Em alguns lugares as mudanças das estações são marcadas
pela passagem de pássaros migratórios, ou pela maré alta ou baixa. Na nossa cidadezinha,
as estações são marcadas pela volta dos turistas. Começa aos poucos, as pessoas
saltando dos trens ou dos carros usando casacos impermeáveis coloridos,
segurando seus guias de viagem e suas carteirinhas de sócio do National Trust.
Depois, quando o calor aumenta um pouco e começa a temporada, os turistas são
expelidos de seus carros e enchem a rua principal: americanos, japoneses e um
bando de estudantes estrangeiros vão surgindo ao redor do castelo.
No inverno, quase todas as lojas fecham. Os comerciantes
mais abonados aproveitam os longos meses sem movimento para passar as férias em
casas fora da cidade, enquanto os mais resistentes promovem eventos natalinos e
faturavam com corais ou feiras de artesanato. Quando a temperatura sobe, os
estacionamentos do castelo lotam, os pubs recebem mais pedidos de sanduíches de
queijo com picles e, alguns domingos ensolarados depois, passamos outra vez de
modorrenta cidadezinha a tradicional destino turístico inglês.
Subi a colina desviando dos primeiros visitantes da
temporada, com suas pochetes de neoprene presas à cintura, os guias turísticos
bastante manuseados e as câmeras já prontas para fotografar o castelo na
primavera. Sorri para alguns e parei para tirar fotos com as câmeras daqueles
que me pediam. Alguns moradores locais reclamavam da alta temporada por causa
dos engarrafamentos, dos banheiros lotados, dos pedidos estranhos no The
Buttered Bun (“Vocês não têm sushi? Nem rolinhos primavera?”), mas eu não me
incomodava. Gostava do jeito dos estrangeiros, dos relances de vidas tão diferentes
da minha. Gostava de ouvir diferentes sotaques e tentar adivinhar de que região
eram, observar as roupas de quem nunca viu um catálogo da loja de departamento
Next, nem comprou um pacote de cinco calcinhas na Marks and Spencer’s.
— Você parece animada — disse Will, quando larguei minha
mochila no corredor.
Seu tom dava a entender que minha animação era quase uma
afronta.
— É porque é hoje.
— O que tem hoje?
— A nossa saída. Vamos levar Nathan para ver a corrida de
cavalos.
Will e Nathan se entreolharam. Eu quase ri. Senti um
enorme alívio ao ver como estava o tempo, e ao constatar a presença do sol
soube que tudo ia dar certo.
— Corrida de cavalos?
— É. Está tendo uma corrida acirrada em... — tirei o
bloco de anotações do bolso — Longfield. Se sairmos agora, chegamos a tempo de
ver o terceiro páreo. E quero apostar cinco libras no cavalo Man Oh Man,
portanto é melhor irmos logo.
— Corrida de cavalos.
— É. Nathan nunca foi a uma.
Em honra da ocasião, coloquei meu minivestido de
matelassê azul, com um lenço com estampa de arreios de cavalo amarrado ao
pescoço e um par de botas de montaria de couro.
Will me estudou cuidadosamente, depois deu marcha a ré em
sua cadeira e virou-a de lado, de modo a poder ver melhor seu enfermeiro.
— Este é um desejo seu de longa data, Nathan?
Dei a Nathan um olhar de advertência.
— Sim — disse ele, e abriu um sorriso. — Quero ir, sim.
Vamos ver os cavalinhos.
Nós tínhamos combinado, claro. Liguei para Nathan na
sexta-feira e perguntei que dia ele estaria livre para o passeio. Os Traynor
aceitaram pagar horas-extras (a filha
deles tinha ido para a Austrália, e acho que eles queriam garantir que alguém
“sensível” me acompanharia), mas até o domingo eu não estava bem certa sobre o
que faríamos.
Aquilo parecia o começo ideal: um ótimo dia ao ar livre,
a menos de meia hora de carro.
— E se eu disser que não quero ir?
— Então, você fica me devendo quarenta libras — respondi.
— Quarenta libras? Como você resolveu isso?
— Meus ganhos. Cinco pratas vezes o prêmio de oito para
um. — Encolhi os ombros. — Man Oh Man é barbada.
Tive a impressão de tê-lo desequilibrado.
Nathan bateu com as mãos nos joelhos.
— Parece ótimo. E está um lindo dia para isso — disse
ele. — Quer que eu embrulhe alguma coisa de comer para você levar?
— Não — respondi. — Lá tem um restaurante ótimo. Quando
meu cavalo vence a corrida, o almoço é por minha conta.
— Você tem assistido a muitas corridas, então? —
perguntou Will.
E assim, antes que ele pudesse dizer qualquer outra coisa,
nós havíamos enfiado o casaco nele e eu
corri lá para fora a fim de tirar o carro da garagem.
*
* *
Eu tinha tudo planejado. Chegaríamos ao hipódromo num
lindo dia de sol. Haveria puros-sangue lustrosos e de longas pernas, seus
jóqueis em brilhantes selas ondulantes, desfilando
devagar. Talvez uma ou duas bandas de música tocando. As arquibancadas estariam
cheias de gente animada e encontraríamos um lugar de onde pudéssemos torcer e
agitar os papeizinhos com nossas apostas vencedoras. O espírito competitivo de Will
viria à tona, ele não resistiria a calcular as chances e a garantir que
ganhasse mais do que Nathan e eu nas apostas. Eu tinha preparado tudo. Depois,
quando cansássemos de ver cavalos, iríamos ao elogiado restaurante do hipódromo
e teríamos um almoço de lamber os beiços.
Eu deveria ter dado ouvidos a meu pai.
— Quer saber quando a realidade vence a esperança? — ele
perguntava. — Programe um divertido dia ao ar livre com a família.
Começou no estacionamento. Chegamos lá sem qualquer
incidente, eu agora estava um pouco mais confiante
de que Will não cairia para a frente se eu dirigisse a mais de trinta por hora.
Tinha visto o itinerário na biblioteca e fui brincando animadamente durante
quase todo o trajeto, comentando o lindo céu azul, os campos, a estrada vazia.
Não havia filas
para entrar no hipódromo, que era, confesso, um pouco menos grandioso do que eu
esperava, e o estacionamento era bem sinalizado.
Mas ninguém me avisou que era gramado e que foi muito
usado durante todo o inverno chuvoso. Conseguimos uma vaga (sem dificuldades, já que estava apenas parcialmente cheio) e
quase no mesmo momento em que a rampa de Will abaixou, Nathan pareceu
preocupado.
— O terreno é muito macio — disse ele. — Ele vai afundar.
Olhei em direção às tribunas.
— Mas se conseguirmos colocá-lo naquela trilha ele ficará
bem, certo?
— Essa cadeira pesa uma tonelada — disse ele. — E a
trilha está a dez metros de distância.
— Ah, qual é. Essas cadeiras devem ser projetadas para
enfrentar um pouco de terra macia.
Tirei a cadeira de Will com cuidado e então vi as rodas
afundarem vários centímetros na lama.
Will não disse nada. Ele parecia desconfortável e havia
se mantido em silêncio na maior parte do trajeto de meia hora. Ficamos ao lado
dele, brincando com seus controles. Tinha surgido uma brisa e as bochechas de
Will ficaram rosadas.
— Vamos lá — disse eu. — Vamos fazer isso manualmente.
Tenho certeza de que conseguimos carregar a cadeira até lá.
Inclinamos Will para trás. Segurei-a de um lado, Nathan
do outro e arrastamos a cadeira para a trilha. Progredíamos devagar, sobretudo
porque eu parava a toda hora, já que meus braços doíam e minhas botas novinhas ficaram imundas com a sujeira.
Quando, finalmente, chegamos à trilha, a manta de Will
tinha escorregado parcialmente e, de algum modo, se prendido nas rodas, ficando com um dos lados torcido e sujo de lama.
— Não se preocupe— disse Will, seco — é só cashmere.
Eu o ignorei.
— Certo. Conseguimos. Agora, vamos à parte
divertida.
Ah, sim. A parte divertida. Quem achou que seria uma boa
ideia colocar catracas em hipódromos? Não era como se eles precisassem
controlar uma multidão, certo?
Como se houvesse uma horda de fãs de corridas gritando,
ameaçando se amotinar se o cavalo Charlie’s Darling não chegasse em terceiro,
além de garotas irritadas porque tinham de ficar
em cercados longe da pista. Nathan e eu olhamos para a catraca, depois para a
cadeira de Will e então nos entreolhamos.
Nathan foi até a bilheteria e explicou nossa situação
para a moça lá dentro. Ela inclinou a cabeça para ver Will e indicou o final da
tribuna.
— A entrada para deficientes é lá — disse.
Ela pronunciou deficientes como
se estivesse num concurso de dicção. A entrada ficava
a quase duzentos metros dali. Quando finalmente
conseguimos chegar, o céu azul havia desaparecido de repente, sendo substituído
por uma tempestade súbita. Claro que eu não tinha levado guarda-chuva. Fui
falando sem parar e animadamente sobre como a situação era engraçada e ridícula
e mesmo para mim aquilo soava irritante.
— Clark — disse Will, por fim. — Fique calma, sim? Você
está cansativa.
Compramos entradas para as tribunas e então, com imenso
alívio por finalmente entrarmos,
empurrei a cadeira de Will para um lugar coberto, bem ao lado da tribuna principal.
Enquanto Nathan resolvia a questão da bebida de Will, pude olhar nossos colegas
turfistas.
Era realmente agradável na base da tribuna, apesar dos
eventuais salpicos de chuva. Acima de nós, numa sacada envidraçada, homens de
terno ofereciam taças de champanhe a mulheres com roupas de casamento. Eles
pareciam estar quentes e confortáveis, e desconfiei
de que aquela era a Tribuna Especial, listada no quiosque de vendas com preços
estratosféricos. As pessoas lá usavam uma tarja, como um pequeno distintivo,
sobre uma fita vermelha, para
mostrar que eram especiais. Pensei por um momento se seria possível pintar as
nossas fitas azuis de outra cor,
mas concluí que sermos os únicos com uma cadeira de rodas provavelmente já nos
fazia um pouco mais destacados.
Ao nosso lado, salpicados pelas tribunas e segurando
copos de café de isopor e garrafinhas
de bolso com uísque, havia homens de paletó de tweed e mulheres com casacos
acolchoados. Pareciam um pouco mais comuns e suas pequenas tarjas também eram
azuis. Desconfiei de que muitos
deveriam ser treinadores, cavalariços ou ter alguma ligação com o turfe.
Abaixo, um pouco mais à frente, ao lado de pequenas lousas brancas, ficavam os apontadores, seus braços balançando em algum
tipo de código de sinais que não conseguia entender. Rabiscavam novas
combinações de figuras e as apagavam de
novo usando o punho da camisa.
E então, como se fosse uma paródia da sociedade de
classes, na parte ao redor da pista de corrida se concentrava um grupo de
homens de camisas polo listradas, com latas de cerveja na mão e parecendo estar
em algum tipo de reunião. Suas cabeças raspadas davam a entender que prestavam
algum serviço militar. De vez em quando, paravam para cantar ou faziam uma
barulhenta luta corporal, dando cabeçadas ou gravatas uns nos outros. Quando
passei por eles para ir ao banheiro, miaram por causa da minha saia curta
(parecia que eu era a única pessoa de saia em toda aquela tribuna) e, sem me
virar, levantei para eles meu dedo do meio. E eles perderam o interesse por mim
quando sete ou oito cavalos começaram a contornar uns aos outros, diminuindo o ritmo
em frente às tribunas numa demonstração primorosa de habilidade, todos se preparando
para a próxima corrida.
E então pulei de susto quando a pequena multidão à nossa
volta ganhou vida com um urro e os cavalos dispararam das baias de largada.
Levantei-me e fiquei olhando, subitamente
pasma, sem conseguir conter uma onda de animação ao ver os rabos dos cavalos
ondulando ao sabor do vento atrás de seus corpos, os esforços furiosos dos homens
com roupas de cores berrantes em cima deles, todos se acotovelando para garantir
suas posições. Quando o vencedor cruzou a linha de chegada foi quase impossível
não gritar.
Assistimos à Copa Sisterwood, e a
seguir à Maiden Stakes,
e Nathan ganhou seis libras numa pequena aposta. Will recusou-se a
apostar.
Assistiu a todas as corridas, mas manteve-se em silêncio, a cabeça
enfiada no colarinho alto da jaqueta. Achei que ele tinha ficado dentro
de casa tanto tempo que éramos obrigados a
nos sentir mal por ele, e decidi que simplesmente não confirmaria isso.
— Acho que agora é o seu páreo, a Copa Hempworth — disse
Nathan, olhando para o placar. — Em qual deles você disse que apostou? Man Oh
Man? — Ele sorriu. — Eu não sabia que assistir a corrida é muito mais divertido
quando se aposta.
— Sabe, eu não lhe disse isso, mas eu nunca tinha vindo
ao hipódromo. — comentei com Nathan.
— Você está brincando.
— Nunca nem montei. Minha mãe tem pavor de cavalos. Não
me levava nem nas cocheiras.
— Minha irmã tem dois cavalos, perto de Christchurch.
Trata-os como se fossem bebês. Gasta todo o dinheiro com eles. — Nathan deu de
ombros. — E ela nem vai poder comê-los
quando
eles morrerem.
A voz de Will se infiltrou até nós.
— Quantas corridas teremos de assistir até garantirmos
que você considere seu velho sonho realizado?
— Não seja mal-humorado. Dizem que deve-se experimentar
de tudo pelo menos uma vez na vida — falei.
— Acho que corrida de cavalos é a terceira coisa que não
se deve fazer na vida, depois de incesto e dança folclórica inglesa.
— Você sempre diz para eu ampliar meus horizontes. Você
está adorando isso — provoquei-o. — E não finja que não está.
Então, eles largaram. Man Oh Man usava sela roxa com um
losango amarelo. Eu vi o animal se alinhar à pista branca, a cabeça estendida,
as pernas do jóquei subindo e descendo, os braços agitando-se para a frente e
para trás acima do pescoço do cavalo.
— Vamos lá, camarada!
Nathan estava envolvido, mesmo sem querer. Seus punhos
estavam cerrados, seus olhos, fixos
no borrão indistinto de animais correndo pelo lado da pista que estava mais distante
de nós.
— Vamos, Man Oh Man! — gritei. — Nosso bife do jantar
está cavalgando com você! — Vi o cavalo tentar em vão ganhar terreno, as
narinas dilatadas, as orelhas grudadas na cabeça. Meu coração subiu para a
boca. E então, quando alcançaram a reta final,
meu grito começou a morrer: — Tudo bem, pode ser um café — eu me esforcei. —
Fechamos com um café?
As tribunas ao meu redor explodiam em gritos e berros. A
duas cadeiras de nós, uma garota pulava, rouca de tanto gritar. Notei que eu
também pulava. Foi então que olhei para baixo e vi que Will estava de olhos
fechados, uma ligeira ruga no meio de suas sobrancelhas. Afastei minha atenção
da pista e me ajoelhei.
— Você está bem, Will? — perguntei, chegando para perto
dele. — Precisa de alguma coisa? — Tinha de gritar para ser ouvida naquela
confusão.
— Uísque — respondeu ele. — Duplo.
Encarei-o e seu olhar se ergueu até encontrar o meu. Ele
parecia completamente farto.
— Vamos comer alguma coisa — sugeri a Nathan.
O cavalo Man Oh Man, aquele impostor de quatro patas,
passou pela linha de chegada em um mísero sexto lugar. Houve nova gritaria e a
voz do locutor veio pelos alto-falantes: Senhoras
e senhores, uma incrível vitória de Love Be A Lady, seguido de Winter Sun e,
logo depois, Barney Rubble, duas cabeças atrás, na terceira posição.
Empurrei a cadeira de Will pelo meio dos absortos grupos,
batendo deliberadamente nas pessoas quando não atendiam ao meu segundo pedido
de licença para passar.
Nós já estávamos no elevador quando ouvi a voz de Will:
— Então, Clark, isso quer dizer que você me deve quarenta
libras?
*
* *
O restaurante tinha sido reformado e a cozinha estava sob
o comando de um chef com programa na TV cujo rosto estava em cartazes por todo
o hipódromo. Eu tinha olhado o cardápio antecipadamente.
— A especialidade da casa é pato com molho de laranja —
disse eu aos dois. — Pelo jeito, é gastronomia retrô, anos setenta.
— Como a sua roupa — disse Will.
Fora do frio e longe da multidão, ele parecia um pouco
mais animado. Começara a olhar ao redor, em vez de retirar-se novamente para
seu mundo solitário. Meu estômago começou a roncar, já antevendo um bom almoço
com pratos quentes. A mãe de Will tinha nos dado oitenta libras de “ajudinha”.
Decidi pagar por minha refeição e mostrar o recibo, por isso pediria o que me
apetecesse no menu, fosse pato assado retrô ou outra coisa.
— Gosta de sair para comer, Nathan? — perguntei.
— Sou mais de comida para viagem com cerveja — respondeu
ele. — Mas estou gostando de estar aqui hoje.
— Qual foi a última vez que você foi a um restaurante,
Will? — perguntei.
Ele e Nathan se entreolharam.
— Desde que estou lá, ele não foi a nenhum — disse
Nathan.
— Por estranho que pareça, não sou muito chegado a
receber comida na boca na frente de desconhecidos.
— Então vamos pedir uma mesa em que possamos colocar você
longe do salão — eu disse. Tinha previsto isso. — Se alguma celebridade estiver
aí dentro, você vai perder.
— Porque as celebridades pululam num hipodromozinho
lamacento em março.
— Você não vai estragar isso, Will Traynor — falei,
quando a porta do elevador se abriu. — A última vez que comi fora foi num
aniversário de quatro anos no único boliche indoor de Hailsbury, e não havia
uma única coisa que não estivesse coberta de bolo. Inclusive as crianças.
Percorremos o corredor acarpetado com nossa cadeira de
rodas. O restaurante ficava de um lado, atrás
de uma vidraça, e eu pude ver que muitas mesas estavam vazias. Meu estômago
roncou de expectativa.
— Olá — cumprimentei, entrando na recepção. — Uma mesa
para três, por favor. — Por
favor, não olhe para Will,
disse em silêncio para a mulher. Não
o faça se sentir esquisito. É importante que ele goste daqui.
— Sua tarja, por favor — pediu ela.
— Desculpe?
— Pode mostrar sua tarja de Área Especial?
Olhei para ela inexpressivamente.
— Este restaurante é exclusivo para os que têm a tarja da
Área Especial.
Olhei para trás, na direção de Will e Nathan. Eles não
podiam me ouvir, mas ficaram esperando, cheios de expectativa. Nathan estava
ajudando Will a tirar o casaco.
— Hum... pensei que poderíamos almoçar onde quiséssemos.
Temos as tarjas azuis.
Ela sorriu.
— Desculpe. Aqui é só para quem tem a tarja Especial.
Está escrito em todo o nosso material promocional.
Respirei fundo.
— Certo. Tem algum outro restaurante aqui?
— Creio que a nossa área informal, o Bufê à Quilo, está
em reformas, mas as tribunas têm barracas de comida. — Ela viu minha cara
desmoronar e acrescentou: — O Porco no Espeto é muito bom. Tem porco assado no
pão de passas. E eles também têm molho de maçã.
— Uma barraca.
— É.
Inclinei-me para ela.
— Por favor, viemos de longe e meu amigo ali não está se
sentindo muito bem com esse frio. Tem algum jeito de conseguirmos uma mesa
aqui? Precisamos realmente que ele fique num lugar quente. É muito importante
que ele tenha um bom dia.
Ela franziu o nariz.
— Lamento muito — disse ela. — Quebrar essa regra vai
além daquilo que minha função permite. Tem uma área para deficientes no andar de baixo, você pode fechar as portas.
Não dá para ver a pista de corrida, mas é bem aconchegante. Tem aquecedores e
tudo. Vocês podem comer lá dentro.
Olhei bem para ela. Eu podia sentir a tensão subindo
pelas minhas canelas. Pensei que eu poderia ficar completamente rígida.
Li o nome dela no crachá.
— Sharon — disse eu — o restaurante está longe de estar
lotado. Certamente seria melhor ter mais gente comendo do que deixar metade
dessas mesas vazia, não acha? Só por causa de um antiquado código de classes
num livro de regulamentos?
O sorriso dela lampejou sob a iluminação embutida.
— Senhora, já expliquei a situação. Se abrirmos exceção
para a senhora, teremos de fazer o mesmo para todos.
— Mas não faz sentido — argumentei. — Hoje é uma
segunda-feira chuvosa, estamos na hora do almoço. Você está com mesas vazias.
Nós queremos almoçar. Um almoço realmente caro, com guardanapos e tudo. Não
queremos comer espetinho de porco dentro de um armário sem vista, por mais
confortável que seja.
Algumas pessoas que estavam comendo no restaurante
começaram a se virar em nossa direção, curiosas com a discussão na entrada.
Pude ver que Will estava constrangido. Ele e Nathan concluíram que alguma coisa
estava errada.
— Então, a senhora devia ter comprado a tarja da Área
Especial.
— Certo. — Alcancei minha bolsa e comecei a vasculhá-la
em busca da minha carteira. — Quanto é a tarja da Área Especial? — Lenços de
papel, velhos tickets de ônibus e um dos carrinhos Hot Wheels de Thomas voaram.
Não me incomodava mais com nada. Eu daria a Will seu almoço bacana num
restaurante chique. — Aqui. Quanto é? Mais dez? Vinte? — Empurrei um punhado de
notas para ela.
Ela olhou para a minha mão.
— Desculpe, senhora, não vendemos tarjas aqui. Isto é um
restaurante. A senhora terá que voltar à bilheteria.
— Aquela que fica lá trás, do outro lado das pistas.
— É.
Nós nos encaramos.
A voz de Will surgiu:
— Louisa, vamos embora.
De repente, senti meus olhos se encherem de lágrimas.
— Não — disse eu. — É ridículo. Viemos até aqui. Aguardem
aqui enquanto compro tarjas da Área Especial para todos nós. E então,
almoçaremos.
— Louisa, estou sem fome.
— Vamos ficar
ótimos depois de almoçar. Podemos ver os cavalos e tudo. Vai ser ótimo.
Nathan se adiantou e colocou a mão no meu braço.
— Louisa, acho que Will quer apenas ir para casa.
Nós éramos, naquele momento, o foco de atenção de todo o
restaurante. O olhar dos clientes passou por nós e viajou por cima de mim até
chegar a Will, onde pairou com um leve toque de nojo ou pena. Senti por ele.
Senti como se aquilo fosse um fracasso total. Olhei para a mulher, que pelo
menos fez o favor de parecer meio constrangida depois que Will de fato falou.
— Bom, obrigada — disse eu a ela. — Obrigada por ser
amável para cacete.
— Clark... — a voz de Will era carregada de advertência.
— Fico feliz por você ser tão flexível. Certamente eu a recomendarei a todos os meus
amigos.
— Louisa!
Agarrei minha bolsa e a enfiei embaixo do braço.
— Você esqueceu o seu carrinho de brinquedo — disse ela,
quando deslizei para fora pela porta que Nathan segurou para mim.
— O carrinho também precisa de uma maldita tarja? —
perguntei, e os segui para dentro do elevador.
Descemos em silêncio. Passei quase todo o pequeno
percurso tentando impedir que as mãos tremessem de raiva.
Quando chegamos ao pátio térreo, Nathan murmurou:
— Acho que podíamos comprar alguma coisa nas barracas,
sabe. Estamos sem comer há horas. — Deu uma olhadela para Will, para que eu
soubesse a quem ele realmente se referia.
— Ótimo — disse eu, animada. Dei um pequeno suspiro. — Eu
adoro um pouco de torresmo. Vamos ao velho porco assado.
Pedimos três espetos de porco,
torresmo e molho de maçã e
ficamos abrigados debaixo do toldo listrado enquanto
comíamos. Sentei-me num pequeno caixote para ficar
na mesma altura de Will e ajudei-o a comer, partindo pedaços pequenos,
usando
meus dedos quando necessário. As duas mulheres que serviam atrás do
balcão fingiam não olhar para nós. Pude vê-las observando Will com
o canto dos olhos, cochichando uma com a outra, quando achavam que não
ouvíamos.
Coitado
– eu praticamente podia escutá-las dizer. – que maneira horrível de se viver.
Fiz
cara séria para elas, desafiando-as
a olhá-lo daquele jeito. Tentei não pensar muito no que Will deveria estar
sentindo.
A chuva tinha parado, mas a pista de corrida varrida pelo
vento pareceu ser absolutamente desoladora, sua superfície verde e marrom suja
por papéis de apostas, o horizonte liso e vazio. O estacionamento tinha alagado
com a chuva e, de longe, ouvíamos apenas o som distorcido do alto-falante enquanto
outra corrida trovejava ao passar.
— Acho melhor irmos — disse Nathan, limpando a boca. —
Quer dizer, foi ótimo e tal, mas é melhor não pegarmos trânsito, não?
— Tudo bem — respondi. Amassei meu guardanapo de papel e
joguei-o na lixeira.
Will recusou o terceiro e último pedaço do espeto.
— Ele não gostou? — perguntou a mulher, quando Nathan
começou a empurrar a cadeira pelo gramado.
— Não sei. Talvez ele tivesse gostado mais se a comida
não viesse acompanhada de pessoas enxeridas — respondi, jogando os restos na
lixeira.
No entanto, voltar para o carro e acionar a rampa era
mais fácil na teoria que na prática. Nas poucas horas que ficamos no hipódromo, os carros que chegaram e saíram transformaram
o estacionamento num mar de lama. Mesmo com a força impressionante de Nathan e
meu melhor esforço, não conseguimos empurrar a cadeira nem até a metade do
caminho gramado até o carro. As rodas atolavam e rangiam sem conseguir vencer
os últimos centímetros. Meus pés e os de Nathan escorregavam na lama, que subia
pelo lado dos sapatos.
— Não vai dar — constatou Will.
Eu me recusei a ouvi-lo. Não podia aceitar a ideia de que
nosso dia terminaria daquele jeito.
— Acho que vamos precisar de ajuda — concluiu Nathan. —
Não consigo nem colocar a cadeira de volta na trilha. Atolou.
Will deu um sonoro suspiro. Parecia estar mais irritado
do que eu jamais o vira.
— Will, posso carregá-lo até o banco da frente, se eu
inclinar um pouco o encosto. E então, Louisa e eu podemos ver se conseguimos
levar a cadeira depois.
A voz de Will surgiu por entre os dentes trincados:
— Não quero que o dia de hoje termine comigo sendo içado
pelos bombeiros.
— Desculpe, companheiro — disse Nathan. — Mas Lou e eu
não vamos conseguir fazer isso sozinhos. Escute, Lou, você é mais bonita que
eu. Vá e arranje mais alguns braços lá onde estávamos, sim?
Will fechou os olhos, endureceu o maxilar e eu corri em
direção às tribunas.
*
* *
É inacreditável que tantas pessoas possam recusar um
pedido de ajuda que envolva uma cadeira de rodas atolada na lama,
principalmente quando o pedido vem de uma garota usando uma minissaia e
lançando seu sorriso mais amável. Não costumo lidar bem com estranhos, mas o
desespero me fez destemida. Passei de um grupo a outro de turfistas que estavam na tribuna principal, perguntando se
podiam ajudar um minuto. Olharam para mim e para minhas roupas como se eu
estivesse tramando alguma cilada.
— Trata-se de um cadeirante — eu insistia. — Está um
pouco preso.
— Estamos só esperando pelo próximo páreo — diziam. Ou: —
Desculpe-me. — Ou: — Só depois do páreo das duas e meia. Temos um cavalo
correndo nesse.
Cheguei até mesmo a pensar em arranjar um jóquei ou dois.
Mas, quando cheguei perto da área destinada a eles, reparei que eram menores
que eu.
No momento em que cheguei ao local de aquecimento, eu
estava incandescente de raiva contida. Desconfio
que rosnava para as pessoas, e não sorria. E ali estavam, finalmente, alegria suprema, os rapazes de camisas polo
listradas. Nas costas das camisas lia-se “Última Batalha do Marky” e eles
seguravam latas de Pilsner e Tennent’s Extra. O sotaque dava a entender que
eram de algum lugar do nordeste e eu tinha certeza que não tinham parado de
beber nem por um instante nas últimas vinte e quatro horas. Eles vibraram
quando me aproximei, e precisei lutar contra a vontade de lhes mostrar o dedo
outra vez.
— Sorria, belezinha. É o último fim de semana de solteiro de Marky — disse um, com voz
pastosa e colocando no meu ombro a mão do tamanho de um pernil.
— Hoje é segunda-feira. — Tentei não vacilar ao me
desvencilhar dele.
— Você está brincando. Já é segunda? — Ele cambaleou. —
Bom, acho que você deveria dar um beijo nele.
— Na verdade — disse eu — vim aqui pedir ajuda a vocês.
— Ajudo no que quiser, gata. — A frase foi acompanhada de
uma piscadela lasciva.
Os colegas ficaram balançando ao redor dele como plantas
aquáticas.
— Não, sério. Preciso que vocês ajudem a um amigo. Lá no
estacionamento.
— Desculpe, não sei se estou em condições de ajudar,
gata.
— Preste atenção. Vai começar o próximo páreo, Marky.
Você apostou nesse? Acho que eu apostei.
Eles se viraram para a pista, já perdendo o interesse em
mim. Olhei por cima do meu ombro para o estacionamento, vendo a figura curvada de Will, com Nathan puxando inutilmente a
cadeira. Imaginei-me voltando para casa e contando aos pais de Will que
tínhamos largado a caríssima cadeira de rodas num estacionamento. Foi então que
vi a tatuagem.
— Ele é soldado— falei, alto. — Ex-soldado.
Um por um, eles se viraram para mim.
— Foi ferido. No Iraque. Nós só queríamos que ele tivesse
um bom dia ao ar livre. Mas ninguém nos ajuda. — Ao falar isso, senti lágrimas
brotarem nos meus olhos.
— Veterano? Você está brincando. Onde ele está?
— No estacionamento. Pedi a várias pessoas, mas elas
simplesmente não quiseram ajudar.
Tive a impressão de que eles levaram um ou dois minutos
para processar o que eu dizia. Depois, se entreolharam, admirados.
— Vamos, rapazes. Não vamos assistir a esse páreo. —
Passaram por mim em uma fila nada reta. Eu podia
ouvi-los comentar entre eles, murmurando: — Malditos civis... não têm ideia de
como é isso...
Quando alcançamos o estacionamento, vi Nathan ao lado de
Will, cuja cabeça estava enfiada
na gola do casaco por causa do frio, apesar de Nathan ter colocado mais uma
manta no ombro dele.
— Esses simpáticos cavalheiros se ofereceram para nos
ajudar — expliquei.
Nathan olhou as latas de cerveja. Preciso admitir que era
preciso se esforçar para imaginar algum deles em uniforme militar.
— Querem levar ele para onde? — perguntou um.
Os outros rodearam Will, saudando-o com a cabeça. Um
deles ofereceu a cerveja, provavelmente incapaz de notar que Will não podia
segurá-la.
Nathan indicou o nosso carro.
— Queremos colocá-lo no carro. Mas, para fazermos isso,
temos de levar a cadeira até o suporte e depois dar marcha a ré até ele.
— Não precisa fazer isso — disse um deles, dando um
tapinha nas costas de Nathan. — Podemos carregá-lo até o carro, não é, rapazes?
Um coro de vozes concordou. Eles começaram a se
posicionar ao redor da cadeira. Troquei o pé de apoio, desconfortável.
— Não sei... é uma distância grande para vocês carregarem
— avisei. — E a cadeira é muito pesada.
Eles estavam completamente bêbados. Alguns mal conseguiam
segurar a lata de cerveja. Outro deixou a lata de Tennent’s na minha mão.
— Não se preocupe, gata. Fazemos qualquer coisa por um
colega de farda, não é, rapazes?
— Não vamos deixar você aqui, camarada. Jamais
abandonamos um companheiro, não é?
Olhei para Nathan e, com a cabeça, neguei furiosamente
diante de sua cara intrigada. Will parecia incapaz de se manifestar. Estava
sério e, então, quando os homens se agruparam ao redor de sua cadeira e com um
grito a içaram, ele ficou meio assustado.
— Qual era o regimento dele, querida?
Tentei sorrir, vasculhando minha memória em busca de
nomes de regimentos.
— Décimo Primeiro... Décimo Primeiro Regimento de Rifles
— respondi.
— Não conheço — comentou outro homem.
— É um regimento novo — gaguejei. — Supersecreto. Fica
baseado no Iraque.
Os tênis deles escorregaram na lama e senti meu coração
disparar. A cadeira de Will tinha sido levantada a vários centímetros do chão,
como se fosse uma espécie de liteira. Nathan correu para pegar a bolsa de Will
e abrir o carro antes que chegássemos até lá.
— Foram os garotos desse regimento que treinaram em
Catterick?
— Eles mesmos — respondi, e então mudei de assunto. —
E... qual de vocês vai se casar?
Tínhamos trocado números de telefone quando eu finalmente me livrei de Marky e seus companheiros. Eles fizeram
uma vaquinha de quarenta libras para ser doada para o fundo de reabilitação de
Will e só desistiram quando eu disse que ficaríamos
mais contentes se fizessem um brinde a nós.
Tive de dar um beijo em cada um. Eu estava quase tonta com o bafo de bebida deles
quando terminei. Continuei acenando enquanto voltavam para a tribuna e Nathan
buzinou, chamando para que eu entrasse no carro.
— Eles foram úteis, não? — perguntei, animada, ao ligar o
carro.
— O mais alto derramou toda a cerveja na minha perna
direita — disse Will. — Estou com cheiro de cervejaria.
— Não, não acredito no que estou vendo — exclamou Nathan,
quando finalmente saí pela
entrada principal. — Olhem. Ali tem um enorme estacionamento para deficientes, ao lado da tribuna. E todo asfaltado.
*
* *
Will não disse mais nada até o fim do dia. Acenou para Nathan quando o deixamos em casa e
então ficou em silêncio enquanto
eu pesquisava sobre qual estrada tomar para o castelo, que parecia ir se
estreitando a perder de vista agora que a temperatura voltara a baixar, e enfim
parei o carro do lado de fora do anexo.
Desci a cadeira de Will, levei-o para dentro e preparei
uma bebida quente para ele. Troquei seus sapatos e sua calça, colocando a
manchada de cerveja na máquina de lavar, e acendi a lareira para que ele
pudesse se aquecer. Liguei a TV e puxei as cortinas para deixar a sala
aconchegante – talvez ainda mais aconchegante devido ao tempo que passamos no
frio. Mas foi só quando me sentei com ele na sala, bebericando meu chá, que
percebi que ele não estava falando – não por cansaço, ou por querer assistir TV.
Ele apenas não estava falando comigo.
— Tem... alguma coisa errada? — perguntei, quando ele não
disse nada após meu terceiro comentário sobre as notícias locais.
— Você sabe, Clark.
— Como assim?
— Bom, você sabe tudo que há para se saber a meu
respeito. Então, diga qual é o problema.
Olhei bem para ele.
— Desculpe — disse eu, afinal.
— Sei que hoje as coisas não saíram exatamente como planejei. Era para ser um
ótimo passeio. Eu realmente pensei que você fosse gostar.
Eu não disse que ele estava sendo rude, que ignorava o
que eu passei só para distraí-lo, que nem tentou aproveitar. Também não falei
que, se tivesse me deixado ir comprar as malditas tarjas, teríamos tido um
ótimo almoço e as outras coisas teriam sido esquecidas.
— É isso que quero dizer.
— O quê?
— Ah, você é igual a todos eles.
— Como assim?
— Se você tivesse se preocupado em me perguntar, Clark.
Se, por uma vez, tivesse me consultado sobre esse tal passeio ao ar livre, eu
teria dito a você. Detesto cavalos e corridas de cavalo. Sempre detestei. Mas
você não se preocupou em perguntar. Decidiu o que gostaria que eu fizesse e foi em frente. Fez o que todo mundo faz. Decidiu
por mim.
Engoli em seco.
— Eu não tive a intenção de...
— Mas você fez.
Ele virou a cadeira de costas para mim e, após alguns
minutos de silêncio, concluí que eu estava dispensada.
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