Não dormi aquela
noite. Fiquei deitada no meu quarto olhando o teto e reconstruindo
cuidadosamente os dois últimos meses com base no que eu agora sabia. Foi
como se tudo tivesse sido modificado, fragmentado e rearrumado de outra
maneira, em um padrão que eu mal reconhecia.
Senti-me enganada, a estúpida
subordinada que não sabia o que estava acontecendo. Senti que eles
deviam ter rido escondido de minhas tentativas de oferecer legumes para
Will comer, ou de cortar seus cabelos – pequenas coisas para fazê-lo se
sentir melhor.
Qual tinha sido o sentido de tudo isso, afinal?
Repassei diversas vezes a conversa
que ouvi, tentando interpretá-la de algum outro jeito, tentando
convencer a mim mesma de que eu havia entendido mal o que eles disseram.
Mas a Dignitas não era exatamente o lugar a que se ia para tirar umas
férias.
Eu não conseguia acreditar que
Camilla Traynor pudesse pensar em fazer aquilo com o filho. Sim, eu a
achava fria, e sim, esquisita perto dele. Era difícil imaginá-la fazendo
carinho em Will, como minha mãe fazia conosco (de maneira firme,
jovial) até nos afastarmos nos retorcendo, pedindo para ela nos soltar.
Para ser sincera, eu achava que era assim que a classe alta lidava com
os filhos. Afinal, eu tinha acabado de ler o livro de Will, Love in a Cold Climate. Mas, ativamente, concordar em colaborar na morte do próprio filho?
Pensando em retrospecto, o
comportamento dela parecia ainda mais frio, suas ações imbuídas de
alguma intenção funesta. Eu estava furiosa com ela, e com Will. Furiosa
com eles por me fazerem acreditar numa fachada. Furiosa por todas as
vezes em que fiquei pensando em como poderia melhorar as coisas para
ele, fazê-lo se sentir confortável ou feliz. Quando não ficava furiosa,
eu ficava triste. Eu podia me lembrar da sutil interrupção na voz dela
ao tentar confortar Georgina, e me senti muito triste por ela.
Ela estava, eu sabia, numa posição insuportável.
Mas, acima de tudo, eu me senti
tomada de horror. Estava assustada com o que agora sabia. Como alguém
pode viver com a consciência de que está apenas deixando os dias
correrem até sua própria morte? Como poderia esse homem, cuja pele, hoje
de manhã, eu tinha sentido sob meus dedos – cálida e viva – querer
simplesmente acabar consigo mesmo? Como poderia ser que, com o
consentimento de todos, dali a seis meses, essa mesma pele estaria se
decompondo embaixo da terra?
Eu não podia contar para ninguém. E
isso era quase o pior de tudo. Eu agora era cúmplice do segredo dos
Traynor. Indisposta e indiferente, liguei para Patrick para avisar que
não estava bem e ia ficar em casa. Tudo certo, ele estava numa corrida
de dez quilômetros, disse. Provavelmente, não teria terminado suas
atividades no clube de atletismo antes das nove da noite. Nós nos
veríamos no sábado. Ele pareceu distraído, como se já estivesse em outro
lugar, mais além, em alguma pista de corrida mítica.
Eu não quis jantar. Fiquei na cama
até meus pensamentos escurecerem e se solidificarem ao ponto de eu não
aguentar mais o peso deles, e, às oito e meia, desci e fiquei sentada
silenciosamente vendo TV, empoleirada ao lado de vovô, que era a única
pessoa na nossa família que com certeza não iria me perguntar nada. Ele
estava sentado em sua poltrona predileta e olhava fixamente para a tela
com intensos olhos vidrados. Eu nunca tinha certeza se ele assistia ao
programa ou se sua mente estava em algo completamente diferente.
— Tem certeza que não quer que eu
faça nada para você, querida? — mamãe apareceu ao meu lado com uma
xícara de chá. Para nossa família, não havia nada que não pudesse ser
resolvido com uma xícara de chá.
— Não. Estou sem fome, obrigada.
Vi a forma como ela olhou para
papai. Eu sabia que, depois, haveria murmúrios secretos sobre como os
Traynor estavam me fazendo trabalhar demais, e como o estresse de cuidar
daquele inválido era muito pesado. Eu sabia que eles se culpariam por
me incentivarem a aceitar o emprego.
Eu precisava deixá-los pensar que tinham razão.
* * *
Paradoxalmente, no dia seguinte Will
estava de bom humor – surpreendentemente falante, cheio de opiniões,
provocador. Ele falou mais do que no dia anterior. Foi como se quisesse
discutir comigo, e se desapontou quando eu não entrei no jogo.
— Quando você vai terminar o trabalho?
Eu estava limpando a sala. Olhei, batendo as almofadas do sofá.
— Que trabalho?
— Meu cabelo. Está pela metade.
Pareço um daqueles órfãos vitorianos. Ou um londrino idiota. — Ele virou
a cabeça para que eu pudesse ver melhor minha obra. — A menos que essa
seja uma de suas demonstrações de estilo alternativo.
— Quer que eu continue a cortar?
— Bom, achei que isso a deixava feliz. E seria ótimo não parecer que vivo num hospício.
Peguei uma toalha e a tesoura em silêncio.
— Nathan está definitivamente mais
feliz agora que pareço um sujeito normal — disse ele. — Embora ele tenha
observado que, agora que minha cara voltou ao que era, eu precisarei
fazer a barba todos os dias.
— Ah — exclamei.
— Você se importa? Nos finais de semana, aguentarei uma barbinha rala.
Eu não conseguia falar com ele.
Achei difícil até mesmo olhá-lo nos olhos. Era como descobrir que seu
namorado foi infiel. Eu me sentia, estranhamente, como se Will tivesse
me traído.
— Clark?
— Hum?
— Você está tendo outro dia enervantemente calado. O que houve com aquela “falação que chegava a ser vagamente irritante”?
— Desculpe-me — falei.
— É o Corredor de novo? O que ele fez agora? Ele não saiu correndo do relacionamento, saiu?
— Não.
Peguei uma macia mecha de cabelos de
Will entre o dedo indicador e o médio e deslizei as lâminas da tesoura
por ela para aparar o que ficara exposto acima deles. Os cabelos ficaram
na minha mão. Como eles fariam? Dariam a ele uma injeção letal? Seria
com um medicamento? Ou será que apenas largavam a pessoa num quarto com
uma porção de navalhas?
— Você parece cansada. Eu não ia dizer quando você chegou, mas, droga, você está com uma cara péssima.
— Ah.
Como eles acabavam com a vida de uma
pessoa incapaz até de mexer braços e pernas? Peguei a mim mesma olhando
para os pulsos de Will, que estavam sempre cobertos por mangas
compridas. Durante semanas, achei que era por que ele sentia mais frio
do que nós. Outra mentira.
— Clark?
— Sim?
Fiquei feliz por estar atrás dele. Não queria que ele visse a minha cara.
Will ficou indeciso. A parte da
nuca, que ficava coberta pelos cabelos, estava ainda mais clara do que o
restante da pele. Parecia macia, branca e estranhamente vulnerável.
— Olhe, me desculpe por minha irmã.
Ela estava... estava muito nervosa, mas isso não lhe dá o direito de ser
agressiva. Às vezes ela é muito direta. Não percebe que tira as pessoas
do sério. — Fez uma pausa. — É por isso que ela gosta de morar na
Austrália, eu acho.
— Você quer dizer que lá as pessoas dizem a verdade umas para as outras?
— O quê?
— Nada. Levante a cabeça, por favor.
Cortei seu cabelo e penteei,
trabalhando metodicamente ao redor de toda a cabeça até que cada fio
estivesse aparado e restasse um ralo montinho de cabelos em volta dos
pés dele.
* * *
No final do dia, tive certeza do que
eu faria. Enquanto Will assistia a TV com o pai, aproveitei para pegar
uma folha de papel A4 na impressora e uma caneta no pote que ficava na
janela da cozinha e escrevi o que queria dizer. Dobrei o papel,
encontrei um envelope e deixei-o sobre a mesa da cozinha, destinado à
mãe dele.
Quando saí, à noite, Will e o pai
conversavam. Na verdade, Will estava rindo. Parei no corredor com a
bolsa pendurada no ombro, escutando. Por que ele ria? O que poderia lhe
provocar alegria, uma vez que faltavam poucas semanas para ele se matar?
— Terminei aqui — gritei porta adentro e comecei a andar.
— Ei, Clark... — Will começou a falar, mas eu já tinha fechado a porta atrás de mim.
Passei a curta viagem de ônibus
tentando pensar no que diria aos meus pais. Eles ficariam furiosos por
eu largar um emprego que viam como perfeitamente adequado e bem pago.
Após o choque inicial, minha mãe pareceria sofrida e me defenderia,
insinuando que tinha sido demais para mim. Meu pai certamente
perguntaria por que eu não era mais parecida com minha irmã. Ele sempre
fazia isso, mesmo que não tenha sido eu a estragar a vida ficando
grávida, nem a depender do restante da família para ter dinheiro e
cuidar do filho. Não era permitido dizer nada assim na nossa casa
porque, segundo minha mãe, era como dizer que Thomas não era uma bênção.
Todos os bebês eram bênçãos de Deus, mesmo aqueles que diziam veado um
pouco demais e cuja presença significava que metade do potencial de
ganhar dinheiro de nossa família não podia de fato sair e arrumar um bom
emprego.
Eu não conseguiria dizer a verdade
para eles. Sabia que não devia nada a Will ou a sua família, mas não ia
impor o olhar curioso da vizinhança sobre eles.
Todos esses pensamentos reviravam na
minha cabeça quando saí do ônibus e desci a colina. E então cheguei na
esquina da nossa rua e escutei o berro, senti a sutil vibração no ar, e
tudo em que pensava foi brevemente esquecido.
Uma pequena multidão tinha se
juntado em volta da nossa casa. Apressei o passo, com medo de que
tivesse acontecido alguma coisa, e vi meus pais no vestíbulo, espiando, e
notei que não era na nossa casa, afinal de contas. Era só a mais
recente de uma longa série de pequenas batalhas que caracterizavam o
casamento de nossos vizinhos.
Que Richard Grisham não era o
mais fiel dos maridos era algo bastante sabido em nossa rua. Mas, a
julgar pela cena no jardim, devia ter sido a esposa dele a descobrir
isso.
— Você deve ter achado que eu era
uma droga de uma idiota. Ela estava com a sua camiseta! Aquela que eu
fiz para o seu aniversário!
— Querida... Dympna... não é o que você está pensando.
— Fui comprar os seus malditos ovos
escoceses! E lá estava ela, usando a sua camiseta! Cheia de si! E eu
nem gosto de ovos escoceses!
Diminuí o passo, abrindo caminho em
meio à pequena multidão até conseguir alcançar nosso portão, vendo
quando Richard se abaixou para evitar ser atingido por um aparelho de
DVD. A seguir, veio um par de sapatos.
— Há quanto tempo eles estão nessa?
Minha mãe, com o avental cuidadosamente amarrado à cintura, descruzou os braços e deu uma olhada no relógio.
— Há uns bons quarenta e cinco minutos. Bernard, você diria que já tem uns bons quarenta e cinco minutos?
— Depende se você contar a partir de quando ela jogou as roupas ou de quando ele voltou e as encontrou.
— Considero quando ele chegou.
Papai avaliou.
— Então faz realmente quase meia hora. Ela ficou um bom tempo jogando coisas pela janela nos primeiros quinze minutos.
— Seu pai disse que, se ela realmente expulsar Richard de casa, vai fazer uma oferta de compra pela Black and Decker dele.
A multidão tinha aumentado e Dympna
Grisham não mostrava sinais de que desistiria. Pelo contrário, parecia
encorajada pelo crescente tamanho de sua audiência.
— Pode dar para ela seus livros imundos — gritou, jogando um maço de revistas pela janela.
Isso promoveu uma pequena salva de palmas na plateia.
— Veja se ela gosta que você fique
metade da tarde de domingo sentado no banheiro com isso, ok? — Ela sumiu
dentro de casa e então reapareceu na janela, esvaziando o conteúdo de
um cesto de roupas sujas em cima do que já estava no gramado. — E suas
imundas cuecas. Vamos ver se ela acha você um... como
era?... supergaranhão, quando estiver lavando essas coisas para você
todos os dias!
Richard recolhia inutilmente
braçadas de suas roupas à medida que aterrissavam na grama. Ele estava
gritando alguma coisa para o alto, na direção da janela, mas, com o
barulho e os apupos, era difícil entender. Como se por ora admitisse a
derrota, ele abriu caminho pela multidão, destrancou o carro, jogou uma
braçada de seus pertences no banco de trás e bateu a porta para
fechá-la. Estranhamente, enquanto sua coleção de CDs e seus videogames
causaram muito interesse, ninguém moveu uma palha pela roupa suja.
Crash. Houve uma pequena agitação quando o aparelho de som encontrou o chão.
Ele olhou para cima, incrédulo.
— Sua vadia maluca!
— Você anda dando amassos naquele monstro vesgo e cheio de doenças que trabalha na garagem e eu é que sou a vadia maluca?
Mamãe virou-se para papai:
— Você gostaria de uma xícara de chá, Bernard? Acho que está ficando um pouco frio.
Meu pai não tirou os olhos da porta da vizinha.
— Seria ótimo, querida. Obrigado.
Foi quando mamãe entrou em casa que
reparei no carro. Foi tão inesperado que a princípio não o reconheci – a
Mercedes azul-marinho da Sra. Traynor, discreta e de suspensão baixa.
Ela abriu a porta, observando a cena na calçada, e hesitou por um
instante antes de sair do carro. Ela ficou parada, encarando as várias
casas, talvez conferindo os números. E então, me viu.
Saí do vestíbulo e percorri o
caminho para carros antes que papai perguntasse aonde eu ia. A Sra.
Traynor permaneceu ao lado da multidão, olhando para o caos como Maria
Antonieta olharia para um bando de camponeses revoltados.
— Briga doméstica — expliquei.
Ela desviou o olhar, como se estivesse quase constrangida por ter sido pega observando a cena.
— Sei.
— Para os padrões deles, é completamente construtivo. Quase uma terapia de casal.
O elegante tailleur de lã que ela
usava, as pérolas e o cabelo de aparência chique bastavam para
destacá-la na nossa rua, no meio das calças de moletom e dos tecidos
baratos e de cores berrantes das lojas de departamento. Ela tinha uma
aparência rígida, pior do que a daquela manhã em que chegou em casa e me
encontrou dormindo no quarto de Will. Registrei em alguma parte
distante da minha mente que eu não sentiria falta de Camilla Traynor.
— Estava pensando se você e eu
poderíamos ter uma conversinha. — Ela precisou erguer a voz para se
fazer ouvir acima da agitação.
A Sra. Grisham agora jogava pela
janela os vinhos finos do marido. Cada garrafa que explodia no chão era
saudada com gritos de deleite e mais um sincero acesso de raiva e apelos
do Sr. Grisham. Um rio de vinho tinto escorria por entre os pés da
multidão, para dentro do bueiro.
Lancei um olhar para aquela
confusão, e depois virei para trás, para a nossa casa. Não conseguia
pensar em levar a Sra. Traynor para a nossa sala da frente, com aquela
confusão de trens de brinquedo, o vovô roncando silenciosamente diante
da TV, mamãe borrifando essências para disfarçar o cheiro das meias de
papai e Thomas aparecendo para murmurar veado para as visitas.
— Hum... não é uma boa hora.
— Talvez possamos conversar no meu carro? Olhe, só cinco minutos, Louisa. Certamente tem esse tempo a nos oferecer.
Alguns vizinhos olharam na minha
direção quando entrei no carro. Tive sorte de os Grisham serem a grande
novidade do dia, caso contrário, o tópico das conversas teria sido eu.
Na nossa rua, se você entra num carro de luxo significa que conquistou
um jogador de futebol ou está sendo preso por policiais à paisana.
As portas do carro se fecharam com
um baque surdo e pesado e, de repente, fez-se silêncio. O carro tinha
cheiro de couro e não havia nada em seu interior além de mim e da Sra.
Traynor. Sem papel de bala, lama, brinquedos perdidos ou coisas
perfumadas penduradas para disfarçar o cheiro da embalagem de leite que
tinha se derramado lá dentro três meses antes.
— Pensei que você e Will se dessem
bem. — Ela falou como se estivesse se dirigindo a alguém bem à sua
frente. Quando eu não disse nada, ela perguntou: — É problema de
dinheiro?
— Não.
— Precisa de um intervalo de almoço maior? Sei que é um pouco curto. Posso perguntar a Nathan se ele...
— Não é por causa do horário. Nem do dinheiro.
— Então...
— Eu realmente não quero...
— Olhe, você não pode pedir demissão sem aviso prévio e esperar que eu nem ao menos pergunte o que aconteceu.
Respirei fundo.
— Ouvi a senhora. A senhora e sua filha. Na noite passada. E não quero... Não quero participar disso.
— Ah.
Ficamos em silêncio. O Sr. Grisham
agora tentava derrubar a porta da frente para entrar e a Sra. Grisham
estava ocupada em arremessar pela janela e em direção à cabeça dele
qualquer coisa que localizasse. A escolha dos projéteis (rolo de papel
higiênico, caixas de absorvente, escova de vaso, frascos de xampu)
sugeria que ela estava no banheiro.
— Por favor, não vá embora — disse a
Sra. Traynor, em voz baixa. — Will está à vontade com você. Mais do que
tem estado em muito tempo. Eu... seria muito difícil nós conseguirmos
isso com outra pessoa.
— Mas vocês... vocês vão levá-lo para aquele lugar onde as pessoas se matam. Dignitas.
— Não. Vou fazer tudo o que puder para garantir que ele não faça isso.
— Como o quê? Rezar?
Ela me deu o que minha mãe teria chamado de um “olhar desaprovador”.
— Você já deve ter percebido que, se
Will decide se tornar inalcançável, há muito pouco que qualquer pessoa
possa fazer em relação a isso.
— Já entendi tudo isso — falei. —
Estou lá apenas para garantir que ele não trapaceie e se mate antes que
os seis meses cheguem ao fim. É isso, não é?
— Não. Não é isso.
— É por isso que a senhora não ligou para minhas qualificações para o trabalho.
— Achei você inteligente, alegre e
diferente. Você não parecia uma enfermeira. Não se comportava... como
nenhuma das outras. Pensei... pensei que pudesse animá-lo. E anima...
você realmente o anima, Louisa. Vê-lo sem aquela barba horrorosa
ontem... você parece ser uma das poucas pessoas que consegue chegar até
ele.
Roupas de cama saíram pela janela.
Caíram emboladas, os lençóis se abriram rápida e graciosamente antes de
atingirem o chão. Duas crianças pegaram um e correram pelo jardim com
ele na cabeça.
— Não acha que teria sido justo dizer que eu seria, na prática, a vigia de um suicida?
O suspiro que Camilla Traynor deu
soou como o de alguém obrigado a explicar algo educadamente para uma
imbecil. Fiquei pensando se ela tinha consciência de que tudo o que
falava fazia os outros parecerem idiotas. Pensei que aquilo era uma
coisa que ela havia cultivado realmente de maneira deliberada. Acho que
eu jamais conseguiria fazer alguém se sentir inferior.
— Podia ser assim na época em que
nós nos conhecemos... mas tenho certeza que Will vai manter sua palavra.
Ele me prometeu seis meses, e será isso o que terei. Precisamos desse
tempo, Louisa. Precisamos desse tempo para que ele saiba que existe
uma possibilidade. Eu esperava que isso plantasse nele a ideia de que
existe uma vida que ele pode aproveitar, mesmo que não seja a vida que
ele havia planejado.
— Mas é tudo mentira. A senhora mentiu para mim e todos na sua família estão mentindo uns para os outros.
Ela não parecia me ouvir. Virou-se para me olhar, puxando um talão de cheques da bolsa, a caneta já na mão.
— Escute, o que você quer? Dobro o seu salário. Diga-me quanto quer.
— Não quero o seu dinheiro.
— Um carro. Alguns benefícios. Bônus...
— Não...
— Então... o que posso fazer para que você mude de ideia?
— Sinto muito. Eu apenas não...
Fiz menção de sair do carro. Sua mão disparou. E ficou ali, no meu braço, estranha e radioativa. Nós duas olhamos para a mão.
— Você assinou um contrato, Srta.
Clark — disse ela. — Você assinou um contrato em que prometeu trabalhar
conosco por seis meses. Pelos meus cálculos, cumpriu apenas dois. Só
estou solicitando que cumpra suas obrigações contratuais.
Sua voz tinha se tornado áspera. Olhei para baixo, para a mão dela, e vi que tremia.
Ela engoliu em seco.
— Por favor.
Meus pais estavam olhando da
varanda. Eu podia vê-los, canecas de chá equilibradas em suas mãos, as
únicas pessoas que não acompanhavam a cena na porta ao lado.
Viraram-se, desajeitados, quando
perceberam que eu os havia notado. Papai, eu reparei, usava os chinelos
xadrez manchados de tinta.
Abri a porta do carro.
— Sra. Traynor, eu realmente não posso simplesmente me sentar e assistir... é muito estranho. Não quero fazer parte disso.
— Apenas pense a respeito. Amanhã é
Sexta-feira Santa; direi a Will que você tem um compromisso familiar, se
precisa mesmo de tempo. Aproveite o fim de semana prolongado para
pensar. Mas, por favor. Volte. Volte e ajude-o.
Entrei em casa sem olhar para trás.
Sentei-me na sala de estar, olhando para a TV enquanto meus pais me
seguiam, trocando olhares e fingindo que não estavam me examinando.
Passaram-se quase onze minutos até que eu finalmente ouvi o motor do carro da Sra. Traynor ser ligado e sair.
* * *
Nem cinco minutos depois de chegar
em casa, minha irmã veio me confrontar, pisando duro na escada e
escancarando a porta do meu quarto.
— Sim, pode entrar — falei, deitada na cama, com as pernas apoiadas na parede, olhando o teto.
Eu estava vestindo meia-calça e short com lantejoulas azuis, que se embolava sem qualquer charme nas minhas coxas.
Katrina ficou à porta.
— É verdade?
— Que Dympna Grisham finalmente expulsou aquele marido traidor, imprestável, mulherengo e...
— Não banque a espertinha. Sobre o seu trabalho.
Percorri com o dedão do pé o desenho do papel de parede.
— Sim, entreguei a carta de
demissão. Sim, eu sei que mamãe e papai não estão felizes com isso. Sim,
sim, sim para qualquer coisa que você deseje jogar em cima de mim.
Ela fechou a porta com cuidado atrás de si, então se sentou pesadamente na ponta da cama e praguejou vigorosamente:
— Não acredito nisso.
Empurrou minhas pernas pela parede até que eu escorregasse, de modo que elas quase caíram sobre a cama.
Eu me endireitei.
— Ai.
Seu rosto estava afogueado.
— Não acredito. Mamãe está lá em
baixo devastada. Papai finge que não, mas também está. Como eles vão se
virar com o dinheiro? Você sabe que papai já está entrando em pânico com
o emprego. Por que jogar fora um trabalho perfeitamente ótimo?
— Não venha me repreender, Treen.
— Bom, alguém tem que fazer isso! Você não vai conseguir um salário como esse em lugar nenhum. E como vai ficar o seu currículo?
— Ah, não finja que isso é sobre qualquer outra coisa que não seja você e seus interesses.
— O quê?
— Você não liga para o que eu faço,
desde que possa ir lá e ressuscitar a sua carreira promissora. Você só
precisa que eu seja o arrimo da família e pague a bendita creche. O
resto que se dane.
Sei que fui mesquinha e vil, mas não
pude evitar. Afinal, foi a situação da minha irmã que nos levou àquela
confusão. Anos de ressentimento começaram a vir à tona.
— Todos nós temos de aguentar empregos que odiamos para que a pequena Katrina possa realizar suas malditas ambições.
— Isso não tem nada a ver comigo.
— Não?
— Não, tem a ver com você sair do único emprego decente que alguém lhe ofereceu em anos.
— Você não sabe nada sobre o meu emprego, está bem?
— Sei que paga muito mais que o salário mínimo. E é só o que preciso saber sobre o seu emprego.
— Nem tudo na vida gira em torno de dinheiro, sabia?!
— Ah, é? Então desça e diga isso para mamãe e papai.
— Não ouse me dar um sermão sobre dinheiro quando há anos não contribui com um tostão nesta casa.
— Você sabe que não posso contribuir com muito por causa de Thomas.
Comecei a empurrar minha irmã porta
afora. Não me lembro da última vez em que encostei a mão nela, mas agora
tudo o que eu queria era bater em alguém e não sabia do que seria capaz
se ela continuasse na minha frente.
— Apenas dê o fora, Treen. Certo? Apenas dê o fora e me deixe sozinha.
Bati a porta na cara dela. E
quando finalmente ouvi-a descer devagar a escada, preferi não pensar no
que ela poderia dizer aos meus pais, em como todos poderiam considerar
essa como mais uma prova da minha catastrófica incapacidade de fazer
algo útil. Preferi não pensar em Syed no Centro de Trabalho e em como eu
poderia explicar meus motivos para largar o mais bem pago emprego
doméstico. Preferi não pensar na fábrica de frangos e em como, em algum
lugar, bem lá no fundo, provavelmente havia um conjunto de avental
plástico e touca higiênica com meu nome escrito.
Deitei-me na cama e pensei em Will.
Pensei em sua raiva e em sua tristeza. Pensei no que a mãe dele tinha
dito: que eu era uma das únicas pessoas que conseguiu alcançá-lo. Pensei
nele se esforçando para não rir com a Canção Molahonkey numa noite em
que a neve caía dourada do outro lado da janela. Pensei na pele cálida e
nas mãos e nos cabelos macios de alguém vivo, de alguém bem mais
inteligente e engraçado do que eu jamais poderia ser e que, apesar
disso, não via nada melhor no futuro do que se matar. E enfim, com a
cabeça pressionada contra o travesseiro, chorei porque minha vida de
repente pareceu muito mais difícil de entender e muito mais complicada
do que jamais havia imaginado, e desejei poder voltar até os dias em que
minha maior preocupação era se Frank e eu tínhamos encomendado bolinhos
Chelsea suficientes.
Alguém bateu à porta.
Assoei o nariz.
— Dê o fora, Katrina.
— Desculpe.
Encarei a porta.
A voz dela estava abafada como se a boca estivesse encostada no buraco da fechadura.
— Trouxe vinho. Escute, deixe eu
entrar, pelo amor de Deus, ou a mamãe vai me ouvir. Tenho duas canecas
de Bob, o Construtor, escondidas na minha saia, e você sabe como ela
fica quando bebemos aqui em cima.
Saí da cama e abri a porta.
Ela olhou meu rosto manchado de lágrimas e fechou rápido a porta atrás de si.
— Certo — disse, abrindo a garrafa e servindo uma caneca de vinho — o que realmente aconteceu?
Olhei firme para minha irmã.
— Você não pode contar a ninguém o que eu vou lhe dizer. Nem ao papai. E, principalmente, à mamãe.
Então, contei tudo.
Tinha de contar para alguém.
* * *
Eu não gostava de muitas coisas em
relação à minha irmã. Há alguns anos, poderia apresentar listas inteiras
que eu escrevera discorrendo sobre cada um dos tópicos. Eu a detestava
pelo fato de ter cabelos grossos e lisos enquanto o meu ficava
quebradiço se crescesse além dos ombros. Eu a detestava porque nunca
podia contar uma coisa que ela já não soubesse. Eu odiava o fato de meus
professores, durante toda a minha vida escolar, fazerem questão de me
dizer, em voz baixa, como ela era inteligente, como se seu brilho não
significasse que, por definição, eu tinha de viver sempre na sombra. Eu a
detestava porque, aos vinte e seis anos, eu precisava ocupar um
quartinho numa casa geminada só para ela poder ficar com seu filho
bastardo no quarto maior. Mas, de vez em quando, eu realmente gostava
muito que ela fosse minha irmã.
Pois Katrina não gritou de horror.
Não pareceu chocada ou insistiu para que eu avisasse a mamãe e papai. E
não disse sequer uma vez que foi um erro eu pedir demissão.
Deu uma grande golada na bebida e exclamou:
— Meu Deus.
— Exatamente.
— É legal, de qualquer jeito. Eles não podem impedir o filho de se matar.
— Eu sei.
— Merda. Não consigo nem pensar nisso.
Nós esvaziamos dois copos só enquanto eu contava o caso, e eu podia sentir o calor subindo por minhas bochechas.
— Detesto pensar em deixá-lo. Mas não posso participar disso, Treen. Não posso.
— Hum.
Treen estava pensando. Minha irmã
realmente tem uma “cara pensante”. Faz as pessoas pararem antes de
dizerem alguma coisa para ela. Papai diz que minha “cara pensante” dá a
impressão de que eu quero ir ao banheiro.
— Não sei o que fazer — confessei.
Ela me olhou, o rosto subitamente iluminado.
— É simples.
— Simples.
Serviu mais um copo para cada uma de nós.
— Opa. Pelo jeito, já terminamos com essa garrafa. Sim. O que você precisa fazer é simples. Eles têm dinheiro, não é?
— Não quero o dinheiro deles. Ela me ofereceu um aumento. Não é isso.
— Cale a boca. Não é para você, sua
idiota. Eles vão ficar com o dinheiro deles. E Will provavelmente
recebeu uma boa quantia de seguro por causa do acidente. Bom, diga a
eles que você quer uma verba e então você usa ao longo dos... quantos
eram?... quatro meses que ainda tem. E você vai fazer Will Traynor mudar
de ideia.
— O quê?
— Fazê-lo mudar de ideia. Você disse
que ele passa quase todo o tempo em casa, certo? Bom, comece com algo
pequeno, então, uma vez que você tenha feito ele sair de casa de novo,
pense nas coisas incríveis que poderia fazer por ele, tudo que pudesse
fazê-lo querer viver: aventuras, viagens ao exterior, nadar ao lado de
golfinhos, o que quer que seja, e então você coloca isso em prática.
Posso ajudá-la. Vou pesquisar coisas na internet. Aposto que podemos
arrumar programas ótimos para vocês fazerem. Que o deixariam realmente
feliz.
Eu a encarei.
— Katrina...
— É. Pode dizer. Eu sei. — Ela fez uma careta quando sorriu. — Eu sou um gênio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário