Nathan
Pensaram que nós não notaríamos.
Eles enfim chegaram do casamento no dia seguinte, por volta da hora do
almoço, e a Sra. Traynor estava tão nervosa que mal conseguia falar.
— Podiam ter telefonado — reclamou.
Eu tinha esperado somente para me
certificar de que os dois tinham chegado bem. Escutei ela caminhar pelo
corredor ladrilhado do cômodo ao lado, para cima e para baixo, desde que
eu cheguei ali, às oito da manhã.
— Devo ter ligado ou enviado
mensagens para os dois umas dezoito vezes. Apenas quando consegui ligar
para a casa dos Dewar e alguém me disse que o “homem na cadeira de
rodas” tinha ido para um hotel eu pude ter certeza de que vocês dois não
tinham sofrido um acidente horrível na estrada.
— “O homem na cadeira de rodas”? Que ótimo — observou Will.
Mas dava para perceber que ele
não ficou incomodado. Estava todo solto e relaxado, levando a ressaca
com bom humor, embora eu tenha tido a impressão de que sentia algum tipo
de dor. Foi só quando a mãe dele começou a atacar Louisa que ele parou
de sorrir. Ele se intrometeu e disse que, se a Sra. Traynor tinha algo a
dizer, deveria dizer a ele, já que a decisão de dormir no hotel tinha
sido dele, e Louisa apenas o acompanhara.
— E até onde eu saiba, mamãe, sendo
eu um homem de trinta e cinco anos, se eu quiser dormir num hotel, não
preciso pedir permissão a ninguém. Nem aos meus pais.
Ela olhou bem para os dois, resmungou algo sobre “um simples telefonema” e então saiu do quarto.
Louisa pareceu um pouco abalada, mas
Will tinha superado aquilo e murmurou algo para ela, e foi nesse ponto
que eu vi. Ela ficou um pouco rosada e riu, o tipo de risada que você dá
quando sabe que não se deveria estar rindo. O tipo de risada que
insinua conspiração. Will, então, virou-se para ela e disse para pegar
leve pelo resto do dia. Vá para casa, troque de roupa, tire uma soneca,
quem sabe.
— Não posso ficar dando voltas no castelo com alguém com quem acabei de dormir — disse ele.
— Com quem acabou de dormir? — Não pude conter a surpresa na voz.
— Não desse jeito — disse Louisa, batendo em mim com a echarpe e pegando o casaco para ir embora.
— Leve o carro — gritou Will. — Facilita a sua volta.
Observei o olhar de Will seguindo-a até a porta dos fundos.
Só por causa daquele único olhar, eu poderia apostar que sim.
Ele deu uma murchada depois que ela
saiu. Era como se tivesse aguentado até que tanto a mãe quanto Louisa
saíssem do anexo. Fiquei observando-o cuidadosamente e, quando o sorriso
sumiu do seu rosto, percebi que não gostava da sua aparência. A pele
ostentava um discreto aspecto manchado, ele estremeceu duas vezes quando
achou que ninguém via e, mesmo de onde eu estava, pude observar que
tinha arrepios. Um pequeno alarme começou a soar dentro da minha cabeça,
à distância, porém de maneira estridente.
— Você está se sentindo bem, Will?
— Estou ótimo. Não se preocupe demais.
— Quer me dizer onde está doendo?
Ele pareceu um pouco resignado,
então, como se soubesse que eu podia ver o que acontecia dentro dele.
Trabalhávamos juntos há bastante tempo.
— Ok. Estou com um pouco de dor de cabeça. E... hum... preciso trocar os cateteres. Provavelmente bem depressa.
Eu o transferi da cadeira para a cama e então comecei a juntar o equipamento.
— A que horas Lou trocou-os hoje de manhã?
— Ela não trocou. — Ele estremeceu. E pareceu meio culpado. — Nem na noite passada.
— O quê?
Tomei o pulso dele e peguei o
equipamento para medir sua pressão. Claro, a pressão estava nas alturas.
Coloquei minha mão na sua testa, ela voltou levemente molhada de suor.
Fui até o armário de remédios e esmaguei alguns vasodilatadores. Dei o
remédio misturado à água, garantindo que ele bebesse até a última gota.
Depois, apoiei-o, deixando suas pernas penderem da lateral da cama, e
mudei os cateteres rapidamente, observando-o ao fazer isso.
— Estou com D.A.?
— Está. Não foi a coisa mais sensata que já fez, Will.
Disreflexia autocontrolada, ou D.A.,
era o nosso pior pesadelo. Era a reação exagerada e massiva do corpo de
Will à dor e ao desconforto – ou, digamos, a um cateter que não foi
trocado – a tentativa vã e equivocada do sistema neurológico danificado
de manter o controle. Podia aparecer do nada e fazer o corpo dele entrar
em colapso. Will estava pálido, respirando com dificuldade.
— Como está a pele?
— Coçando um pouco.
— Visão?
— Ótima.
— Ai, cara. Acha que precisamos de ajuda?
— Preciso que me dê dez minutos, Nathan. Tenho certeza de que você fez tudo que era necessário. Apenas me dê dez minutos.
Fechou os olhos. Verifiquei a
pressão dele novamente, me perguntando quanto tempo eu deveria esperar
até chamar uma ambulância. A D.A. me apavorava como o capeta porque
nunca se sabia no que podia dar. Will já tinha tido isso uma vez, quando
comecei a trabalhar com ele, e acabou ficando hospitalizado por dois
dias.
— Sério, Nathan. Eu vou avisar se achar que estamos com problemas.
Ele suspirou e ajudei-o a se recostar de modo que pudesse repousar na cabeceira da cama.
Ele me contou que Louisa ficara tão bêbada que ele não quis arriscar deixá-la mexer em seu equipamento.
— Sabe-se lá aonde ela ia enfiar os
malditos cateteres. — Ele meio que riu quando disse isso. Louisa levara
quase meia hora para retirá-lo da cadeira de rodas e colocá-lo na cama,
contou. Os dois caíram no chão duas vezes. — Ainda bem que estávamos tão
bêbados que não sentimos nada. — Ela teve a presença de espírito de
chamar a recepção do hotel e eles pediram que um porteiro os ajudasse a
carregá-lo. — Ótimo sujeito. Tenho uma vaga lembrança de insistir com
Louisa para que lhe déssemos uma gorjeta de cinquenta libras. Eu sei que
ela estava completamente bêbada porque concordou em dar esse dinheiro.
Quando ela finalmente saiu do quarto
dele, Will teve medo de que não conseguisse chegar ao dela. Imaginou-a
enroscada na escada como uma bolinha vermelha.
Naquele momento, minha opinião sobre Louisa Clark era um pouco menos generosa.
— Will, companheiro, acho que, da próxima vez, você pode se preocupar um pouco mais consigo mesmo, certo?
— Estou bem, Nathan. Ótimo. Já estou me sentindo melhor.
Sentia seus olhos sobre mim enquanto eu checava seu pulso.
— Sério. Não foi culpa dela.
A pressão dele tinha baixado. As
cores estavam voltando ao normal diante dos meus olhos. Soltei uma
respiração que não sabia que estava prendendo.
Conversamos um pouco, passando o
tempo enquanto as coisas se assentavam, comentando os fatos do dia
anterior. Ele não pareceu nem um pouco chateado em relação à ex. Não
falou muito, mas, embora estivesse obviamente exausto, parecia bem.
Soltei o pulso dele.
— Linda tatuagem, aliás.
Ele me olhou torto.
— Não vá tomá-la ao pé da letra, hein?
Apesar da transpiração, da dor e da
infecção, pela primeira vez Will parecia ter em mente outra coisa que
não aquilo que o consumia. Não pude deixar de pensar que, se a Sra.
Traynor tivesse notado isso, não teria sido tão dura com ele.
* * *
Não contamos para ela nada sobre o
que aconteceu na hora do almoço – Will me fez prometer que não contaria –
mas quando Lou chegou à tarde, estava muito calada.
Parecia pálida, de cabelos lavados e
puxados para trás como se quisesse parecer ajuizada. Eu meio que podia
entender como ela se sentia; às vezes, quando você fica bêbado até altas
horas, só se sente bem de manhã porque ainda está um pouco bêbado.
A velha ressaca está só brincando com você, escolhendo a hora de atacar. Acho que a de Louisa a atacou na hora do almoço.
Porém, depois de um tempo, ficou claro que não era só a ressaca que a preocupava.
Will perguntou diversas vezes por que ela estava tão quieta, e então ela respondeu:
— É, bem, descobri que não é muito sensato dormir fora quando se acaba de mudar para a casa do namorado.
Ela disse isso sorrindo, mas foi um sorriso forçado, e Will e eu soubemos que houvera uma discussão.
Não dava para culpar o sujeito. Eu
não ia querer que a minha garota ficasse fora a noite toda com outro
cara, mesmo que ele fosse tetra. E ele nem sabia como Will olhava para
ela.
Naquela tarde, não fizemos muitas
coisas. Louisa esvaziou a mochila de Will e mostrou todos os xampus,
condicionadores, minikits de costura e toucas de banho que ela conseguiu
pegar no hotel. (“Não ria”, disse ela. “Com aqueles preços, Will pagou
por uma maldita fábrica de xampus.”) Assistimos a alguma animação
japonesa que Will disse ser perfeita para ressacas e fiquei por ali – em
parte, porque queria ficar de olho na pressão dele e, em parte, para
ser sincero, porque estava ficando um pouco malicioso. Queria ver a
reação de Will quando eu dissesse que assistiria ao desenho animado com
eles.
— É mesmo? — perguntou ele. — Você gosta de Miyazaki?
Ele se conteve imediatamente,
dizendo que com certeza eu ia gostar... era um filme ótimo...
blá-blá-blá. Mas estava claro. Por um lado, eu me sentia contente por
ele. Aquele homem tinha pensado sobre uma coisa só durante tempo demais.
Então, assistimos ao filme. Fechei
as cortinas, tirei o telefone do gancho e vi aquele estranho desenho
animado sobre uma garota que acabava indo parar num universo paralelo
com criaturas esquisitas, metade das quais você não consegue descobrir
se são boas ou más. Lou se sentou bem perto de Will, alcançando para ele
a bebida e, a certa altura, tirando um cisco do olho dele. Foi muito
tocante, de verdade, embora um pedaço de mim ficasse imaginando no que
diabo aquilo ia dar.
E então, quando Louisa abriu as
cortinas e preparou um chá para nós, os dois se entreolharam como duas
pessoas pensando se contam ou não um segredo, e me contaram sobre a
viagem. Dez dias. Ainda não sabiam para onde, mas provavelmente seria um
lugar bem longe e provavelmente seria ótimo. Eu poderia ir para ajudar?
Por acaso macaco recusa banana?
Tive de tirar o chapéu para a
garota. Se alguém tivesse me dito, quatro meses antes, que iríamos fazer
uma viagem com Will – diabo, que iríamos tirá-lo de dentro daquela casa
– eu teria dito que a pessoa estava louca. Veja bem, antes de irmos, eu
teria uma conversinha com Louisa sobre os cuidados médicos de Will. Não
poderíamos nos dar o luxo de quase o perdermos novamente, caso
ficássemos presos no meio do nada.
Eles até contaram da viagem para a
Sra. T., assim que ela apareceu, bem quando Louisa estava indo embora.
Will falou como se aquilo fosse tão normal quanto dar uma volta pelo
castelo.
Tenho de admitir que fiquei bastante
satisfeito. Aquele maldito site de pôquer que tinha comido todo o meu
dinheiro e eu não estava nem pensando em tirar férias este ano. Eu até
perdoei Louisa por ter sido estúpida o bastante para dar ouvidos a Will
quando ele disse que não queria que ela trocasse os cateteres. E,
acredite em mim, fiquei muito chateado com isso. Portanto, tudo parecia
ótimo, e eu estava assoviando enquanto vestia meu paletó, já pensando em
areias brancas e céu azul. Estava até imaginando se eu conseguiria
combinar a viagem com uma breve visita a Auckland, minha terra.
Foi então que as vi – a Sra. Traynor
do lado de fora da porta dos fundos, enquanto Lou esperava para começar
a descer a estrada. Não sei que tipo de conversa estavam tendo, mas as
duas pareciam sérias.
Só pude entender a última frase e, sinceramente, foi o suficiente para mim.
— Espero que saiba o que está fazendo, Louisa.
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