sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Capítulo 16 - Como eu era antes de você

Não tinha jeito. A divisão dos quartos na hora de dormir não estava dando certo. Todo fim de semana que Treena passava em casa, a família Clark fazia um longo troca-troca de camas. Depois do jantar de sexta-feira, meus pais ofereciam o quarto deles, e Treena aceitava após eles garantirem que não, não estavam sendo expulsos, e que Thomas se sentiria melhor num quarto que lhe era familiar. Assim, segundo eles, todo mundo conseguia dormir bem.
Mas o fato de mamãe dormir na sala com papai exigia que eles levassem sua própria coberta, os travesseiros e o lençol, pois ela não dormia direito se a cama não estivesse exatamente do jeito como gostava. Então, após o jantar, ela e Treena tiravam as roupas de cama do quarto de casal e colocavam lençóis novos, além de um protetor de colchão, caso Thomas fizesse xixi. Enquanto isso, a roupa de cama dos dois era dobrada e deixada no canto da sala, onde Thomas pegava o lençol, amarrava as pontas nas cadeiras da sala e erguia uma tenda.
Vovô ofereceu o quarto dele, mas ninguém aceitou. Cheirava a tabaco e jornal velho, e levaria o fim de semana inteiro para ser limpo. Eu quase sempre me sentia culpada – afinal, era tudo por minha causa – mas sabia que não podia me oferecer para voltar ao quartinho. Aquele lugar abafado e sem janelas tinha se tornado uma espécie de assombração para mim. Só de pensar em dormir lá outra vez, eu sentia um aperto no peito. Eu tinha vinte e sete anos. Era a principal provedora da família. Não podia dormir num lugar do tamanho de um armário.
Num fim de semana, falei que dormiria no apartamento de Patrick e, no fundo, todos ficaram bem aliviados. Mas, enquanto eu estava fora, Thomas passou a mãozinha suja pelas minhas cortinas novas e desenhou com tinta permanente no meu igualmente novo edredom. Por isso, meus pais decidiram que seria melhor eles dormirem no meu quarto; Treena e Thomas foram para o deles, que, pelo jeito, não se importavam com desenhos de caneta pilot.
Depois de avaliar a quantidade de roupa de cama extra e o custo de lavagem delas, mamãe concluiu que não adiantava muito eu passar as sextas e sábados na casa de Pat.
E também era preciso considerar a situação de Patrick. Ele era agora um homem obcecado. Comia, bebia e respirava o Norseman Xtreme. Seu apartamento, que antes continha poucos móveis e era perfeitamente limpo, agora estava cheio de planilhas de treinamento e dietas alimentares. Ele tinha uma nova bicicleta superleve que ficava no corredor e na qual eu não tinha permissão para tocar, para não interferir no delicado equilíbrio de sua capacidade de corrida.
E ele quase não ficava mais em casa, nem nas noites de sexta e sábado. Com os treinos de Patrick e o meu trabalho, nós nos acostumamos a passar menos tempo juntos. Eu podia ir com ele à pista e vê-lo dar voltas e voltas até completar os quilômetros necessários. Ou podia ficar em casa vendo TV sozinha, enroscada no canto de seu enorme sofá de couro. Não havia comida na geladeira, a não ser fatias de peito de peru e horríveis bebidas energéticas com a consistência de ovas de rã. Treena e eu provamos uma vez e cuspimos, engasgando de forma tão dramática quanto faria uma criança.
Na verdade, eu não gostava do apartamento de Patrick. Ele o comprara um ano antes, quando finalmente se convenceu de que a mãe ficaria bem sem ele. Estava num momento favorável no trabalho e disse que era importante um de nós ter uma casa própria. Achei que essa era a dica para discutirmos se pretendíamos morar juntos, mas, de qualquer forma, acabamos não conversando a respeito; não somos do tipo de casal que toca em assuntos que nos deixam desconfortáveis. Sendo assim, o apartamento dele não tinha nenhum toque pessoal meu, apesar de estarmos juntos há tanto tempo. Nunca consegui dizer a ele, mas preferia morar na minha casa, com todo o barulho e aperto, do que naquele apartamento de solteiro, sem alma, sem personalidade, com vagas marcadas na garagem e uma vista careta do castelo.
Além do mais, era um pouco solitário.
— Tenho que seguir as instruções do plano de treinamento, querida — ele diria, caso eu reclamasse. — Se, a essa altura do campeonato, eu não fizer no mínimo cinquenta quilômetros, jamais chegarei lá. — Então, ele me dava novas informações sobre o estado de sua inflamação na canela, ou pedia para eu passar o spray de proteção térmica.
Quando Patrick não estava treinando, participava de infindáveis reuniões com outros membros da equipe, comparando equipamentos e finalizando os acertos da viagem. Ficar com eles era a mesma coisa que estar com um grupo de pessoas que falam coreano. Eu não entendia nada do que diziam, nem tinha vontade de participar.
Eu pretendia acompanhá-los à Noruega, dali a sete semanas. Mas não consegui dizer-lhe que ainda não tinha pedido folga para os Traynor. Como poderia? O Norseman Xtreme se realizaria a menos de uma semana do fim do meu contrato. Era infantil da minha parte não enfrentar a situação mas, sinceramente, eu só pensava em Will e no tique-taque de um relógio. Não conseguia me concentrar em mais nada.
A maior ironia de tudo isso era que eu nem dormia direito no apartamento de Patrick. Não sei por quê, mas saía de lá para trabalhar com a impressão de estar dentro de uma redoma e parecendo que tinha levado um soco em cada olho. Passei a usar corretivo para disfarçar as olheiras com o mesmo apuro de quem decora um ambiente.

* * *

— O que está acontecendo, Clark? — perguntou Will.
Abri os olhos. Ele estava bem ao meu lado, a cabeça inclinada, me observando. Tive a impressão de que estava ali há algum tempo. Automaticamente, coloquei a mão na boca, para o caso de estar babando.
Os créditos do filme que eu devia ter assistido passavam na tela da TV lentamente.
— Nada, desculpe-me. É que está tão confortável aqui. — Eu me sentei, tentando me endireitar.
— Em três dias, é a segunda vez que você adormece. — Ele analisou o meu rosto. — E está com uma aparência horrível.
Então contei a ele. Falei da minha irmã, dos nossos arranjos para dormir e que eu não queria criar confusão, pois, toda vez que olhava para papai, ele mal conseguia disfarçar sua frustração por não poder dar à família uma casa onde todos conseguissem dormir direito.
— Ele ainda não encontrou outro emprego?
— Não. Acho que é por causa da idade. Mas não tocamos no assunto. É... — Encolhi os ombros. — É bem delicado para todos.
Esperamos os créditos terminarem, então fui até o aparelho, tirei o DVD e o guardei na caixa. Não achava certo contar os meus problemas para Will. Pareciam constrangedoramente bobos, comparados com os dele.
— Vou me acostumar. Não tem problema. Ficarei bem — falei.
Pelo resto da tarde, Will pareceu preocupado. Lavei o rosto, voltei e liguei o computador para ele. Quando trouxe um suco, ele manobrou a cadeira na minha direção.
— É bem simples — disse, como se ainda estivéssemos conversando. — Você pode dormir aqui nos finais de semana. Tem um quarto vazio que passará a ter utilidade.
Parei, segurando o copo de suco.
— Não posso fazer isso.
— Por que não? Não vou lhe pagar hora extra.
Coloquei o copo com canudo no porta-copo.
— E o que sua mãe vai pensar disso?
— Não faço ideia.
Devo ter parecido preocupada, pois ele acrescentou:
— Não tem problema. Sou fácil de controlar.
— O quê?
— Se está achando que eu tenho um plano secreto e desonesto para seduzi-la, basta me desligar da tomada.
— Engraçadinho.
— É sério. Pense a respeito. Este quarto pode ser a sua segunda opção. As coisas mudam mais rápido do que você imagina. Sua irmã pode resolver não voltar para casa todos os finais de semana, ou pode arranjar um namorado. Muita coisa pode mudar.
E você pode não estar mais conosco daqui a dois meses, pensei. E, imediatamente, me detestei por ter pensado isso.
— Explique uma coisa — disse ele, saindo da sala. — Por que o Corredor não oferece o apartamento dele para você ficar?
— Ah, ele ofereceu — respondi.
Ele olhou para mim como se fosse continuar a conversa.
Depois, pareceu mudar de ideia.
— Bom, já disse que o quarto está à disposição — avisou, dando de ombros.

Coisas que Will gostava de fazer.
1. Ver filmes, principalmente estrangeiros, com legendas. De vez em quando, aceitava ver um suspense ou até um romance épico, mas recusava-se terminantemente a ver comédias românticas. Se eu ousasse alugar uma, ele passava as duas horas do filme dando muxoxos de menosprezo, ou comentando todos os clichês do roteiro até o filme perder a graça.
2. Ouvir música clássica. Entendia muito disso. Também gostava de música moderna, mas considerava o jazz uma bobagem pretensiosa. Uma tarde, ao ver o que tinha no meu MP3, riu tanto que quase soltou um dos tubos que ficam presos ao seu corpo.
3. Ficar no jardim quando está calor. Às vezes, eu ficava observando-o da janela, a cabeça inclinada para trás, desfrutando o sol no rosto. Quando observei a capacidade que tinha de simplesmente curtir aquele momento (coisa que eu nunca soube), ele disse que, quando não se pode mexer braços e pernas, não há muita escolha.
4. Fazer com que eu lesse livros e revistas e depois os comentasse. Conhecimento é poder, Clark, ele dizia. No começo, eu detestava, parecia que estava sendo sabatinada na escola sobre minha capacidade de memorizar. Mas com o tempo percebi que, para Will, não havia resposta errada. Ele gostava de debater comigo. Perguntava minha opinião a respeito das notícias nos jornais, discordava de mim sobre personagens de livros. Parecia ter opinião sobre quase tudo: a atuação do governo; se uma empresa devia comprar outra; se alguém devia ser condenado à prisão. Se achava que eu estava desatenta ou repetindo a opinião dos meus pais ou de Patrick, ele dizia apenas: “Não. Nada disso.” E ficava muito desapontado quando eu dizia que ignorava o tema. Por isso, passei a me prevenir e lia o jornal no ônibus para me preparar. “Bom argumento, Clark”, ele diria, e eu abriria um sorriso. Depois, eu me xingava por deixar Will bancar o professor de novo.
5. Fazer a barba. A cada dois dias, eu ensaboava o rosto dele e deixava-o apresentável. Se ele estivesse de bom humor, recostava-se na cadeira de rodas, fechava os olhos e a expressão em seu rosto era a mais próxima que eu conhecia do prazer físico. Talvez eu esteja inventando isso. Vai ver eu enxergava o que gostaria de ver. Mas ele ficava em completo silêncio enquanto eu passava com cuidado a lâmina pelo seu queixo, escanhoando. Quando abria os olhos, sua expressão ficava mais suave, como quem acorda de um sonho particularmente agradável. O rosto de Will estava mais corado, graças ao tempo que passávamos ao ar livre, a sua pele se bronzeava com facilidade. Eu guardava as lâminas de barbear no alto do armário do banheiro, atrás de um grande vidro de condicionador.
6. Fazer coisas de homem. Principalmente com Nathan. De vez em quando, antes das atividades de rotina da noite, eles iam para os fundos do jardim e Nathan abria duas latas de cerveja. Às vezes, ouvia-os discutindo rúgbi ou falando de uma mulher que viram na TV e aquele homem nem parecia Will. Mas eu entendia que ele precisava disso, precisava de alguém com quem pudesse ser apenas um homem, com quem pudesse fazer coisas de homem. Era um pouco de “normalidade” na sua estranha e isolada vida.
7. Comentar sobre as minhas roupas. Na verdade, gostava de fazer cara feia para o que eu usava. Exceto as meias listradas amarelas e pretas. Nas duas vezes que as usei, ele não disse nada, apenas concordou com a cabeça, como se tudo estivesse nos seus devidos lugares.

— Você encontrou meu pai no centro da cidade, outro dia.
— Ah, é.
Eu estava estendendo roupa. O varal ficava escondido no que a Sra. Traynor chamava de horta. Acho que ela não queria coisas tão prosaicas quanto roupas lavadas poluindo a vista de seus canteiros de ervas. Minha mãe pendurava as roupas quase como se fossem uma insígnia de orgulho. Um desafio para as vizinhas: Lavem melhor que isso, senhoras! Papai teve trabalho para convencê-la a não colocar outro varal giratório na frente de casa.
— Meu pai perguntou se você comentou alguma coisa comigo.
— Ah. — Fiquei inexpressiva. Depois, como Will pareceu esperar que eu continuasse, afirmei: — Claro que não.
— Ele estava com alguém?
Devolvi o último prendedor ao cesto. Peguei o cesto de prendedores e guardei-o dentro do cesto vazio de roupa lavada. Virei-me para Will.
— Estava.
— Com uma mulher.
— É.
— Ruiva?
— É.
Will refletiu um instante.
— Peço desculpas se esperava que eu contasse — falei. — Mas... achei que não era da minha conta.
— Não é um assunto agradável.
— Não.
— Se serve de consolo, Clark, essa não é a primeira vez — acrescentou ao entrar no anexo.

* * *

Deirdre Bellows precisou me chamar duas vezes até eu olhar. Eu estava anotando em um bloquinho os possíveis lugares e as dúvidas, os prós e os contras, e até esqueci que estava dentro do ônibus. Tentava encontrar um jeito de levar Will ao teatro. Só que o mais próximo ficava a duas horas de carro e apresentava o musical Oklahoma! Não conseguia imaginar Will apreciando um personagem cantar Oh what a beautiful morning, mas todas as peças sérias em cartaz estavam em Londres. E chegar a Londres ainda era uma impossibilidade.
Eu agora conseguia tirar Will de casa, mas já tínhamos feito tudo o que era possível num raio de uma hora de distância e eu não tinha ideia de como convencê-lo a ir mais longe que isso.
— Perdida no seu mundinho, hein, Louisa?
— Ah, olá, Deirdre. — Cheguei um pouco para o lado para ela poder sentar.
Deirdre e mamãe eram amigas desde garotas. Ela era dona de uma loja de cortinas e almofadas e já havia se divorciado três vezes. Tinha tanto cabelo que parecia usar peruca e o rosto era triste e ansioso como se ainda sonhasse com o cavaleiro que viria buscá-la num cavalo branco.
— Não costumo pegar ônibus, mas meu carro está na oficina. Como você está? Sua mãe me contou sobre o seu trabalho. Parece muito interessante.
É isso que dá morar em cidade pequena. Todo mundo sabe da sua vida. Não há segredo: nem o fato de eu, aos quatorze anos, ter sido vista fumando no estacionamento de um supermercado fora da cidade; nem o fato de meu pai ter colocado telhado novo no banheiro de baixo. Os detalhes do cotidiano das pessoas eram tema de conversa de mulheres como Deirdre.
— O trabalho é bom, sim.
— E paga bem.
— É.
— Fiquei muito contente por você, depois de toda aquela história do café. Uma pena terem fechado. A cidade está perdendo os melhores estabelecimentos comerciais. Lembro que tínhamos uma mercearia, uma padaria e um açougue na avenida principal. Só faltava um fabricante de velas!
— Hum. — Vi que ela olhava a minha lista e fechei o bloco. — Bom, pelo menos ainda temos onde comprar cortinas. Como vai a sua loja?
— Ah, ótima... é. Mas o que tem nesse bloquinho? Alguma coisa de trabalho?
— Só estou pensando em coisas que Will possa gostar de fazer.
— Will é o seu deficiente?
— É. Meu patrão.
— Seu patrão. É um jeito simpático de dizer. — Ela me cutucou. — E como a sua inteligente irmã está na faculdade?
— Está bem. Thomas também.
— Ela vai acabar mandando no país, aquela menina. Mas preciso dizer uma coisa, Louisa, eu pensava que você sairia de casa antes dela. Sempre achamos você tão espertinha. Continuamos achando, claro.
Dei um sorriso educado. Não sabia o que mais podia fazer.
— Mas alguém tem de ficar, não é? E é ótimo para sua mãe que você goste de ficar por perto.
Tive vontade de discordar dela, mas depois lembrei que nada do que fiz nos últimos sete anos sugeria alguma ambição ou vontade minha de ir além do final da rua.
Continuei sentada ali, enquanto o velho e cansado motor do ônibus rosnava e engasgava; de repente tive a sensação de ver o tempo passar e de perder grande parte dele nas pequenas idas e vindas pelo mesmo caminho. Contornando o castelo. Olhando Patrick dar uma volta na pista. As besteiras de sempre. A mesma rotina.
— Ah, vou descer nesse ponto. — Deirdre se levantou, pesada, pendurando no ombro a bolsa de verniz. — Mande um beijo para sua mãe. Diga que amanhã apareço por lá.
Olhei para ela, piscando.
— Fiz uma tatuagem. Uma abelha — falei, de repente.
Ela hesitou, segurando-se na beira do banco.
— No quadril. Uma tatuagem permanente — acrescentei.
Deirdre olhou para a porta do ônibus. Pareceu meio intrigada, depois me deu o que interpretei como um sorriso complacente.
— Ah, que ótimo, Louisa. Como eu disse, avise a sua mãe que apareço amanhã.

* * *

Todos os dias, enquanto Will assistia a TV ou estava ocupado com alguma outra coisa, eu usava o computador dele para procurar o programa mágico que Deixaria Will Feliz.
Mas o tempo foi passando e vi que a lista de coisas que não podíamos fazer e de lugares a que não podíamos ir estava maior do que a lista do que podíamos efetivamente fazer.
Com isso, voltei às salas de bate-papo virtual e pedi sugestões.
Olá!, escreveu Ritchie. Bem-vinda ao nosso mundo, Abelha.
Nos bate-papos seguintes, aprendi que ficar bêbado numa cadeira de rodas tem seus próprios riscos, pode-se inclusive enfrentar problemas com o cateter, cair na calçada e ser levado para a casa errada por outros bêbados. Aprendi também que não há um lugar onde os não cadeirantes sejam mais ou menos prestativos, mas que Paris era a cidade menos amigável do mundo para tetraplégicos. Isso me deixou um pouco decepcionada, pois um pedacinho otimista de mim ainda esperava que fossemos lá.
Comecei a preparar uma nova lista: coisas que não se pode fazer com um tetraplégico.

1. Andar de metrô (a maioria das estações não tem elevador), o que excluía metade dos programas em Londres, a menos que fôssemos de táxi.
2. Nadar sem ajuda e quando a temperatura estiver provocando arrepios minutos após sair da água. Os espaços para deficientes físicos trocarem de roupa não adiantam muito se a piscina não tiver um elevador. Mas claro que Will não aceitaria entrar numa piscina com elevador.
3. Ir ao cinema, a menos que reserve antes um lugar na frente, ou que os espasmos de Will não estejam frequentes no dia. Passei no mínimo vinte minutos de cócoras no chão durante Janela indiscreta, catando as pipocas que Will involuntariamente jogou para o alto após uma contração do joelho.
4. Ir à praia, a menos que a cadeira seja adaptada com “rodas gordas”. A de Will não era.
5. Viajar de avião quando a “cota” para deficientes físicos estiver completa.
6. Fazer compras, a menos que todas as lojas estejam equipadas com as rampas obrigatórias. Muitas lojas ao redor do castelo argumentavam que não podiam instalar rampas por estarem em um prédio histórico. Em alguns casos, era verdade.
7. Ir a qualquer lugar que seja frio ou quente demais (devido aos problemas de temperatura de Will).
8. Ir a qualquer lugar sem se preparar antes (é preciso arrumar as bolsas e conferir o itinerário para saber se há acesso para deficientes).
9. Sair para jantar fora, se a pessoa se incomoda de ser alimentada por outra ou, conforme o estado do cateter, se o banheiro do restaurante tiver escada.
10. Fazer longas viagens de trem (é exaustivo e muito difícil entrar no vagão com uma cadeira motorizada sem ajuda.)
11. Cortar o cabelo depois de tomar chuva (o cabelo gruda nas rodas da cadeira de Will. Foi estranho quando isso ocorreu, e nós dois achamos nojento).
12. Ir à casa de amigos, a menos que tenha rampa de acesso para cadeira de rodas. A maioria das casas tem escada e nada de rampas. A nossa era uma rara exceção. Mas Will dizia que, de qualquer jeito, não havia ninguém que ele quisesse visitar.
13. Descer a colina do castelo com chuva forte (os freios às vezes falhavam e a cadeira era muito pesada para eu segurar).
14. Ir a qualquer lugar onde possa haver bêbados. Will atraía-os. Eles se agachavam ao lado da cadeira, jogavam fumaça de cigarro em cima dele e lançavam longos olhares condoídos. Às vezes, chegavam até a empurrar a cadeira dele para fora.
15. Ir a qualquer lugar onde haja uma multidão. Isso significa que, com a proximidade do verão, passear ao redor do castelo ficou mais difícil e quase todos os lugares aos quais eu planejava ir (feiras temáticas, peças ao ar livre, shows) acabaram sendo descartados.

Em busca de novas ideias, perguntei aos tetraplégicos dos chats o que eles mais gostariam de fazer e a resposta foi quase unânime: sexo. Deram até alguns detalhes não solicitados.
Mas, no fundo, não foi uma grande ajuda. Faltavam oito semanas e eu estava sem ideias.

* * *

Dois dias depois da nossa conversa embaixo do varal de roupas, cheguei em casa e encontrei papai em pé no corredor. O que já era estranho por si só, pois, nas últimas semanas, ele passava os dias recluso no sofá, com a desculpa de fazer companhia para o vovô. Mas ele vestia uma camisa passada, fizera a barba e o corredor cheirava a loção pós-barba Old Spice. Eu tinha certeza de que ele tinha esse vidro de loção desde 1974.
— Você chegou.
Fechei a porta de casa.
— Cheguei.
Estava cansada e ansiosa. Tinha passado todo o trajeto do ônibus falando no celular com um agente de viagens sobre possíveis lugares aonde ir com Will, mas ficamos frustrados. Precisava levá-lo para mais longe de casa. Mas parecia não haver um só lugar num raio de oito quilômetros do castelo ao qual ele realmente quisesse ir.
— Você pode preparar seu próprio chá esta noite? — perguntou papai.
— Claro. Devo encontrar Patrick no pub mais tarde. Por quê? — Pendurei meu casaco num gancho.
O armário ficava bem mais vazio sem os casacos de Treena e Thomas.
— Porque vou levar sua mãe para jantar fora.
Fiz alguns cálculos mentalmente.
— Esqueci o aniversário dela?
— Não. Vamos comemorar. — Ele abaixou o tom de voz, como se fosse um segredo. — Arrumei um emprego.
— Mentira! — E então reparei: ele estava radiante. Voltara a ter uma boa postura, o rosto estava marcado pelo sorriso. Parecia anos mais jovem. — Papai, que maravilha.
— Pois é. Sua mãe está nas alturas. E, como você sabe, ela teve uns meses difíceis, com a partida de Treena, os cuidados com seu avô e tudo mais. Por isso quero sair com ela esta noite, fazer um agrado.
— Qual é o trabalho?
— Chefe da manutenção. Lá no castelo.
Pisquei.
— Mas é o lugar...
— Onde o Sr. Traynor trabalha. Isso mesmo. Ele me ligou e disse que estava precisando de uma pessoa e o seu patrão, o Will, tinha dito que eu estava disponível. Estive lá esta tarde, mostrei o que posso fazer e vou ficar um mês em experiência. Começo sábado.
— Você vai trabalhar para o pai de Will?
— Bom, ele disse que o primeiro mês será de experiência, pois preciso atender às exigências e tal, mas falou que não tem dúvidas de que eu irei preencher todas.
— Isso... isso é ótimo — falei. A notícia me deixou um pouco tonta. — Eu nem sabia que tinha uma vaga.
— Nem eu. Mas é maravilhoso. Ele sabe das coisas, Lou. Conversei com ele sobre madeira de carvalho verde e ele me mostrou alguns móveis feitos pelo antigo funcionário. Você não ia acreditar. Foi chocante. Ficou muito impressionado com o meu trabalho.
Papai estava animado como eu não via há meses.
Mamãe apareceu ao lado dele. Tinha passado batom e usava seu melhor par de sapatos de salto alto.
— E ainda tem a van. Seu pai terá sua própria van. E o salário é bom, Lou. Até um pouco maior do que o que ele recebia na fábrica.
Ela o olhava como se ele fosse uma espécie de herói invencível. Quando olhou para mim, percebi que eu devia fazer o mesmo. O rosto de minha mãe podia passar um milhão de recados e aquele dizia que meu pai merecia ter seu grande momento.
— Parabéns, papai. — Dei um abraço nele.
— Bom, você precisa agradecer ao Will. Que grande sujeito. Estou profundamente grato por ele ter se lembrado de mim.

* * *

Pude ouvir quando eles saíram, mamãe se ajeitando no espelho do corredor, papai insistindo que ela estava ótima, linda como nunca. Ouvi-o bater nos bolsos à procura das chaves, carteira, troco, e dar risada. A porta então se fechou, o carro deu a partida e só restou o zunido distante da TV no quarto de vovô. Sentei-me na escada. Peguei o celular e liguei para Will.
Demorou um pouco para que ele atendesse. Imaginei-o mexendo no aparelho e apertando a tecla com o dedo.
— Alô?
— É isso o que você estava tramando?
Fez-se uma breve pausa.
— É você, Clark?
— Você arrumou emprego para o meu pai?
Ele pareceu meio ofegante. Pensei, distraída, se estaria bem acomodado.
— Achei que você ia gostar.
— Gostei. Só que... não sei bem. Estou me sentindo esquisita.
— Não devia. Seu pai precisava de trabalho. O meu precisava de alguém eficiente na manutenção.
— É mesmo? — Não consegui evitar o ceticismo na minha voz.
— Por quê?
— Não tem nenhuma ligação com o que você me perguntou no outro dia? Sobre seu pai e a outra mulher?
Houve uma longa pausa. Eu era capaz de vê-lo, na sala, olhando pelas portas envidraçadas do anexo.
Quando ele conseguiu falar, foi cuidadoso.
— Acha que eu ia chantagear meu pai para conseguir um emprego para o seu?
Posto dessa forma, parecia um despropósito.
Sentei-me outra vez.
— Desculpe. Não sei, só achei estranho. O timing. É tudo meio conveniente.
— Então, alegre-se, Clark. É uma boa notícia. Seu pai vai se sair muito bem. E isso significa... — Ele hesitou.
— Significa o quê?
— ... que um dia você poderá sair de casa e viajar pelo mundo sem se preocupar se seus pais conseguirão se sustentar.
Senti como se ele tivesse me dado um soco. Todo o ar deixou os meus pulmões.
— Lou?
— Sim?
— Você está quieta demais.
— Estou... — Engoli em seco. — Desculpe. Estava distraída. Vovô está me chamando. Mas, obrigada por... recomendá-lo.
Eu tinha de desligar. Porque de repente um enorme nó se formou na minha garganta e eu não sabia se seria capaz de dizer mais alguma coisa.

* * *

Andei até o pub. Havia um perfume de flores no ar e as pessoas na rua sorriam ao passar por mim. Não consegui retribuir a um cumprimento sequer. Mas sabia que não podia ficar em casa, sozinha com meus pensamentos. Achei os Tratores do Triatlo na cervejaria, haviam juntado duas mesas num canto, braços e pernas surgindo em rosadas curvas sinuosas. Recebi alguns acenos educados (nenhum por parte das mulheres) e Patrick se levantou, abrindo um lugarzinho para mim a seu lado. Percebi que eu realmente gostaria que Treena estivesse por ali.
O pub estava cheio com aquela peculiar mistura inglesa de estudantes berrando e vendedores bebendo depois do expediente, com as mangas da camisa arregaçadas.
Aquele era o pub preferido dos turistas e entre as pessoas falando inglês havia uma diversidade de sotaques: italiano, francês, americano. À esquerda, podia-se avistar o castelo e – exatamente como em todos os verões – os turistas fazendo fila para tirar fotos na frente dele.
— Não esperava que você fosse aparecer. Quer uma bebida?
— Daqui a pouco. — Eu só queria ficar um pouco ali sentada, descansar a cabeça no ombro de Patrick. Queria me sentir como sempre: normal, despreocupada. Não queria pensar na morte.
— Quebrei meu recorde de melhor tempo hoje. Vinte e cinco quilômetros em apenas setenta e nove minutos e dois décimos.
— Que legal.
— Chegando lá, hein, Pat? — festejou alguém.
Patrick levantou os dois punhos e fez um ruído de carro acelerando.
— Isso é ótimo. De verdade. — Tentei parecer contente por ele.
Tomei uma cerveja, depois outra. Ouvi conversas a respeito de quilometragem, joelhos ralados e hipotermia no nado. Parei de prestar atenção neles e observei as outras pessoas ali no pub, imaginando como seria a vida delas. Cada uma devia ter fatos importantes na família: bebês desejados e perdidos, grandes segredos, alegrias e tragédias. Se eles podiam deixar tudo isso de lado para curtir uma noite alegre num pub, eu também podia.
Então contei para Patrick do trabalho que papai arrumou. Ele fez uma cara meio parecida com a que eu devia ter feito. Tive de repetir para ele confirmar que tinha ouvido direito.
— É... muito legal. Vocês dois trabalhando para ele.
Tive vontade de contar para ele, tive mesmo. Queria explicar que tudo isso estava ligado à minha batalha para manter Will vivo. E o medo que tinha por achar que Will queria comprar a minha liberdade. Mas sabia que não podia dizer nada. E manter o resto em segredo também, enquanto fosse possível.
— Hum... tem mais uma coisa. Will disse que posso ficar no quarto vazio da casa dele quando precisar. Para acabar com esse problema de onde dormir lá em casa.
Patrick me olhou.
— Vai ficar na casa dele?
— Talvez. É uma ótima proposta, Pat. Você sabe como tem sido lá em casa. E você nunca está aqui. Gosto de ficar no seu apartamento, mas... para ser sincera, não é a minha casa.
Ele continuava me encarando.
— Então transforme em sua casa.
— Como assim?
— Mude-se para lá. Faça do meu apartamento a sua casa. Leve as suas coisas para lá. As suas roupas. Já estava na hora de morarmos juntos.
Só mais tarde, quando pensei sobre o assunto, percebi que ele parecia bem triste ao dizer isso. Não pareceu um cara que finalmente entendeu que não podia viver longe da namorada e decidiu concretizar a feliz união de duas vidas. Ele parecia ter sido derrotado por alguém mais esperto.
— Quer mesmo que eu me mude para lá?
— Quero, claro. — Ele coçou a orelha. — Quer dizer, não estou falando para nós nos casarmos, nem nada. Mas faz sentido você se mudar, não?
— Seu romântico.
— Garanto, Lou, está na hora. Deve estar na hora há tempos, mas vivo enrolado com uma coisa ou outra. Mude-se para lá, vai ser bom. — Ele me deu um abraço. — Vai ser muito bom.
À nossa volta, os Tratores do Triatlo tinham diplomaticamente continuado a conversa. Um grupo de turistas japoneses soltou um pequeno grito de empolgação ao conseguir a foto que queria. Os passarinhos cantavam, o sol se punha no horizonte, o mundo girava. Eu queria participar daquilo tudo, e não ficar enfiada num quarto silencioso, preocupada com um homem numa cadeira de rodas.
— Sim — respondi —, vai ser bom.

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