagamento e os organizadores ficaram tão
satisfeitos com nosso serviço que deram mais cinco libras a cada uma de
nós. Comemoramos nos embebedando com alguns rapazes que trabalhavam no
distante estacionamento do centro de visitantes. Eles falavam muito,
usavam camisetas de rugby e cabelos despenteados. Um deles se
chamava Ed, dois estavam na faculdade (não consigo me lembrar em qual) e
também trabalhavam nas férias para ganhar um extra. Estavam cheios de
dinheiro depois de uma semana de trabalho e, quando o nosso acabou, eles
ficaram contentes de pagar bebidas para garotas locais já alegrinhas
com o álcool que agitavam os cabelos, sentavam no colo umas das outras,
davam gritinhos, brincavam e os elogiavam. Os rapazes pareciam falar uma
outra língua, comentavam de anos sabáticos e viagens pela América do
Sul no verão, de uma trilha de mochileiros na Tailândia e de quem iria
tentar um intercâmbio no exterior. Enquanto ouvíamos e bebíamos,
lembrei-me de minha irmã parada ao lado do quiosque de cerveja onde
estávamos deitados na grama. Treena usava o casaco com capuz mais velho
do mundo e estava sem maquiagem, e eu havia esquecido que ia
encontrá-la. Pedi para ela avisar aos nossos pais que eu voltaria depois
que fizesse trinta anos. Por alguma razão achei isso histericamente
engraçado. Ela levantou as sobrancelhas e saiu pisando firme como se eu
fosse a pessoa mais irritante de todas.
Quando o bar Red Lion fechou, nós
saímos e nos sentamos no jardim em forma de labirinto do castelo. Alguém
tinha conseguido passar pelos portões e, depois de muitos tropeços e
risadas, encontramos o caminho até o centro do labirinto e bebemos uma
sidra forte enquanto alguém passava um baseado pela roda. Lembro
de ficar olhando as estrelas, de me sentir sumindo nas profundezas do
infinito, à medida que o chão balançava e oscilava suavemente, como se
fosse o convés de um imenso navio. Alguém estava tocando violão, chutei
para longe na grama meus sapatos de salto alto de cetim rosa e nunca
mais voltei para buscá-los. Sentia que podia dominar o universo.
Só meia hora depois percebi que as outras garotas tinham ido embora.
Mais tarde, minha irmã me encontrou
no meio do labirinto, bem depois de as estrelas sumirem nas nuvens da
noite. Como eu disse, ela é muito inteligente. Pelo menos, mais que eu.
É a única pessoa que conheço que conseguia encontrar a saída do labirinto.
* * *
— Você vai achar graça. Fiz um cadastro na biblioteca.
Will estava apoiado sobre sua coleção de CDs. Virou a cadeira e esperou eu servir suco no seu copo.
— É mesmo? O que está lendo?
— Ah, nada especial. Você não ia gostar. É só uma historinha de amor, mas estou gostando.
— Outro dia mesmo você estava lendo o meu Flannery O’Connor. — Ele deu um gole no suco. — Quando eu estava doente.
— O livro de contos? Não sabia que você tinha percebido.
— Não tinha como não perceber. Você deixou o livro na mesa de cabeceira. Um lugar onde não consigo pegá-lo.
— Ah.
— Então não leia porcaria. Leve os contos de O’Connor para casa e os leia no lugar.
Eu ia recusar, mas não tinha por quê.
— Certo, devolvo assim que terminar.
— Clark, ponha uma música para mim?
— O que você quer?
Ele indicou com a cabeça e procurei nos CDs até achar.
— Tenho um amigo que é spalla na Sinfônica Albert. Ele ligou para dizer que vai tocar aqui perto, na próxima semana. Esse tipo de música. Você conhece?
— Não conheço nada de música clássica. Quer dizer, às vezes meu pai sintoniza nos Clássicos FM sem querer, mas...
— Você nunca foi a um concerto?
— Não.
Ele pareceu realmente chocado.
— Bom, uma vez fui ver Westlife,
mas não sei se isso conta. Foi minha irmã que escolheu. Ah, no meu
aniversário de vinte e dois anos ia assistir ao Robbie Williams, mas
tive uma intoxicação alimentar.
Will me olhou daquele jeito dele, o tipo de olhar que dava a entender que passei anos trancada num porão.
— Você devia ir a esse concerto. Ele me deu convites. Vai ser muito bom, leve sua mãe.
Eu ri e balancei a cabeça.
— Acho que não. Minha mãe nunca sai. E não é meu tipo preferido de programa.
— Da mesma forma que filmes com legendas não são seu tipo?
Franzi o cenho.
— Você não vai conseguir me mudar, Will. Isso não é My Fair Lady.
— Pigmalião.
— O que disse?
— A peça a que você se refere é Pigmalião. My Fair Lady é apenas um derivado adulterado.
Olhei bem para ele. Não adiantou. Coloquei o CD para tocar. Quando me virei, ele ainda balançava a cabeça.
— Você é uma grande esnobe, Clark.
— Eeeeu?
— Você recusa várias coisas porque acha que “não é esse tipo de pessoa.”
— Mas não sou mesmo.
— Como sabe? Você não fez nada, não foi a lugar algum. Como sabe que tipo de pessoa você é?
Como alguém como ele podia ter alguma ideia de quem eu era? Quase me irritei com ele por não entender de propósito.
— Vá ao concerto. Abra a sua cabeça.
— Não.
— Por quê?
— Porque não me sentiria à vontade. Eu sei que... que eles iam saber.
— Eles, quem? Saber o quê?
— Todo mundo saberia que eu sou diferente.
— Como acha que me sinto?
Nós nos entreolhamos.
— Clark, em todo lugar que vou, as pessoas ficam me olhando porque sou diferente.
Ficamos ali sentados em silêncio e a
música começou a tocar. O pai de Will falava ao telefone no corredor da
casa e o som de riso abafado chegou ao anexo como se viesse de longe. A entrada para deficientes é lá, disse a mulher no hipódromo. Como se ele pertencesse a outra espécie.
Olhei a capa do CD.
— Eu vou se você for comigo.
— Por que não vai sozinha?
— De jeito nenhum.
Continuamos ali, enquanto ele pensava no caso.
— Meu Deus, você é um saco.
— Você diz isso o tempo todo.
* * *
Dessa vez, não fiz planos. Não
estava esperando nada. Só queria que, após o fracasso da corrida de
cavalos, Will ainda tivesse disposição para sair do anexo. O amigo
violinista mandou os tais convites, um folheto com informações e o
endereço do evento. Ficava a quarenta minutos de carro. Cumpri com meu
dever e liguei antes para saber onde ficava o estacionamento de
deficientes físicos e a melhor maneira de conduzir Will até o local.
Eles reservariam lugares na primeira fila para nós e me sentaria numa cadeira dobrável ao lado dele.
— Na verdade, esse é o melhor lugar
que temos — disse a bilheteira, animada. — É mais impactante quando
se fica bem próximo ao fosso da orquestra. É onde eu mesma gostaria de
me sentar.
Ela perguntou até se queríamos que
alguém nos encontrasse no estacionamento para ajudar a chegar aos nossos
lugares. Com medo de Will achar que isso chamaria muito a atenção,
agradeci e disse que não seria preciso.
À medida que a noite foi chegando,
não sei quem ficava mais nervoso: Will ou eu. Eu lembrava do fracasso da
última saída e a Sra. Traynor não ajudava entrando e saindo do anexo
quatorze vezes para confirmar onde e quando era o evento e o que
faríamos exatamente.
A rotina vespertina de Will exige
certo tempo, ela disse. Ela precisava ter certeza que alguém estaria à
disposição para ajudar. Mas Nathan tinha outros compromissos naquele dia
e aparentemente o Sr. Traynor iria sair.
— Demora pelo menos uma hora e meia para prepará-lo — ela reforçou.
— E é incrivelmente entediante — acrescentou Will.
Percebi que ele estava procurando uma desculpa para não ir.
— Eu faço o que for preciso, basta
Will me dizer como. Não me incomodo de ficar aqui para ajudar. — Só
percebi o que estava aceitando depois que já tinha falado.
— Bom, nós dois estamos ansiosos
para isso — disse Will, amuado, depois que a mãe saiu. — Você vai dar
uma boa conferida no meu traseiro e então serei carregado por uma pessoa
que desmaia ao ver alguém nu.
— Eu não desmaio ao ver alguém nu.
— Clark, você é a pessoa que fica
mais desconfortável com o corpo humano que já vi. Parece até que acha
que contém elementos radioativos.
— Vamos pedir para a sua mãe dar banho em você, então — retruquei, ríspida.
— É, assim fico com mais vontade ainda de sair.
E ainda havia o problema da roupa. Eu não sabia o que vestir.
Usei a roupa errada para ir ao
hipódromo. Como ter certeza que não iria errar de novo? Perguntei a Will
o que devia vestir e ele me olhou como se eu fosse louca.
— As luzes estarão apagadas — explicou. — Ninguém vai olhar para você. Todos estarão atentos à música.
— Você não entende nada de mulher — falei.
Acabei trazendo no ônibus quatro roupas diferentes, penduradas na velha capa para ternos de meu pai. Era a única maneira.
Nathan chegou às cinco e meia para o
intervalo do chá e, enquanto ele cuidava de Will, fui para o banheiro
me arrumar. Primeiro, experimentei a roupa mais “artística”, um vestido
verde larguinho com enormes contas de âmbar aplicadas. Eu achava que as
pessoas que iam a concertos deviam ser bem artísticas e exibidas. Tanto
Will quanto Nathan olharam para mim assim que entrei na sala.
— Essa roupa, não — disse Will, direto.
— Parece algo que a minha mãe usaria — acrescentou Nathan.
— Você não me contou que era filho de Nana Moskouri — disse Will.
Os dois riram enquanto eu voltava para o banheiro.
A segunda roupa era um vestido preto
bem sério, de corte enviesado, gola e punhos brancos, que eu mesma
tinha feito. Para mim, ele era ao mesmo tempo chique e parisiense.
— Parece que você vai servir os sorvetes — disse Will.
— Nossa, colega, você daria uma boa
empregada doméstica — disse Nathan, elogiando. — Você devia usar essa
roupa em um evento diurno. Devia mesmo.
— Daqui a pouco vai pedir para ela espanar o rodapé.
— Já que você comentou, essa roupa está mesmo um pouco empoeirada.
— Amanhã, vocês dois tomarão chá com detergente.
Descartei a terceira roupa – calça
amarela de boca de sino – já prevendo que Will ia lembrar do ursinho
Rupert e sua calça amarela, então vesti a quarta opção, um antigo
vestido de cetim vermelho-escuro. O modelo fazia parte de uma fase minha
mais frugal e eu sempre rezava para o zíper passar pela minha cintura,
mas dentro dele ficava com a silhueta de uma estrela de cinema dos anos
1950. Era um vestido “sensação”, daqueles que fazem quem usa se sentir
bem. Coloquei um bolero prata sobre os ombros, cobri o decote com uma
echarpe de seda cinza, passei um batom combinando e entrei na sala.
— Ulalá — exclamou Nathan, admirado.
Will olhou o vestido de cima a
baixo. Só então vi que ele estava de terno. Barba feita e cabelo
penteado, o que o deixou muito bonito. Não consegui conter o sorriso ao
vê-lo.
Não tanto pela sua aparência, mas pelo esforço em se arrumar.
— É esse — disse ele. Sua voz estava inexpressiva e contida. E quando ajeitei a gola, ele completou: — Mas tire o bolero.
Tinha razão. Eu sabia que não estava muito bom. Tirei, dobrei com cuidado e o coloquei no encosto da cadeira.
— E a echarpe também.
Levei a mão ao pescoço.
— A echarpe? Por quê?
— Não combina. E parece que você está querendo esconder alguma coisa.
— Mas... assim todo o decote vai ficar aparecendo.
— E daí? — Ele deu de ombros. —
Escute, Clark, se for usar um vestido assim, tem que se sentir segura. É
preciso vesti-lo mental e fisicamente.
— Só você, Will Traynor, para dizer a uma mulher como ela deve usar um maldito vestido.
Acabei tirando a echarpe.
Nathan foi arrumar a bolsa de Will.
Estava pensando em fazer um comentário sobre como Will era controlador,
quando virei-me e vi que ele continuava me olhando.
— Você está ótima, Clark. De verdade — disse ele, baixinho.
* * *
Will causava quase sempre as mesmas
reações nas pessoas comuns – aquelas que Camilla Traynor provavelmente
chamaria de “classe operária”. A maioria ficava olhando. Algumas sorriam
solidárias, demonstravam apoio, ou me perguntavam, sussurrando, o que
tinha acontecido com ele. Muitas vezes eu tinha vontade de responder:
“Infelizmente foi atingido por um fuzil M16” só para ver qual seria a
reação delas, mas nunca fiz isso.
O problema com as pessoas de classe
média é que elas fingem que não estão olhando, mas estão. São muito
educadas para olhar descaradamente. Tinham o estranho hábito de olhar na
direção de Will determinadas a não enxergá-lo. Só depois que ele
passava, elas olhavam fixo, enquanto continuavam conversando com outra
pessoa qualquer. Mas não falavam sobre ele. Pois isso seria grosseiro.
Ao passarmos pelo saguão da Sala
Sinfônica, vi que as pessoas seguravam a bolsa e a programação do evento
em uma mão e um gim-tônica na outra. Elas reagiram com um suave
murmúrio que nos seguiu até nossos lugares. Não sei se Will percebeu. Às
vezes, eu achava que a única maneira de enfrentar isso era fazer de
conta que não estava notando.
Sentamos, as duas únicas pessoas na
primeira fila. À nossa direita havia outro cadeirante, conversando
animadamente com duas mulheres que o ladeavam. Olhei-os, torcendo para
que Will também os notasse. Mas ele olhava para a frente, a cabeça
afundada nos ombros como se tentasse se tornar invisível.
Não vai dar certo, uma voz baixinha me disse.
— Quer alguma coisa? — sussurrei.
— Não. — Ele balançou a cabeça. Engoliu em seco. — Na verdade, quero sim. Tem uma coisa pinicando no meu colarinho.
Inclinei-me e apalpei a parte de dentro do colarinho. Encontrei uma etiqueta de náilon. Puxei para arrancá-la, mas não consegui.
— A camisa é nova. Está incomodando muito?
— Não, eu só comentei para fazer graça.
— Tem alguma tesoura na bolsa?
— Não sei, Clark. Acredite se quiser, mas eu nunca arrumo a bolsa.
Não tinha tesoura alguma. Olhei para
trás, as pessoas ainda estavam chegando, conversando e consultando o
programa. Se Will não conseguisse relaxar e se concentrar na música,
nossa saída seria inútil. Não conseguiria suportar outro fracasso.
— Espere — pedi.
— Por que...
Antes que ele terminasse a frase,
inclinei-me na direção dele, puxei delicadamente o colarinho do pescoço e
mordi a etiqueta que estava incomodando. Fiquei alguns segundos
mordendo a etiqueta e fechei os olhos, tentando não sentir o cheiro de
homem limpo, o contato com a pele, a inconveniência do que estava
fazendo. Finalmente, arranquei-a. Afastei a cabeça e abri os olhos,
triunfante, com a etiqueta entre os dentes.
— Consegui! — exclamei, tirando a etiqueta dos dentes e jogando-a entre os assentos.
Will me fitou.
— O que foi?
Olhei para trás e vi todos da
plateia subitamente muito interessados no folheto de programação.
Depois, virei-me de volta para Will.
— Ah, não me diga que essas pessoas nunca viram uma garota dando umas mordidas no pescoço de um cara.
Tive a impressão de que meu
comentário o silenciara. Will piscou duas vezes, fez menção de balançar a
cabeça. Notei, achando graça, que o pescoço dele tinha ficado bem
vermelho.
Ajeitei a saia.
— De qualquer jeito, acho que devíamos agradecer por não ser uma etiqueta na calça.
Então, antes que ele pudesse
responder, a orquestra entrou no palco, os homens de smoking e as
mulheres de vestidos chiques. A plateia ficou em silêncio e não pude
conter uma onda de empolgação. Juntei as mãos no colo e empertiguei-me.
Começaram a tocar e, de repente, o teatro foi invadido por um único som –
o mais real e tridimensional que eu já tinha ouvido. Meus pelos se
arrepiaram e prendi a respiração.
Will me olhou de rabo de olho, ainda contendo o sorriso como há pouco. Sua expressão dizia: Combinado, vamos nos divertir.
O maestro parou, deu dois toques na tribuna com a batuta e fez-se silêncio absoluto.
Todos pararam e a plateia ficou
atenta, à espera. Ele então baixou a batuta e de repente a sala foi
tomada pelo som. Senti a música como se fosse algo físico que não
entrava só pelos meus ouvidos, mas fluía dentro de mim, me cercava,
fazia meus sentidos vibrarem. Estava toda arrepiada e minhas
mãos ficaram úmidas. Will não tinha falado que era assim. Pensei que
fosse ficar entediada. Mas aquela era a coisa mais linda que eu já tinha
ouvido.
E ainda fazia a minha imaginação
percorrer caminhos inesperados; sentada ali, pensei em coisas que não
passavam mais pela minha cabeça havia anos, fui invadida por velhas
emoções; novas ideias e pensamentos surgiam como se minha percepção se
ampliasse. Era quase excessivo, mas eu não queria que parasse.
Queria ficar sentada ali para sempre. Dei uma olhada em Will. Ele estava
enlevado, distraído. Virei-me para a frente, com um medo inesperado de
estar observando-o. Temia o que ele pudesse estar sentindo, o tamanho da
entrega, a extensão dos seus medos. A vida de Will Traynor era tão
diferente da minha. Quem era eu para dizer como ele deveria viver?
* * *
O amigo músico de Will mandou um
bilhete nos convidando para irmos ao camarim depois da apresentação, mas
Will não quis. Insisti, porém, pela tensão em suas mandíbulas, percebi
que ele realmente não estava com vontade. Não podia culpá-lo.
Lembrei como seus ex-colegas de
trabalho o olharam naquele dia: com um misto de pena, repulsa e, de
certa maneira, profundo alívio por terem sido poupados daquele golpe do
destino. Desconfiei que ele não suportava muito esse tipo de visita.
Esperamos a plateia esvaziar e então
empurrei sua cadeira até o elevador que dava para o estacionamento. Não
tive problemas para colocar Will no carro. Falei pouco, pois a música
ainda tocava na minha cabeça e eu não queria que parasse. Fiquei
pensando nela e em como o amigo de Will estava tão absorto pelo que
tocava. Eu não sabia que a música era capaz de fazer com que coisas
novas surgissem dentro da gente e de nos levar a lugares que nem o
compositor imaginou. Deixava uma marca no ar a nossa volta e era como
se, ao sair do concerto, você carregasse os resquícios consigo.
Sentada ali na plateia, por algum tempo, esqueci até que Will estava ao meu lado.
Chegamos ao anexo. Na nossa frente,
por cima do muro, surgia o castelo iluminado pela lua cheia,
observando-nos sereno do alto da colina.
— Quer dizer que você não gosta de música clássica?
Olhei pelo retrovisor. Will estava sorrindo.
— Não gostei nem um pouco.
— Eu vi.
— Não gostei especialmente daquele final, com o solo de violino.
— Percebi. Aliás, você detestou tanto que ficou com lágrimas nos olhos.
Sorri para ele.
— Adorei — disse. — Não sei se gosto
de todas as músicas clássicas, mas achei o concerto maravilhoso. —
Cocei o nariz. — Obrigada. Obrigada por me levar.
Ficamos em silêncio, olhando para o
castelo. À noite, ele em geral ganhava uma espécie de brilho alaranjado
dos holofotes dos muros da fortaleza. Mas nessa noite de lua cheia,
parecia imerso num azul etéreo.
— Que tipo de música eles ouviam naquele tempo? — perguntei. — Deviam ouvir algum tipo de música específico.
— No castelo? Música medieval.
Alaúdes, instrumentos de cordas. Não são os meus preferidos, mas posso
lhe emprestar alguns CDs, se quiser. Você devia dar uma volta no castelo
com fones de ouvido, se quiser viver a experiência completa.
— Não. Nunca vou ao castelo.
— É sempre assim, quando se mora perto de um ponto turístico.
Não cheguei a concordar. Continuamos ali mais um pouco, ouvindo o barulho do motor do carro cortar o silêncio.
— Muito bem — falei, soltando meu cinto de segurança. — Melhor entrarmos. A rotina da noite nos aguarda.
— Espere um instante, Clark.
Virei-me. O rosto de Will estava no escuro, não conseguia vê-lo direito.
— Espere um instante. Só um minuto.
— Está se sentindo bem? — Olhei para
a cadeira dele, com medo de estar esmagado ou preso em alguma parte, ou
de eu ter feito alguma coisa errada.
— Estou ótimo. É que...
Podia ver o colarinho claro da camisa em contraste com o terno escuro.
— Não quero entrar agora. Quero ficar sentado aqui e pensar que... — Engoliu em seco.
Mesmo no escuro, pareceu fazer esforço.
— Quero... ser apenas um homem que foi a um concerto com uma garota de vestido vermelho. Só por mais alguns minutos.
Larguei a maçaneta da porta.
— Claro.
Fechei os olhos, apoiei a cabeça no
encosto da cadeira e ficamos ali mais um pouco, duas pessoas perdidas
nas lembranças sonoras, meio ocultas à sombra de um castelo numa colina
iluminada pela lua.
* * *
Minha irmã e eu nunca falamos sobre o
que aconteceu naquela noite no labirinto. Acho que não teríamos
palavras. Ela ficou um pouco comigo, depois me ajudou a encontrar minhas
roupas e procurou em vão por meus sapatos na grama até eu dizer que não
tinha importância. De qualquer jeito, eu não ia mais usá-los mesmo.
Fomos andando para casa devagar: eu, descalça, as duas de braços dados, o
que não fazíamos desde que ela estava no primeiro ano da escola e mamãe
insistia para eu não largar dela.
Quando chegamos em casa, paramos no
vestíbulo, ela passou um lenço úmido no meu cabelo e nos meus olhos, e
só então abrimos a porta da frente e entramos como se nada tivesse
acontecido.
Papai ainda estava acordado, assistindo a um jogo de futebol.
— Meninas, isso são horas? — perguntou. — Sei que é sexta-feira, mas, mesmo assim...
— Tem razão, papai — nós dissemos, em coro.
Na época, o meu quarto era o que
hoje é do vovô. Subi rápido a escada e, antes que minha irmã pudesse
dizer alguma coisa, tranquei a porta.
Na semana seguinte, cortei o cabelo.
Cancelei a passagem aérea para a Austrália. Não saí mais com as garotas
da minha antiga escola. Mamãe estava muito deprimida para perceber e
papai nunca notava nada que acontecia em nossa casa, achava que a minha
nova mania de me trancar no quarto era devido a “problemas femininos”.
Eu andei pensando sobre quem eu era e concluí que era uma pessoa bem
diferente daquela garota risonha que se embebedava com estranhos. Era
alguém que não usava roupas que pudessem ser consideradas provocantes.
Ou de quem os frequentadores do Red Lion pudessem gostar.
A vida voltou ao normal. Comecei a trabalhar como cabeleireira, depois no The Buttered Bun e tudo aquilo ficou para trás.
Devo ter passado pelo castelo cinco mil vezes depois disso.
Mas nunca mais voltei ao labirinto nos jardins.
Nenhum comentário:
Postar um comentário