Exatos dez dias
depois, o carro do Sr. Traynor nos deixou no aeroporto de Gatwick,
Nathan arrastava nossa bagagem num carrinho enquanto eu checava
novamente se Will estava confortável – até que ele ficou irritado.
— Cuidem-se. E façam boa viagem —
recomendou o Sr. Traynor, colocando a mão no ombro de Will. — Não façam
muita bobagem. — E literalmente piscou para mim ao dizer isso.
A Sra. Traynor não pôde sair do
trabalho para ir também. Desconfio que, na verdade, ela não quis passar
duas horas num carro com o marido.
Will concordou com a cabeça, mas não
disse nada. Ele permanecera surpreendentemente quieto no carro, olhando
pela janela com seu olhar impenetrável, ignorando a conversa entre mim e
Nathan sobre o trânsito e o que já sabíamos que tínhamos nos esquecido
de levar.
Até atravessarmos o pátio eu não
estava muito segura de que fazíamos a coisa certa. A Sra. Traynor foi
totalmente contra a viagem. Mas, depois que ele concordou com o meu
plano reformulado, eu soube que ela teve medo de dizer que ele não
deveria ir.
Parecia estar com medo de falar
conosco naquela última semana. Ficava em silêncio perto de Will, falando
somente com os médicos. Ou se ocupava do jardim, podando as plantas com
uma eficiência assustadora.
— Alguém da companhia aérea deve nos
encontrar. Eles devem vir nos encontrar — afirmei, à medida que nos
encaminhávamos para o guichê do check-in, mexendo na minha papelada.
— Relaxe. É pouco provável que coloquem alguém na porta — disse Nathan.
— Mas a cadeira tem que ser
despachada como “equipamento médico frágil”. Conferi três vezes pelo
telefone com a mulher. E temos de ver se eles não vão implicar com o
equipamento médico de bordo de Will.
O serviço on-line de tetraplégicos
forneceu pilhas de informações, avisos, direitos e listas. Depois,
conferi três vezes seguidas com a empresa aérea que seríamos alocados em
assentos localizados na parte mais espaçosa da cabine e que Will
embarcaria primeiro e não sairia de sua cadeira motorizada até que
estivéssemos no portão de embarque. Nathan deveria ficar em solo,
retirar o controle remoto e colocar a cadeira em funcionamento manual, e
depois, cuidadosamente, deveria dobrar e fechar a cadeira, prendendo os
pedais. Ele acompanharia pessoalmente o despacho da cadeira, para
evitar que sofresse alguma avaria. Ela receberia etiquetas cor-de-rosa
para avisar os carregadores que era um aparelho muito delicado.
Reservamos três assentos seguidos para que Nathan pudesse dar a ajuda
médica de que Will precisasse sem contar com olhares curiosos. A empresa
aérea garantiu que os braços dos assentos levantavam, assim não
machucaríamos os quadris de Will ao transferi-lo da cadeira de rodas
para o assento do avião. Ele poderia ficar entre nós dois o tempo todo. E
seríamos os primeiros a desembarcar.
Tudo isso estava na minha lista
“aeroporto”. Era a página que vinha antes da lista “hotel”, mas depois
da lista “um dia antes da partida” e do itinerário. Mesmo com todas
essas garantias em ordem, eu me sentia enjoada.
Toda vez que olhava para Will, eu me
perguntava se tinha feito a coisa certa. Will recebera de seu clínico
geral a autorização para viajar somente na noite anterior.
Comera pouco e passara quase o dia
todo dormindo. Parecia cansado não só por causa da doença, mas exausto
com relação à vida, cansado das nossas interferências, das nossas
entusiasmadas tentativas de conversar, da nossa incansável determinação
em tentar melhorar as coisas para ele. Ele me suportava, mas eu tinha a
sensação de que, frequentemente, queria ficar sozinho. Ele não sabia que
essa era a única coisa que eu não o deixaria fazer.
— Ali está a moça da companhia aérea
— falei, quando uma jovem de uniforme, com um grande sorriso e uma
prancheta, veio rápido na nossa direção.
— Bom, ela vai ser muito útil na transferência — Nathan murmurou. — Parece que não consegue levantar um camarão congelado.
— Vamos dar um jeito — respondi. — Aqui entre nós, damos um jeito.
Tinha se tornado o meu bordão, desde
que decidi o que queria fazer. Desde minha conversa com Nathan no
anexo, fui tomada por um renovado entusiasmo em provar que todos estavam
errados. Só porque não podíamos fazer a viagem que planejei não queria
dizer que Will não pudesse fazer nada.
Acessei os sites de bate-papo na
internet e disparei perguntas. Que lugar seria bom para um agora bem
mais fraco Will se recuperar? Alguém sabia aonde podíamos ir? O clima
era a minha principal preocupação – o clima inglês era muito instável (e
não há nada mais deprimente do que um hotel à beira-mar com chuva).
Grande parte da Europa estava quente demais no fim de julho, o que
excluía as praias da Itália, da Grécia, do sul da França e outras
regiões litorâneas. Eu tinha uma visão, sabe?
Imaginava Will relaxando à
beira-mar. O problema era que, com tão pouco tempo para planejar e
embarcar, havia pouca chance de tornar tudo realidade.
Houve muitas mensagens solidárias, e
muitas, muitas histórias sobre pneumonia. Aquele parecia ser o fantasma
que assombrava a todos eles. Houve algumas sugestões de lugares aonde
ele poderia ir, mas nenhuma que me inspirasse. Ou, mais importante,
nenhuma sugestão que pudesse interessar a Will. Eu não queria spas, ou
lugares onde ele pudesse ver pessoas na mesma situação que ele. Eu não
sabia direito o que queria, mas revi as sugestões da lista de sugestões e
soube que nenhuma era adequada.
Foi Ritchie, aquele assíduo membro
do bate-papo, que acabou me ajudando. Na tarde em que Will saiu do
hospital, ele enviou uma mensagem:
Mande o seu e-mail. Meu primo é agente de viagens. Contei o caso para ele.
Liguei para o número que ele me deu e
falei com um homem de meia-idade, com forte sotaque de Yorkshire.
Quando ele me disse o que tinha em mente, um sininho de reconhecimento
soou em alguma parte das profundezas da minha memória. Duas horas
depois, tínhamos tudo arranjado. Fiquei tão grata a ele que poderia ter
chorado.
— Não tem de quê, garota — disse ele. — Apenas garanta que o seu amigo se divirta.
Dito isso, quando partimos, eu
estava quase tão cansada quanto Will. Tinha passado dias numa batalha
contra os menores requisitos para viagem de tetraplégicos, e até a manhã
da viagem, ainda não estava convencida de que Will estava bem o
suficiente para ir. Agora, sentada com a bagagem, olhava para ele,
desanimado e pálido no aeroporto movimentado e me perguntava de novo se
tinha me enganado. Por um breve momento senti pânico. E se ele adoecesse
outra vez? E se detestasse cada minuto, como aconteceu na corrida de
cavalos? E se eu tivesse entendido tudo errado e ele precisasse não de
uma viagem épica, mas de dez dias em casa, na própria cama?
Mas não dispúnhamos de dez dias sobrando. Era isso. Aquela era a minha única chance.
— Estão chamando o nosso voo — avisou Nathan, ao voltar do Duty Free. Olhou para mim, levantou uma sobrancelha e respirou fundo.
— Certo — respondi. — Vamos lá.
* * *
O voo em si, apesar das longas doze horas de duração, não foi a provação que eu temia.
Nathan provou ser muito eficiente em
fazer as rotinas de troca de Will escondido sob um cobertor. A equipe
de bordo foi solícita, discreta e cuidadosa com a cadeira. Will,
conforme o prometido, embarcou primeiro, foi transferido para sua
poltrona sem se machucar e ficou entre mim e Nathan.
Depois de uma hora de voo, percebi
que, estranhamente, acima das nuvens, uma vez amarrado o suficiente
para ficar estável em sua poltrona posta na posição inclinada, Will era
igual a todo mundo no avião. Preso na frente de uma tela, sem ter para
onde ir e nada para fazer a dez mil metros de altura, ele pouco se
destacava dos demais passageiros. Comeu e assistiu a um filme e,
principalmente, dormiu.
Nathan e eu sorrimos precavidos um
para o outro e tentamos nos comportar como se tudo estivesse bem, tudo
ótimo. Olhei para fora da janela, com as ideias tão confusas quanto as
nuvens abaixo de nós, ainda incapaz de pensar no fato de que aquilo não
era apenas um desafio logístico, mas uma aventura para mim – que eu, Lou
Clark, estava literalmente a caminho do outro lado do mundo. Eu não
enxergava isso. Não conseguia enxergar nada além de Will àquela altura.
Eu me senti como minha irmã assim que deu à luz Thomas. “É como se eu
estivesse vendo o mundo através de um funil” ela dissera, olhando para
aquele ser recém-nascido. “O mundo ficou reduzido apenas a mim e a ele.”
Ela tinha me mandado uma mensagem de texto quando eu estava no aeroporto.
Você consegue. Estou superorgulhosa de você. Bjs
Abri a mensagem de novo, só para
olhar para ela, sentindo-me subitamente emocionada, talvez pela escolha
das palavras. Ou talvez porque eu estava cansada, com medo e ainda
achando difícil acreditar que eu tinha conseguido nos levar tão longe.
Por fim, para bloquear meus pensamentos, liguei minha pequena TV,
olhando sem ver alguma série americana de humor até que o céu à nossa
volta escurecesse.
E então acordei com a aeromoça
parada à nossa frente, oferecendo o café da manhã, e notei que Will
estava conversando com Nathan sobre um filme a que tinham acabado de
assistir juntos e – surpreendentemente e contra todas as possibilidades –
estávamos a menos de uma hora do pouso nas Ilhas Maurício.
Acho que não acreditei que tudo
aquilo pudesse acontecer até que tivéssemos aterrissado no Aeroporto
Internacional Sir Seewoosagur Ramgoolam. Surgimos, meio grogues, no
portão de chegada, ainda enrijecidos pelo tempo de voo, e eu quase
chorei de alívio ao ver o motorista do táxi especialmente adaptado.
Naquela primeira manhã, quando o motorista nos levou rapidamente ao
resort, reparei muito pouco da ilha. Claro, as cores pareciam mais
fortes que as da Inglaterra, o céu era mais vívido, de um tom
azul-celeste que apenas se perdia de vista ficando mais e mais profundo
até o infinito.
Notei que a ilha era viçosa e verde,
margeada por quilômetros de canaviais, o mar surgindo como uma faixa de
mercúrio por entre as colinas vulcânicas. O ar tinha um matiz fumacento
e enérgico, o sol estava tão alto no céu que tive de semicerrar os
olhos na luz branca. No estado de exaustão em que me encontrava, era
como se me acordassem no meio das páginas brilhantes de uma revista.
Mas, mesmo com os meus sentidos
lutando contra o desconhecido, meu olhar se voltava repetidamente para
Will, para o seu rosto pálido, cansado, para a sua cabeça que parecia
estranhamente caída entre os ombros. Então, atravessamos uma entrada de
veículos ladeada de palmeiras, paramos do lado de fora de um prédio
baixo e o motorista saltou e descarregou nossa bagagem.
Recusamos o chá gelado e um passeio
pelo hotel. Encontramos o quarto de Will com a bagagem dele já
descarregada, o deitamos na cama e, quase antes de fecharmos as
cortinas, ele dormiu de novo. E ali estávamos nós. Eu tinha conseguido.
Saí do quarto, finalmente soltando um grande suspiro, enquanto Nathan
espiava pela janela a arrebentação branca atrás do recife de coral. Não
sei se foi a viagem, ou porque era o lugar mais lindo em que eu já tinha
estado na vida, mas meus olhos subitamente se encheram de lágrimas.
— Está tudo bem — disse Nathan,
vislumbrando minha expressão. Depois, o que foi totalmente inesperado,
ele se aproximou e me envolveu em um enorme abraço de urso. — Relaxa,
Lou. Tudo vai dar certo. Sério. Você fez tudo certo.
* * *
Precisei de quase três dias para
começar a acreditar nele. Will dormiu durante a maioria das primeiras
quarenta e oito horas – e então, espantosamente, começou a parecer
melhor. A pele recuperou a cor e ele perdeu as sombras azuladas ao redor
dos olhos. Os espasmos diminuíram e ele voltou a comer, percorrendo
devagar o interminável e extravagante bufê, dizendo o que ele queria que
eu colocasse no prato.
Soube que estava voltando a ser ele
mesmo quando me instigou a comer coisas que eu nunca teria experimentado
– molhos creole apimentados e frutos do mar cujos nomes eu não
reconhecia. Ele pareceu ficar à vontade com o lugar mais rapidamente do
que eu. E não é de se admirar. Tive de lembrar a mim mesma que, durante
quase a vida toda, aquele tinha sido o domínio de Will – esse globo,
essas amplas praias – e não o pequeno anexo à sombra do castelo.
O hotel, conforme o prometido, tinha
disponibilizado uma cadeira de rodas especial, com rodas largas, e
quase todas as manhãs Nathan transferia Will para ela e caminhávamos
pela praia. Eu carregava uma sombrinha, de modo a protegê-lo do sol
se ficasse forte demais. Mas não ficou; aquela parte sudeste da ilha era
famosa por suas brisas do mar e, fora da estação, as temperaturas no
resort raramente iam além dos vinte graus. Ficávamos numa pequena praia
perto de uma rocha, que emergia bem fora de vista da parte principal do
hotel. Eu abria uma cadeira, sentava-me ao lado de Will, embaixo de uma
palmeira, e olhávamos Nathan tentar praticar windsurf ou esqui aquático –
às vezes, gritávamos palavras de incentivo e até uns xingamentos
ocasionais – de onde estávamos na areia.
A princípio, os funcionários do
hotel quase queriam fazer coisas demais para Will, oferecendo-se para
empurrar a cadeira, insistindo constantemente em lhe trazer bebidas
geladas. Explicamos que não precisávamos deles e eles, alegremente,
recuaram. Mas era bom, durante os momentos em que eu não estava com
Will, ver porteiros e recepcionistas conversarem com ele, ou dar dicas
de lugares aonde achavam que deveríamos ir. Havia um jovem desengonçado,
Nadil, que parecia ter nomeado a si mesmo o cuidador não oficial de
Will quando Nathan não estava por perto. Um dia, saí e descobri que
Nadil e um amigo haviam gentilmente tirado Will da cadeira, colocando-o
numa esteira acolchoada que tinham posicionado embaixo da “nossa”
palmeira.
— Assim é melhor — disse Nadil,
levantando o polegar num sinal de positivo, enquanto eu vinha pela
areia. — Basta me chamar quando o Sr. Will quiser voltar para a cadeira.
Eu estava prestes a reclamar e dizer
que não deveriam tê-lo tirado da cadeira. Mas Will havia fechado os
olhos e se deitado com uma satisfação tão inesperada que apenas me calei
e fiz que sim com a cabeça.
Quanto a mim, à medida que a
preocupação com a saúde de Will foi diminuindo, comecei vagarosamente a
achar que estava mesmo no paraíso. Nunca na minha vida tinha pensado que
poderia passar meu tempo em um lugar como aquele. Todas as manhãs, eu
acordava com as ondas quebrando gentilmente na praia e pássaros
desconhecidos cantando uns para os outros nas árvores. Olhava para o
teto do meu quarto, vendo o sol brincar através das folhas; e do quarto
ao lado ouvia uma conversa murmurada que me dizia que Will e Nathan já
tinham acordado bem antes de mim. Eu usava sarongues e roupas de banho,
aproveitava a sensação do sol quente em meus ombros e costas. Minha
pele ficou cheia de sardas, minhas unhas ficaram esbranquiçadas e
comecei a sentir uma rara felicidade diante dos simples prazeres da vida
lá – andar na praia, comer alimentos desconhecidos, nadar em águas
claras e mornas, onde peixes negros olhavam timidamente por entre pedras
vulcânicas, ou ver o sol afundar no horizonte, vermelho-fogo. Aos
poucos, os últimos meses começaram a se apagar. Para meu
constrangimento, eu raramente pensava em Patrick.
Nossos dias pareciam seguir um
padrão. Tomávamos café da manhã todos os três juntos, nas mesas à sombra
suave da pérgula. Will costumava comer salada de frutas, que eu lhe
oferecia, e às vezes ele comia depois uma panqueca de banana, à medida
que o apetite aumentou. Íamos então para a praia, onde ficávamos – eu
lendo, Will ouvindo música – enquanto Nathan praticava esportes
aquáticos. Will ficava me dizendo que eu também deveria fazer alguma
coisa, mas a princípio eu disse não.
Apenas queria ficar perto dele.
Quando insistiu, passei uma manhã praticando windsurfe e caiaque, mas eu
ficava mais feliz estando só ao lado dele.
De vez em quando, se Nadil estava
por perto e o resort estava calmo, ele e Nathan acomodavam Will na água
morna da piscina menor, Nathan sustentando sua cabeça para que o corpo
de Will flutuasse. Ele não falava muito quando eles faziam isso, mas
parecia bem satisfeito, como se o corpo lembrasse de sensações havia
muito esquecidas.
O tórax de Will, pálido havia muito
tempo, ficou dourado. As cicatrizes ficaram prateadas e começaram a
desaparecer. Ele ficou mais à vontade sem camisa.
Na hora do almoço, íamos para um dos
três restaurantes do resort. O piso de todo o complexo era ladrilhado,
com apenas uns poucos degraus e declives, o que significava que Will
podia se movimentar com a cadeira em completa autonomia. Era algo
pequeno, mas o fato de ele conseguir uma bebida sem um de nós precisar
acompanhá-lo era não só um descanso para mim e Nathan, como a breve
mudança em uma das frustrações diárias de Will – ser totalmente
dependente dos outros. Não que qualquer um de nós precisássemos nos
deslocar muito. Parecia que onde quer que estivéssemos, na praia ou na
piscina, ou até mesmo no spa, um dos sorridentes funcionários aparecia
com um drinque de que se poderia gostar, em geral enfeitado com uma
perfumada flor cor-de-rosa. Mesmo quando você ficava estirado na praia,
um pequeno jipe passava e um sorridente garçom oferecia água, suco de
fruta ou algo mais forte.
Nas tardes, quando as temperaturas
chegavam ao ápice, Will ia para o quarto e dormia algumas horas. Eu
nadava na piscina, ou lia meu livro, e no final da tarde nos
encontrávamos para jantar no restaurante à beira-mar. Logo passei a
gostar de coquetéis. Nadil percebeu que, se desse a Will o canudinho do
tamanho certo e colocasse um copo alto no porta-copo, Nathan e eu não
precisávamos fazer nada. Ao anoitecer, nós três conversávamos sobre
nossa infância, nossos primeiros namorados, nossos primeiros empregos,
nossas famílias e outros passeios que tínhamos feito, e lentamente vi
Will ressurgir.
Só que era um Will diferente. Aquele
lugar parecia ter lhe concedido uma paz que ele não tinha ao longo de
todo o tempo que eu o conheci.
— Ele está indo bem, não? — perguntou Nathan, ao me encontrar no bufê.
— Sim, acho que sim.
— Sabe... — Nathan se inclinou na
minha direção, temendo que Will visse que falávamos nele — ... acho que
aquele rancho com todas as aventuras teria sido ótimo. Mas, vendo-o
agora, não posso deixar de pensar que este lugar deu mais certo.
Eu não disse a ele o que eu decidira
no primeiro dia, quando fizemos o check-in, meu estômago embrulhado de
ansiedade, já calculando quantos dias eu ainda tinha antes de voltar
para casa. Em cada um daqueles dez dias, tentei esquecer por que
realmente estávamos ali – o contrato de seis meses, meu calendário
cuidadosamente planejado, tudo o que tinha acontecido antes. Precisava
apenas viver o momento e tentar encorajar Will a fazer o mesmo. Eu tinha
de ser feliz, na esperança de que Will fosse também.
Pus em meu prato outra fatia de melão e sorri.
— Então, o que vamos fazer mais tarde? Vamos cantar no karaokê? Ou seus ouvidos ainda não se recuperaram da noite passada?
* * *
Na quarta noite, Nathan anunciou,
apenas um pouco constrangido, que tinha um encontro. Karen era uma amiga
neozelandesa hospedada no hotel ao lado e ele tinha concordado em ir
com ela ao centro da cidade.
— Só para garantir que ela vá ficar bem. Você sabe... não sei se é um lugar bom para ela ir sozinha
— É — disse Will, balançando a cabeça, solenemente. — Muito cavalheiresco de sua parte, Nate.
— Eu acho que é uma atitude muito responsável. Muito cívica — concordei.
— Sempre admirei Nathan por sua abnegação. Sobretudo quando se trata do sexo oposto.
— Danem-se vocês dois — disse Nathan com um sorriso escancarado, e sumiu.
Karen logo se tornou uma companhia
constante. Nathan desaparecia com ela quase todas as noites e, embora
voltasse para cumprir suas obrigações da noite, nós, tacitamente, demos a
ele todo o tempo possível para que se divertisse.
Além do mais, eu estava secretamente
satisfeita. Gostava de Nathan e me sentia grata por ele ter vindo, mas
preferia quando ficávamos só Will e eu. Gostava da espécie de
taquigrafia em que mergulhávamos quando ninguém estava por perto, da
intimidade fácil que surgiu entre nós. Gostava do jeito como ele virava o
rosto e me olhava com deleite, como se, de algum modo, eu tivesse me
tornado muito mais do que ele esperava.
Na penúltima noite, eu disse a
Nathan que não me incomodaria se ele quisesse trazer Karen para o
complexo. Ele vinha passando as noites no hotel dela e eu sabia que
aquilo era complicado para ele, andar vinte minutos de cada vez para
preparar Will para dormir.
— Não me importo. Se isso vai... você sabe... lhe dar um pouco de privacidade.
Ele ficou animado, já pensando na noite que teria, e não disse nada mais que um entusiasmado “Obrigado, companheira”.
— Que gentil de sua parte — disse Will, quando contei para ele.
— Que gentil de sua parte, você quer dizer — respondi. — Foi o seu quarto que cedi à causa.
Naquela noite, colocamos Will no meu
quarto, e Nathan ajudou Will a se deitar e lhe deu o remédio enquanto
Karen aguardava no bar do hotel. Troquei de roupa, vestindo a camiseta e
a calcinha e então abri a porta do banheiro e me esparramei sobre o
sofá, com o travesseiro embaixo do braço. Senti o olhar de Will me
acompanhando, e me senti estranhamente consciente de que eu passara
quase toda a semana anterior andando por aí de biquíni na frente dele.
Encaixei meu travesseiro no braço do sofá.
— Clark?
— O quê?
— Você realmente não precisa dormir aí. Esta cama é grande o bastante para caber um time de futebol inteiro.
O fato é que eu nem sequer tinha
pensado nisso. Pois é. Talvez os dias que passamos quase despidos na
praia nos tivessem feito pirar um pouco. Talvez fosse a ideia de que
Nathan e Karen estavam do outro lado da parede, enrolados um no outro,
num casulo.
Talvez eu quisesse apenas ficar
perto dele. Comecei a me encaminhar para a cama, então me encolhi ao
ouvir um súbito trovão. As luzes falharam, alguém gritou lá fora. No
quarto ao lado, Nathan e Karen irromperam em risadas.
Fui até a janela e abri a cortina,
sentindo a brisa repentina, a queda abrupta da temperatura. Lá fora, no
mar, uma tempestade ganhou vida. Flashes dramáticos de raios se partiam
em várias direções iluminando o céu por um instante e então, como se
fosse um adendo, uma pesada trovoada soou no dilúvio que atingia o
telhado do nosso pequeno bangalô, tão barulhenta que abafou tudo.
— Melhor eu fechar as janelas — falei.
— Não, não.
Virei-me.
— Deixe as portas abertas — disse Will, fazendo sinal com a cabeça. — Quero ver.
Hesitei, mas, devagar, abri com
cuidado as portas envidraçadas que davam para o terraço. A chuva
martelava todo o complexo do hotel, pingando de nosso telhado, escavando
rios que corriam do terraço em direção ao mar. Senti a umidade em meu
rosto, a eletricidade no ar. Os pelos dos meus braços se eriçaram na
mesma hora.
— Você está sentindo? — perguntou ele, atrás de mim.
— Parece o fim do mundo.
Fiquei ali, deixando a carga fluir
através de mim, os flashes brancos se imprimindo em minhas pálpebras.
Isso fez com que minha respiração ficasse presa na garganta.
Virei-me e caminhei até a cama,
sentando-me na beira. Enquanto ele me olhava, me inclinei e
delicadamente puxei seu pescoço bronzeado na minha direção. Agora, eu
sabia exatamente como mexer nele, como eu poderia fazer com que seu
peso, sua solidez, trabalhassem a meu favor. Segurando-o perto de mim,
debrucei-me por sobre ele e coloquei um gordo travesseiro branco atrás
de seus ombros antes de apoiá-lo novamente sobre sua suave maciez. Ele
tinha cheiro de sol, parecia entranhado na pele, e eu me peguei inalando
aquele cheiro silenciosamente, como se fosse algo delicioso.
Então, ainda não completamente seca,
subi na cama ao lado dele, tão perto que minhas pernas tocaram as suas
e, juntos, nós observamos o chamuscar branco-azulado à medida que os
raios atingiam as ondas, as estacas do guarda-corpo prateadas pela
chuva, a delicada massa turquesa cambiante que caía a poucos metros de
distância.
O mundo ao nosso redor pareceu
encolher, até que ele fosse somente o som da tempestade, o mar
azul-escuro cor de malva e as cortinas finas delicadamente se inflando.
Senti o cheiro das flores de lótus na brisa noturna, ouvi os sons
distantes de copos tilintando, de cadeiras sendo aproximadas às pressas,
a música de alguma comemoração ao longe, senti a carga da natureza
descontrolada. Alcancei a mão de Will e a segurei entre as minhas.
Pensei, por um instante, que nunca mais me sentiria tão intensamente
conectada ao mundo, a outro ser humano, como naquele momento.
— Nada mal, hein, Clark? — disse Will em meio ao silêncio.
Diante da tempestade, o rosto dele
estava parado e calmo. Ele se virou um pouco e sorriu para mim, e havia
algo em seus olhos, algo triunfante.
— É — respondi. — Nada mal mesmo.
Fiquei deitada imóvel, ouvindo a
respiração dele lenta e profunda, o som da chuva por trás dela, senti
seus dedos cálidos entrelaçados nos meus. Eu não queria voltar para
casa. Pensei que poderia nunca mais voltar. Ali, Will e eu estávamos
seguros, trancados no nosso pequeno paraíso. Toda vez que eu pensava em
voltar para a Inglaterra, a grande garra do medo prendia meu estômago e
começava a apertá-lo bem forte.
Vai dar certo. Tentei repetir para mim mesma as palavras de Nathan. Vai dar certo.
Finalmente, virei-me de lado, de
costas para o mar, e olhei para Will. Ele virou a cabeça para me olhar
na luz fraca e eu senti que ele me dizia a mesma coisa. Vai dar certo. Pela
primeira vez na vida, tentei não pensar no futuro. Tentei apenas estar,
simplesmente deixar as sensações da noite passarem por mim. Não sei
quanto tempo ficamos assim, apenas olhando um para o outro, mas aos
poucos as pálpebras de Will ficaram mais pesadas até que ele murmurasse,
se desculpando, que achava que estava...
A respiração ficou mais profunda,
ele fechou a pequena fenda e caiu no sono, e então eu fiquei apenas
olhando o rosto dele, observando que seus cílios eram pequenos pontos
separados perto dos cantos dos olhos, que havia novas sardas em seu
nariz.
Disse a mim mesma que eu precisava ter razão. Precisava ter razão.
A tempestade finalmente se dispersou
lá pela uma da manhã, sumindo em algum ponto mar adentro, seus lampejos
de raiva ficando cada vez mais suaves até desaparecerem por completo,
levando a tirania meteorológica para algum outro lugar invisível. Aos
poucos, o ar acalmou em volta de nós, as cortinas pararam de esvoaçar, a
água que restava foi drenada num gorgolejo. Em algum momento da
madrugada eu me levantei, tirei delicadamente minha mão da de Will,
fechei as portas envidraçadas, abafando o quarto no silêncio. Will
dormiu – um sono audível e calmo que ele raramente tinha em casa.
Não dormi. Fiquei lá, olhei-o e procurei não pensar em mais nada.
* * *
No último dia, aconteceram duas
coisas. Uma: por insistência de Will, aceitei fazer mergulho submarino.
Ele falava havia dias que eu não podia ir a um lugar tão distante e não
mergulhar no mar. Não dei certo no windsurfe, mal consegui segurar a
vela nas ondas; quase todas as tentativas de fazer esqui aquático
terminaram de cara na água.
Mas ele insistia e, um dia antes de
irmos embora, chegou ao almoço avisando que me inscrevera num curso de
meio dia de mergulho para iniciantes.
Começou mal. Will e Nathan ficaram
na beira da piscina enquanto meu instrutor tentava me convencer de que
eu continuaria respirando dentro da água. Mas os dois ficarem me olhando
acabou com minhas esperanças. Não sou burra: sabia que os tanques de
oxigênio nas minhas costas manteriam meus pulmões funcionando, que eu
não ia me afogar. Mas toda vez que eu enfiava a cabeça na água, entrava
em pânico e voltava à tona. Era como se meu corpo se recusasse a
acreditar que podia respirar sob vários litros de águas mauricianas.
— Acho que não consigo — confessei ao voltar à tona pela sétima vez, fazendo um barulho alto.
O instrutor de mergulho, James, olhou para Will e Nathan, que estavam atrás de mim.
— Não consigo — garanti.
James ficou de costas para os dois, deu um tapinha no meu ombro e mostrou o mar.
— Tem gente que se sente melhor lá — disse, calmo.
— No mar?
— Tem gente que se sente melhor em águas profundas. Vamos. Vamos de barco.
Quarenta minutos depois, eu estava
dentro da água, olhando a colorida paisagem que ficava escondida sob o
mar, esqueci que o oxigênio podia falhar e que, contra todas as
possibilidades, eu ia afundar e morrer, esqueci até que eu tinha medo.
Fui distraída pelos segredos de um novo mundo. No silêncio, quebrado
apenas pelo som exagerado da minha respiração, vi cardumes de pequenos
peixes iridescentes e outros maiores, pretos e brancos, que me olhavam
com caras inquisitivas e pasmas; anêmonas que se moviam lenta e
suavemente, filtrando as correntes de água que trazem seus pequenos e
invisíveis alimentos. Vi paisagens distantes ainda mais coloridas e
variadas do que eram na superfície. Vi cavernas e vãos onde criaturas
desconhecidas espreitavam, formas que tremeluziam sob os raios do sol.
Eu não queria voltar à tona. Podia ficar lá para sempre, naquele mundo
silencioso. Só quando James indicou o mostrador do tanque de oxigênio vi
que eu precisava subir.
Mal conseguia falar quando enfim me
dirigi, sorrindo, pela areia na direção de Will e Nathan. Minha cabeça
continuava cheia de imagens, meus braços e pernas ainda se mexiam como
se estivessem dentro d’água.
— Bom, não? — perguntou Nathan.
— Por que vocês não me disseram? —
reclamei para Will, jogando as nadadeiras na areia diante dele. — Por
que não me obrigaram a fazer isso antes? Tudo o que vi! Tudo lá, o tempo
todo! Bem ali na minha frente!
Will olhou sério para mim. Não disse nada, mas deu um sorriso largo, bem devagar.
— Não sei, Clark. Tem gente com quem não adianta falar.
* * *
Na última noite, me embriaguei. Não
só porque íamos embora no dia seguinte. Mas porque, pela primeira vez,
senti realmente que Will estava bem e não precisava me preocupar. Usei
um vestido branco de algodão (a pele estava bronzeada, portanto o branco
não me fazia parecer um cadáver numa mortalha) e sandálias de tiras
prateadas. Quando Nadil me deu uma flor vermelha e sugeriu que colocasse
nos cabelos, não zombei dele como teria feito uma semana antes.
— Olá, Carmem Miranda — disse Will, quando os encontrei no bar. — Como está bonita.
Eu ia dizer algo irônico, mas notei que ele me olhava com autêntica aprovação.
— Obrigada. Você também não está mal — respondi.
O hotel tinha uma discoteca; então,
pouco antes das dez da noite, quando Nathan saiu para ficar com Karen,
Will e eu fomos para a praia com a música em nossos ouvidos e a
agradável sensação de três coquetéis suavizando meus movimentos.
Ah, como a praia estava linda. A
noite era quente e a brisa trazia o cheiro de churrascos preparados ao
longe, de óleos na pele, e o leve cheiro salgado do mar. Will e eu
paramos perto de nossa palmeira preferida. Alguém tinha feito uma
fogueira na praia, talvez para assar algo, e restavam apenas brasas
brilhando.
— Não quero ir embora — falei, no escuro.
— É um lugar difícil de deixar.
— Pensei que lugares assim só
existissem em filmes — eu disse, virando de frente para ele. — Isso me
fez imaginar se era verdade tudo o que você disse sobre os outros.
Ele sorria. O rosto parecia
descansado e feliz, os olhos brilhavam quando virou-se para mim.
Observei-o e, pela primeira vez, não senti um toque de medo.
— Gostou de vir, não? — perguntei, indecisa.
Ele concordou com a cabeça.
— Ah, sim.
— Ah!! — exclamei, dando um soco no ar.
Depois, a música que vinha do bar
aumentou, tirei os sapatos e dancei. Parece idiota, o tipo da coisa que,
em outra situação, podia ser constrangedora. Mas ali, no escuro de
breu, meio tonta por falta de sono, com a fogueira, o céu e o mar
infinitos, a música nos nossos ouvidos e Will sorrindo, meu coração
explodindo num sentimento que eu não conseguia identificar, eu só queria
dançar. Dancei, ri, solta, sem me preocupar se alguém nos via. Senti
que Will me olhava e sabia que ele sabia que aquela era a única reação
possível para os últimos dez dias. Ora, para os últimos seis meses.
A música terminou e desmontei, ofegante, aos pés dele.
— Você... — ele disse.
— Eu o quê? — Meu sorriso era brincalhão. Eu me sentia fluida, elétrica. Não estava muito responsável pelos meus atos.
Ele balançou a cabeça.
Levantei-me lentamente da areia,
descalça, fui até a cadeira, sentei no colo dele, nossos rostos quase
colados. Após a noite anterior, aquele não pareceu um salto muito
grande.
— Você... — Seus olhos azuis
brilhavam à luz das brasas e grudaram nos meus. Ele tinha cheiro de sol,
de fogueira e de algo áspero e cítrico.
Senti algo se entregar dentro de mim.
— Você... é uma figura, Clark.
Fiz a única coisa que me ocorreu.
Inclinei-me e encostei meus lábios nos dele. Will ficou indeciso um
instante e retribuiu o beijo. Por um instante, esqueci tudo: o milhão e
meio de motivos para não fazer aquilo; meus medos; o motivo para
estarmos ali. Beijei-o, sentindo o cheiro da pele, os cabelos macios nas
minhas mãos. Quando ele retribuiu, tudo isso desapareceu e ficamos
apenas os dois numa ilha no meio do nada, sob milhares de estrelas
cintilantes.
Ele então recuou.
— Eu... desculpe. Não...
Abri os olhos. Coloquei a mão no rosto dele e percorri seu lindo contorno. Senti o leve sal nos dedos.
— Will... — comecei a dizer. — Você pode. Você...
— Não. — A palavra tinha um toque de aço. — Não posso.
— Não entendo.
— Não quero.
— Hum... acho que você tem que aceitar.
— Não posso porque eu não... —
engoliu em seco. — Não posso ser o homem que quero ser com você. O que
significa que isso — ele olhou meu rosto — isso apenas se transforma...
em outro lembrete do que não sou.
Não afastei meu rosto. Inclinei minha cabeça para tocar na dele, nossa respiração se misturou e falei baixo, para só ele ouvir:
— Não me importo com o que você...
pensa que pode ou não fazer. Não é preto no branco. Sinceramente...
conversei com outras pessoas na mesma situação que você... e há coisas
que são possíveis. Maneiras de agradar a ambos... — Eu tinha começado a
gaguejar um pouco. Me senti estranha com aquela conversa. Olhei bem para
ele. — Will Traynor — eu disse, baixo — É o seguinte. Acho que
podemos...
— Não, Clark — ele interrompeu.
— Acho que podemos fazer de tudo.
Sei que essa não é uma história de amor como outra qualquer. Sei que há
motivos para eu nem dizer isso. Mas eu amo você. De verdade. Vi isso
quando deixei Patrick. E acho até que você gosta um pouco de mim.
Ele ficou calado. Seus olhos
buscaram os meus, com aquela enorme tristeza de sempre. Afastei os
cabelos da testa dele como se pudesse afastar a tristeza; ele inclinou a
cabeça, encostou-a na palma da minha mão e ficou assim.
Engoliu em seco.
— Preciso lhe dizer uma coisa.
— Eu sei de tudo — cochichei.
Will calou-se. O ar pareceu estagnado.
— Eu sei da Suíça. Sei... a razão do meu contrato ser de seis meses.
Ele tirou a cabeça da minha mão. Olhou para mim, depois para o céu. Os ombros caíram.
— Sei de tudo, Will. Sei há meses.
E, por favor, ouça... — Peguei a mão direita dele e encostei no meu
coração. — Sei que podemos. Sei que não é como você queria, mas posso
fazer você feliz. Só sei dizer que você me transformou... numa pessoa
que eu nem imaginava. Você me faz feliz, mesmo quando é horroroso.
Prefiro estar com esse você que você deprecia do que com qualquer outra
pessoa no mundo.
Os dedos dele apertaram um pouco os meus e isso me encorajou.
— Se acha muito estranho eu
trabalhar para você, saio desse emprego e procuro outro. Queria lhe
contar uma coisa: me inscrevi numa faculdade. Pesquisei muito na
internet, falei com outros tetraplégicos e cuidadores, aprendi muito
sobre isso. Então, posso fazer o curso e ficar com você. Entende? Pensei
em tudo, pesquisei tudo. Agora sou assim. Culpa sua. Você me
transformou. — Eu estava quase rindo. — Você me transformou na minha
irmã. Mas com um gosto muito melhor para se vestir.
Ele tinha fechado os olhos. Segurei
as mãos dele e beijei os nós dos dedos. Senti a pele dele e tive mais
certeza do que nunca de que não poderia deixá-lo.
— O que acha? — cochichei.
Eu podia olhá-lo pelo resto da vida.
Ele falou tão baixo que por um instante pensei ter entendido errado.
— O que disse? — perguntei.
— Não, Clark.
— Não?
— Desculpe. Não basta.
Abaixei a mão dele.
— Não entendo.
Ele esperou para falar como se, por uma vez, lutasse para encontrar as palavras certas.
— Não basta para mim. Esse meu
mundo, mesmo que seja com você. E pode ter certeza, Clark, minha vida
melhorou muito desde que você chegou. Mas para mim não basta. Não é a
vida que eu quero.
Foi a minha vez de recuar.
— Eu entendo que podia ser bom.
Entendo que, com você, talvez fosse até uma vida muito boa. Mas não é
a minha vida. Não sou igual a essas pessoas com quem você fala. Não é a
vida que eu quero. Não chega nem perto. — Ele falava aos trancos. Sua
expressão me assustou.
Engoli em seco, balançando a cabeça.
— Você... uma vez me disse que
aquela noite que passei no labirinto do castelo não podia ser o que me
identificava. Disse que eu podia escolher o que fosse. Bom, pois você
não pode deixar essa... cadeira de rodas ser a sua identidade.
— Mas é, Clark. Você não me conhece.
Nunca me viu antes disso. Eu adorava a vida, Clark. Gostava mesmo. Do
meu trabalho, das viagens, das coisas que eu fazia. Gostava de usar o
corpo. De andar na minha moto, me desviando dos prédios. Gostava de
dominar as pessoas nos negócios. Gostava de transar. Transar muito. Eu
levava uma vida muito boa. — Falou mais alto: — Não nasci para viver
enfiado nesta coisa; mas, por tudo e para tudo, é isso que me
identifica. É a única coisa que me define.
— Mas você não está nem dando uma chance — cochichei. A voz parecia não querer sair do meu peito. — Não está me dando uma chance.
— Não é questão de dar uma chance.
Nesses seis meses, vi você se transformar em outra pessoa, que está só
começando a ver as possibilidades que tem. Não imagina como isso me
deixou feliz. Não quero que você fique presa a mim, às minhas consultas
hospitalares, às limitações da minha vida. Não quero que perca todas as
coisas que outra pessoa poderia lhe dar. E, egoísta, não quero que olhe
para mim um dia e sinta sequer o mínimo arrependimento ou pena por...
— Eu jamais pensaria isso!
— Você não sabe, Clark. Não sabe o
que iria acontecer. Não sabe nem como vai estar daqui a seis meses. E
não quero olhar para você todos os dias, ver você nua, andando pelo
anexo com suas roupas malucas e... não poder fazer o que quero com você.
Ah, Clark, se soubesse o que eu gostaria de fazer com você exatamente
agora. E... não aguento pensar nisso. Não posso. Não é quem eu sou. Não
posso ser um homem que apenas... aceita.
Ele olhou para a cadeira, com a voz trêmula.
— Jamais aceitarei isso.
Chorei.
— Por favor, Will, não diga isso. Dê uma chance para mim. Uma chance para nós.
— Psiu. Escute. Você,
principalmente. Ouça o que vou dizer. Esta... noite... é a melhor coisa
que você poderia fazer por mim. O que disse, o que fez para me trazer
aqui... mesmo sabendo o idiota completo que eu era no começo, acho
incrível você conseguir resgatar algo para amar. Mas — ele apertou minha
mão — isso precisa acabar aqui. Chega de cadeira de rodas. Chega de
pneumonia. Chega de coceiras nos braços e pernas. Chega de dores e
cansaço, de acordar desejando que o dia acabe. Quando voltarmos para o
anexo, vou para a Suíça. E se você gosta mesmo de mim, Clark, como diz
que gosta, eu ficaria muito feliz se me acompanhasse.
Recuei a cabeça, num susto.
— O quê?
— Minha situação não vai melhorar. A
chance é piorar cada vez mais e minha vida, que já é limitada,
vai ficar mais ainda. Os médicos disseram. Há várias coisas que estão me
atingindo. Eu percebo. Não quero mais sentir dor, nem ficar enfiado
nessa cadeira, nem depender de ninguém, nem ter medo. Por isso, peço a
você que, se sente o que diz, me acompanhe. Fique comigo. Me dê o fim
que desejo.
Olhei-o horrorizada, o sangue bombeando nos ouvidos. Mal consegui entender.
— Como pode me pedir uma coisa dessas?
— Sei que é...
— Eu digo que amo você e que quero construir um futuro e você me pede para assistir ao seu suicídio?
— Desculpe. Não queria ser agressivo. Mas não disponho do luxo de ter tempo.
— O que... o quê? Você fez reserva em algum lugar? Tem algum compromisso que não pode faltar?
Vi as pessoas do hotel parando, talvez porque falássemos alto, mas não me importei.
— Sim — respondeu Will, após uma
pausa. — Sim, tenho. Estive lá. A clínica disse que me aceita. E meus
pais concordaram com a data de treze de agosto. Vamos de avião um dia
antes.
Minha cabeça girou. Faltava menos de uma semana.
— Não posso acreditar.
— Louisa...
— Pensei... pensei que eu tinha feito você mudar de ideia.
Ele inclinou a cabeça de lado e me olhou. A voz era suave; os olhos, gentis.
— Louisa, nada me faria mudar de
ideia. Dei a meus pais o prazo de seis meses e cumpri. Você fez esse
tempo ficar mais valioso do que pode imaginar. Deixou de ser um teste de
resistência...
— Não diga isso!
— O quê?
— Não diga mais nada! — Eu soluçava.
— Will, como você é egoísta. Como é idiota. Mesmo se houvesse a mais
remota possibilidade de eu ir com você à Suíça... mesmo se você achasse
que eu iria, depois de tudo o que fiz por você, de fazer o que fiz, é só
isso que me diz? Fiz uma declaração de amor e você diz apenas “Não,
você é pouco para mim. E agora quero que assista a pior coisa que pode
imaginar.” O que eu mais temia desde que soube disso. Você tem noção do
que me pede para fazer?
Eu estava furiosa. De pé na frente dele, como uma louca.
— Foda-se, Will Traynor. Foda-se.
Gostaria de jamais ter aceito este trabalho besta. Gostaria de jamais
tê-lo conhecido. — Chorei, corri pela praia e voltei para o quarto,
longe dele.
Muito depois de fechar a porta do quarto, a voz dele me chamando ainda soava nos meus ouvidos.
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