sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Capítulo 15 - Como eu era antes de você

— Então, vamos lá, Clark. Que programas animados você planejou para esta noite?
Estávamos no jardim. Nathan fazia fisioterapia em Will, levantando as pernas dele até o peito e abaixando-as enquanto Will estava deitado em um cobertor, seu rosto voltado para o sol, seus braços estendidos, como se estivesse tomando banho de sol. Eu me sentei no gramado perto deles e comi meus sanduíches. Agora, eu raramente saía para almoçar.
— Por quê?
— Curiosidade. Quero saber como passa seu tempo quando não está aqui.
— Bom... esta noite participarei de uma pequena luta de artes marciais avançadas, depois vou de helicóptero jantar em Monte Carlo. E então, no caminho de volta para casa, talvez tome um drinque em Cannes. Se você olhar para cima às... aah... lá pelas duas da manhã, acenarei para você quando passar — respondi. Abri o meu sanduíche e olhei o recheio. — Acho que vou terminar de ler meu livro.
Will deu uma olhada para Nathan.
— Dez pratas — disse ele, sorrindo.
Nathan enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro e falou:
— Sempre assim.
Olhei para os dois e perguntei:
— Sempre assim o quê?
Nathan pôs o dinheiro na mão de Will.
— Ele disse que você ia ler um livro, eu disse que ia ver TV. Ele sempre ganha a aposta.
O sanduíche grudou nos meus lábios.
— Sempre? Vocês têm apostado quão chata é a minha vida?
— Não usamos essa palavra — respondeu Will. O olhar levemente culpado me fez pensar em outra coisa.
Empertiguei-me.
— Deixe-me ver se entendi. Vocês estão apostando dinheiro se numa noite de sexta-feira eu vou estar em casa para ler um livro ou ver TV?
— Não — respondeu Will. — Teve uma rodada em que apostei que você iria ver o Corredor na pista.
Nathan soltou a perna de Will. Pegou o braço, esticou-o e começou a massageá-lo a partir do pulso.
— E se eu dissesse que ia fazer uma coisa totalmente diferente?
— Mas você nunca faz — disse Nathan.
— Na verdade, vou ficar com o dinheiro — falei, tirando a nota de dez da mão de Will. — Porque esta noite vocês erraram.
— Você disse que ia ler! — protestou Will.
— Agora que tenho isto — continuei, mostrando a cédula de dez libras — vou ao cinema. Pronto. Pode acionar o Juizado de Pequenas Causas ou seja lá como se chame.
Levantei, guardei o dinheiro no bolso e joguei o resto do meu almoço no saco de papel pardo. Sorri ao me afastar deles mas, estranhamente, e sem qualquer razão aparente, meus olhos se encheram de lágrimas.
Naquela manhã, fiquei uma hora trabalhando no calendário antes de ir para a Granta House. Em alguns dias, eu apenas me sentava na cama e, de lá, olhava o calendário, a caneta na mão, pensando para onde eu poderia levar Will. Ainda não estava convencida de que poderia levá-lo para muito mais longe e, mesmo com a ajuda de Nathan, pensar em passar a noite em algum lugar parecia uma ideia assustadora.
Olhei o jornal da cidade, à procura de jogos de futebol e festas regionais, mas, após o fracasso das corridas, tive medo de que a cadeira de Will atolasse na grama. E ficava preocupada que multidões o fizessem se sentir exposto. Tinha de excluir todos os eventos relacionados com cavalos, o que, na nossa região, significava uma quantidade surpreendente de atividades ao ar livre. Sabia que Will não gostaria de ir ver Patrick numa corrida e que detestava críquete e rúgbi. Às vezes, eu ficava pasma com minha incapacidade de pensar novas coisas.
Talvez Will e Nathan tivessem razão. Talvez eu fosse chata. Talvez eu fosse a pessoa menos capacitada do mundo para inventar coisas que pudessem instigar a vontade de viver em Will.
Um livro, ou a televisão.
Posto assim, era difícil concluir outra coisa a meu respeito.

* * *

Depois que Nathan saiu, Will foi me encontrar na cozinha. Eu estava sentada à mesinha, descascando batatas para o jantar, e não olhei para ele quando chegou e posicionou a cadeira no vão da porta. Examinou-me por tempo suficiente para que minhas orelhas ficassem vermelhas com o escrutínio.
— Sabe — falei, finalmente. — Eu poderia ter sido malvada com você. — Poderia ter dito que você também não faz nada.
— Não sei se Nathan teria apostado que eu iria sair para dançar — disse Will.
— Eu sei que é brincadeira — prossegui, descartando uma comprida tira de casca de batata. — Mas vocês fizeram com que eu me sentisse muito mal mesmo. Se vocês vão fazer apostas com a minha vida sem graça, precisam me avisar? Não poderiam fazer disso uma espécie de piada particular?
Ele não disse nada por um tempo. Quando, finalmente, olhei para ele, estava me observando.
— Desculpe — disse.
— Você não me parece arrependido.
— Bom... está bem... talvez eu quisesse que você escutasse isso. Talvez eu quisesse mostrar o que você está fazendo da sua vida.
— Acha que estou desperdiçando minha vida...?
— Acho, na verdade.
— Meu Deus, Will. Eu gostaria que você parasse de me dizer o que eu devo fazer. E daí se eu gosto de ver televisão? E daí se eu não quero muito mais que ler um livro? — Minha voz tinha ficado esganiçada. — E daí se estou cansada quando chego em casa? E daí se não preciso preencher meus dias com atividades frenéticas?
— Mas um dia pode se arrepender — disse ele, em voz baixa. — Sabe o que eu faria, se fosse você?
Larguei o descascador.
— Acho que você vai me dizer.
— É. E fico bastante constrangido de dizer isso a você. Eu faria um curso noturno. De costureira ou estilista de moda, ou seja lá o que for esses remendos de que você realmente gosta. — Fez um gesto em direção ao meu minivestido, inspirado no estilo Pucci dos anos 1960, feito com o tecido que, uma vez, tinha sido uma das cortinas do meu avô.
A primeira vez que papai viu, ele apontou para mim e gritou:
— Ei, Lou, controle-se! — E levou cinco minutos para parar de rir.
— Eu procuraria o que pudesse fazer e que fosse mais barato: aulas de ginástica, natação, voluntariado, qualquer coisa. Daria aulas de música, ou passearia com o cachorro de alguém, ou... — sugeriu Will.
— Certo, certo entendi o recado — falei, irritada. — Mas não sou você, Will.
— Sorte sua.
Ficamos ali por um tempo. Will entrou na cozinha e levantou o assento da cadeira de maneira a nos vermos por cima da mesa.
— Certo — falei. — Então, o que você fazia depois do trabalho? Era algo tão precioso assim?
— Bom, não me sobrava muito tempo depois do trabalho, mas eu tentava fazer alguma coisa todos os dias. Praticava escalada indoor em um centro esportivo, jogava squash, ia a concertos, experimentava restaurantes novos...
— Tudo isso é fácil com dinheiro — reclamei.
— E eu corria. É verdade — disse, e levantei uma sobrancelha. — Tentava aprender a língua de lugares que eu poderia visitar um dia. E encontrava meus amigos... ou quem eu achava que eram meus amigos... — Ele hesitou por um instante. — E planejava viagens. Procurava por lugares em que eu nunca tinha estado, coisas que me assustassem ou me levassem ao limite. Uma vez, atravessei o Canal da Mancha a nado. Pratiquei parapente. Subi montanhas e as desci esquiando. É — falou, quando fiz menção de interromper. — Sei que muitas dessas coisas exigem dinheiro, mas muitas outras, não. Além do mais, como você acha que eu ganhava dinheiro?
— Explorando as pessoas na City?
— Eu fazia o que me faria feliz e o que eu queria fazer; me preparei para trabalhar no que me permitisse fazer as duas coisas.
— Você faz isso parecer tão simples.
— E é — disse ele. — O problema é que ainda assim é muito trabalho. E ninguém quer trabalhar muito.
Terminei com as batatas. Joguei as cascas no lixo e coloquei a panela no fogão, pronta para mais tarde. Virei-me e, apoiando os braços na mesa, sentei-me ali, com as pernas balançando.
— Você teve uma boa vida, não?
— É, tive. — Ele chegou um pouco mais perto e elevou o assento até quase ficar na altura dos meus olhos. — Por isso é que você me irrita, Clark. Vejo todo esse talento, toda essa... — Ele deu de ombros. — Essa energia e inteligência e...
— Não diga potencial...
— ... potencial. Sim. Potencial. Não consigo entender como se contenta com essa vidinha. Essa vidinha que será passada quase toda num raio de quinze quilômetros, sem ninguém que a surpreenda, incentive ou mostre coisas que façam sua cabeça girar e você perder o sono à noite.
— É uma forma de dizer que eu deveria estar fazendo coisas melhores do que descascar batatas para você.
— Estou avisando que existe um mundo inteiro lá fora. Mas eu gostaria muito que, antes de conhecer esse mundo, você fizesse umas batatas para mim. — Ele me lançou um sorriso e não pude evitar retribuir.
— Você não acha... — comecei a dizer, mas desisti.
— Continue.
— Não acha que é mais difícil para você... se adaptar, digamos assim... Porque você fez todas essas coisas?
— Está perguntando se eu preferia não ter feito nada?
— Estava pensando se não seria mais fácil para você. Se tivesse tido uma vida menos rica antes. Viver assim, como você vive agora, quero dizer.
— Jamais me arrependerei do que fiz. Porque, quase sempre, se você está enfiado numa cadeira assim, só pode ir aos lugares da lembrança. — Sorriu. Um sorriso duro, como se lhe custasse. — Então, se você está me perguntando se prefiro me lembrar da vista que se tem do castelo quando se está no minimercado, ou daquela linda fileira de lojas por ali, então, não. Minha vida foi ótima. Obrigado.
Desci da mesa. Não tinha muita certeza, mas me senti mais uma vez como uma pessoa colocada contra a parede. Peguei a tábua de cortar no escorredor.
— E Lou, me desculpe. Sobre aquela história da aposta.
— Tudo bem. — Virei-me e comecei a enxaguar a tábua. — Mas não pense que isso vai lhe trazer de volta aquelas dez libras.

* * *

Dois dias depois, Will teve uma infecção e acabou no hospital. Era uma medida de precaução, foi o que eles disseram, mas era óbvio para todos que ele sentia muita dor.
Alguns tetraplégicos não têm sensibilidade física, mas, apesar de não sentir calor ou frio, do peito para baixo ele podia sentir dor e o toque. Fui visitá-lo duas vezes, levando músicas e coisas gostosas para comer, me ofereci para fazer companhia mas, particularmente, senti como se eu estivesse atrapalhando, e logo percebi que ele não queria mais atenção. Disse para eu ir para casa e aproveitar o tempo que teria para mim mesma.
Um ano antes, eu teria aproveitado mesmo, percorreria as lojas, talvez até fosse almoçar com Patrick. Eu provavelmente teria visto um pouco de TV à tarde e faria uma vaga tentativa de arrumar minhas roupas. Teria dormido à beça.
Agora, no entanto, eu estava estranhamente agitada e perturbada. Sentia falta de um motivo para me levantar cedo, de um propósito para o dia.
Levei a metade de uma manhã para concluir que esse tempo poderia ser útil. Fui à biblioteca e comecei a pesquisar. Olhei todos os sites sobre tetraplégicos que pude encontrar e descobri coisas que poderíamos fazer quando Will estivesse melhor. Fiz listas e acrescentei o equipamento ou as coisas que seriam necessárias para cada programa.
Encontrei salas de bate-papo para portadores de lesão na coluna e descobri que havia centenas de pessoas iguais a ele lá fora – vivendo vidas escondidas em Londres, Sydney, Vancouver ou até ali naquela rua – ajudadas por amigos ou familiares e, às vezes, sozinhos, o que era de cortar o coração.
Eu não era a única cuidadora interessada naqueles sites. Havia namoradas perguntando como ajudar seus parceiros a terem confiança para sair de casa de novo, maridos querendo saber opiniões sobre os equipamentos médicos mais novos. Tinha anúncios de cadeiras de roda que podiam enfrentar areia ou terra; içadores inteligentes e acessórios infláveis para banho.
As pessoas usavam muitas siglas nos bate-papos. Descobri que LME era lesão na medula espinhal; ITU, infecção do trato urinário; FS, forte e saudável. Vi também que uma lesão em C4 e C5 era bem mais grave do que em C11 e C12, pois muitos dos lesionados nessa última localização usavam os braços ou o torso. Havia história de amor e perda, de homens lutando para lidar com esposas deficientes físicas e também com filhos pequenos. Havia esposas que se sentiam culpadas por terem rezado para que o marido parasse de espancá-la; agora ele nunca mais faria isso. Havia maridos que queriam se separar da esposa deficiente, mas tinham medo de como a comunidade reagiria. Havia exaustão e desespero e muito humor negro – piadas sobre bolsas de coleta que explodiam; atitudes bem-intencionadas, mas burras; desventuras de bêbados. Cair da cadeira parecia um tema corriqueiro. E havia ameaças de suicídio: os que queriam se matar; outros que os encorajavam a esperar, a aprender a olhar a vida de outra maneira. Li cada uma delas e me senti como se estivesse olhando para um panorama secreto de como o cérebro de Will funcionava.
No almoço, saí da biblioteca e fui andar pela cidade para desanuviar a cabeça. Dei-me o luxo de um sanduíche de camarão e sentei-me no muro, observando os cisnes no lago abaixo do castelo. Estava quente o suficiente para que eu tirasse o casaco, e voltei meu rosto na direção do sol. Havia um curioso sossego em olhar o restante do mundo cuidar de suas vidas. Depois de passar a manhã inteira enfiada no mundo dos paralíticos, só o fato de poder andar e comer meu sanduíche ao sol já me dava uma sensação de liberdade.
Quando terminei, voltei para a biblioteca e solicitei o computador que estava usando.
Tomei fôlego e digitei uma mensagem.

Olá, sou amiga e cuidadora de um tetraplégico de trinta e cinco anos, com lesão em C4 e C5. Ele era muito bem-sucedido e dinâmico em sua vida anterior e está tendo dificuldades para se adaptar à nova realidade. Na verdade, sei que ele não quer mais viver e estou tentando pensar em maneiras de fazê-lo mudar de ideia. Alguém pode, por favor, me dizer como posso fazer isso? Alguma ideia de coisas de que ele possa gostar, ou meios de eu conseguir fazer com que ele pense de maneira diferente? Todas as opiniões são bem-vindas.

Assinei Abelha Atarefada. Então, recostei-me na cadeira, mordisquei um pouco meu dedão e finalmente apertei “Enviar”.

* * *

Na manhã seguinte, quando me sentei no terminal, havia quatorze respostas. Entrei no bate-papo e fiquei surpresa com a lista de nomes. Pessoas do mundo inteiro haviam respondido dia e noite. O primeiro dizia:

Cara Abelha Atarefada
Seja bem-vinda. Tenho certeza que seu amigo terá muito consolo por ter alguém cuidando dele.

Eu não estou muito certa disso, pensei.

Quase todos nós enfrentamos um obstáculo definitivo na vida. Talvez o seu amigo tenha chegado ao obstáculo dele. Não deixe que ele afaste você. Mantenha-se positiva. E lembre-o de que não compete a ele decidir quando chegamos e saímos desse mundo, mas ao Senhor. Com Sua Sabedoria, Ele resolveu mudar a vida do seu amigo, o que pode ser uma mostra de que Ele...

Passei para a mensagem seguinte.

Cara Abelha,
Não tem jeito, ser tetra pode ser um saco. Se o seu amigo ainda por cima gostava de esportes, vai achar mais duro ainda. Eis as coisas que me ajudaram: muita companhia, mesmo quando eu não estava querendo. Boa comida. Bons médicos. Bons remédios, antidepressivos, quando necessário. Você não disse onde vocês estão, mas se conseguir que ele converse com outras pessoas na comunidade de LME, isso pode ajudar. No começo, eu era muito relutante (acho que uma parte minha não queria admitir que eu era um tetra), mas ajuda saber que não se está só. Ah, e NÃO DEIXE que ele assista a nenhum filme como O escafandro e a borboleta. Mó deprê!
Dê notícias.
Sinceramente,
Ritchie

Pesquisei por O escafandro e a borboleta. “A história de um homem que fica paralisado devido a um derrame e suas tentativas de se comunicar com o mundo externo”, dizia o resumo do filme. Anotei o título no meu bloco, sem saber se eu estava fazendo aquilo para garantir que Will não o assistiria ou para me lembrar de ver depois.
As outras duas mensagens eram de um Adventista do Sétimo Dia e de um homem que sugeria coisas para levantar o ânimo de Will que certamente não estavam no meu contrato de trabalho. Enrubesci e passei rápido para outra mensagem, com medo de que alguém desse uma olhada na tela por trás de mim. E então eu fiquei indecisa quanto à próxima mensagem.

Olá Abelha Atarefada,
Por que acha que o seu amigo/paciente/o que for precisa mudar de ideia? Se eu conseguisse um jeito de morrer com dignidade e se eu soubesse que isso não devastaria minha família, eu me mataria. Estou confinado a esta cadeira há oito anos e minha vida consiste numa série de humilhações e frustrações. Você consegue mesmo se colocar no lugar dele? Sabe o que é não conseguir nem evacuar sem ajuda? Saber que ficará de cama para sempre; sem poder comer, se vestir ou se comunicar com o mundo exterior sem que alguém o ajude? Nunca mais transar? Encarar a possibilidade de ter escaras, adoecer e até precisar de respiradores? Você parece uma pessoa ótima, e tenho certeza que tem boas intenções. Mas talvez você não cuide dele na semana que vem. Talvez no futuro seja alguém que o deixe deprimido, ou até que não goste muito dele. Isso, como todas as outras coisas, está fora do controle dele. Nós, portadores de LME, sabemos que muito pouco está sob nosso controle – quem nos alimenta, quem nos veste, quem nos lava, quem prescreve nosso remédio. Viver consciente disso é muito duro.
Por isso, acho que você está fazendo a pergunta errada. Quem são os fortes e sadios para decidir como deve ser a nossa vida? Se essa não é a vida certa para o seu amigo, a questão deveria ser: como posso ajudá-lo a acabar com isso?
Sinceramente,
Gforce, Missouri, Estados Unidos

Fiquei olhando para a mensagem, meus dedos parados sobre o teclado. Depois, passei para as mensagens restantes. Eram de outros tetraplégicos criticando as palavras desanimadoras de Gforce, afirmando que eles conseguiram um jeito de seguir em frente, que a vida deles valia a pena. Houve uma pequena discussão que parecia não ter nada a ver com Will.
A seguir, voltaram a comentar o meu pedido. Havia sugestões de antidepressivos, massagens, recuperações miraculosas, histórias de como a vida dos próprios membros da comunidade passou a ter um novo valor. Havia algumas sugestões práticas: degustação de vinho, música, exposições de arte, teclados de computador especialmente adaptados.
“Sugiro uma companheira”, escreveu Grace31, de Birmigham. “Se ele amar, sentirá que pode seguir em frente. Sem amor, eu já teria afundado várias vezes.”
Essa frase ecoou na minha cabeça até bem depois de eu sair da biblioteca.

* * *

Will saiu do hospital na quinta-feira. Fui buscá-lo com o carro adaptado e trouxe-o para casa. Estava pálido e exausto; ficou olhando distraidamente pela janela durante todo o trajeto.
— Não dá para dormir nesses lugares — explicou, quando perguntei se estava bem. — Tem sempre alguém gemendo na cama ao lado.
Eu disse que ele teria o fim de semana para se recuperar, mas que depois eu tinha planejado vários passeios. Disse também que estava seguindo o conselho dele e tentando fazer coisas novas e ele teria de me acompanhar. Era uma mudança sutil no enfoque, mas eu sabia que era a única forma de conseguir com que ele fosse comigo.
Na verdade, eu tinha planejado uma programação detalhada para as próximas semanas. Cada programa foi cuidadosamente marcado em preto no meu calendário; em vermelho, os cuidados que eu deveria ter, e, em verde, os acessórios de que poderia precisar. Toda vez que eu olhava atrás da porta do meu quarto, sentia certa animação por ser tão organizada e também porque um daqueles programas poderia realmente mudar a visão que Will tinha do mundo.
Como papai sempre diz, minha irmã é o cérebro da família.
A visita à galeria de arte durou pouco menos de vinte minutos. Incluindo contornar o quarteirão três vezes à procura de uma vaga que servisse. Chegamos e, antes mesmo de eu fechar a porta, Will disse que todas as obras eram horríveis. Perguntei por quê, ele respondeu que, se eu não conseguia ver, não dava para explicar. Tivemos de desistir do cinema após o funcionário, desculpando-se, explicar que o elevador estava quebrado.
Outros programas, como a tentativa fracassada de nadar, exigiam mais tempo e organização – ligar antes para a piscina, combinar com Nathan para ele ficar depois do horário. E, quando chegamos, Will bebeu o chocolate quente em silêncio no estacionamento do centro de lazer e se recusou a entrar.
Na quarta-feira seguinte, à noite, fomos ao show de um cantor que ele tinha visto uma vez em Nova York. Foi uma boa viagem. Quando ouvia música, sua expressão ficava bastante concentrada. Era como se, na maior parte do tempo, ele não estivesse totalmente presente, como se uma parte dele lutasse com dores, lembranças ou pensamentos sombrios. Mas com a música tudo era diferente.
No dia seguinte, eu o levei a uma degustação de vinhos promovida por uma vinícola numa loja especializada. Tive de prometer a Nathan que não deixaria Will se embriagar. Segurei cada taça para Will sentir o aroma do vinho e ele sabia qual era cada um deles antes mesmo de provar. Eu me esforcei para não rir quando Will cuspiu a prova na cuspideira (era mesmo muito engraçado), e ele me olhou sério e disse que eu era uma criança. O dono da loja passou de um estado de desconcerto esquisito por ter um cadeirante ali para outro muito impressionado. À medida que a tarde correu, ele se sentou e começou a abrir outras garrafas, discutindo com Will sobre cada região produtora e cada tipo de uva, enquanto eu andava de um lado para outro olhando os rótulos e ficando, para ser sincera, meio entediada.
— Vamos lá, Clark. Eduque-se — incitou Will, acenando com a cabeça para que eu me sentasse ao seu lado.
— Não posso. Mamãe me ensinou que cuspir é falta de educação.
Os dois homens se entreolharam como se eu fosse louca. Mas nem sempre ele cuspia. Fiquei observando. E ficou estranhamente falante pelo resto da tarde – com o riso fácil e até mais briguento do que o normal.
Então, a caminho de casa, passamos por uma cidade a que não costumávamos ir e, como estávamos parados no trânsito, olhei pela janela do carro e vi um estúdio de tatuagem e piercing.
— Sempre quis fazer uma tatuagem — comentei.
Eu deveria saber depois de tudo que não se podia dizer uma coisa dessas na frente de Will. Ele não era do tipo que ficava enrolando, nem jogando conversa fora. Quis imediatamente saber por que nunca fiz uma.
— Ah... não sei. Por medo do que as pessoas iam dizer, acho.
— Por quê? O que elas iam dizer?
— Meu pai detesta tatuagem.
— Quantos anos você tem mesmo?
— Patrick também detesta.
— E ele nunca faz nada de que você pode não gostar.
— Posso ficar nervosa. Posso mudar de ideia depois de fazer.
— Aí é só removê-la com laser, certo?
Examinei-o pelo espelho retrovisor. Os olhos estavam alegres.
— Então, vamos — disse ele. — O que você quer tatuar?
Percebi que eu estava sorrindo.
— Não sei. Nada de cobras, nem nomes de pessoas.
— Não esperava que você quisesse um coração com uma faixa dizendo “mãe”.
— Promete não rir?
— Sabe que não posso. Ah, Deus, não vai tatuar um provérbio indiano em sânscrito ou algo assim, vai? O que não me mata, me fortalece.
— Não. Eu queria uma abelha. Uma abelhinha preta e amarela. Adoro abelhas.
Ele concordou com a cabeça, como se fosse algo perfeitamente razoável.
— E onde quer tatuar? Ou não devo perguntar?
Dei de ombros.
— Não sei. No ombro? No quadril?
— Pare o carro — disse ele.
— Por quê, você está bem?
— Apenas pare. Tem uma vaga ali. Olhe, à sua esquerda.
Parei o carro no meio-fio e dei uma olhada para trás, na direção dele.
— Vamos lá, então — disse ele. — Hoje não temos mais nada para fazer.
— Vamos lá onde?
— No estúdio de tatuagem.
Comecei a rir.
— Ah, está bem.
— Por que não?
— Você engoliu o vinho, em vez de cuspir.
— Não respondeu a minha pergunta.
Virei-me no banco do carro. Ele estava sério.
— Não posso simplesmente entrar e fazer uma tatuagem. Assim, desse jeito.
— Por que não?
— Porque...
— Porque o seu namorado diz que não. Porque você precisa continuar sendo uma boa moça, mesmo aos vinte e sete anos. Porque é muito assustador. Vamos lá, Clark. Viva um pouco. O que a impede?
Fiquei parada na rua, vendo a fachada da loja de tatuagem. A vidraça meio embaçada tinha um grande coração de néon e fotos emolduradas de Angelina Jolie e Mickey Rourke.
A voz de Will penetrou nas minhas avaliações.
— Certo, se você fizer, eu também faço.
Virei-me para ele.
— Faria uma tatuagem?
— Se isso convencê-la, ao menos uma vez, a sair da sua casca.
Desliguei o motor. Ficamos ali ouvindo a engrenagem diminuir, o murmúrio enfadonho dos carros enfileirados na rua, ao nosso lado.
— É um pouco permanente.
— Não existe “pouco” em relação a isso.
— Patrick vai detestar.
— É o que você diz.
— E provavelmente contrairemos hepatite com as agulhas sujas. E teremos uma morte lenta, horrível e dolorosa. — Virei-me para Will. — Não devem tatuar na hora. Não imediatamente.
— É possível que não. Mas vamos entrar e ver?

* * *

Duas horas depois, saímos da loja de tatuagens: eu, com menos oitenta libras na carteira e um curativo no quadril, onde a tinta ainda estava secando. O tatuador disse que, como o desenho era relativamente pequeno, podia ser feito e colorido na mesma sessão, então ali estava. Pronto. Tatuada. Ou, como Patrick certamente diria depois, marcada para sempre. Embaixo do curativo de gaze branca tinha uma gorda abelhinha, escolhida no arquivo de plástico separado com argolas de metal que trazia os modelos e que o tatuador nos entregou quando chegamos. Fiquei quase histérica de nervoso. Tentava alcançar com a vista, girando a cabeça para olhar o trabalho do tatuador até Will mandar eu parar, senão eu ia deslocar algum osso.
Will ficou descansado e contente, o que era bastante estranho. Não deram tempo para ele pensar. Já tinham tatuado alguns tetraplégicos, disseram, o que explicava porque lidaram com ele tão facilmente. Ficaram surpresos quando Will disse que sentia a agulha na pele. Seis semanas antes, eles tinham feito o desenho em tromp l’oeil de uma prótese biônica em toda a lateral da perna de um tetraplégico.
O tatuador, de piercing na orelha, levou Will para a sala ao lado e, com a ajuda do meu tatuador, deitou-o numa mesa especial, de modo que, pela porta entreaberta, só dava para eu ver a parte de baixo das pernas dele. Eu podia escutar os dois falando baixo e rindo junto com o zunido da agulha, o cheiro de antisséptico penetrante no meu nariz.
Quando a agulha entrou na minha pele, mordi o lábio determinada a não deixar que Will ouvisse meu grunhido. Pensei em como ele estaria na sala ao lado, tentando ouvir o que os dois falavam, imaginando o que Will tatuaria. Quando ele finalmente apareceu, depois que a minha tatuagem já estava terminada, não deixou que eu visse o que era.
Achei que era algo relacionado a Alicia.
— Você é uma péssima influência para mim, Will Traynor — disse eu, abrindo a porta do carro e abaixando a rampa. Não conseguia parar de sorrir.
— Mostre-me a sua.
Olhei a rua, virei-me e levantei um pouquinho a blusa na cintura.
— Lindo. Gostei da sua abelhinha. De verdade.
— Terei de usar calças de cintura alta quando estiver perto de meus pais pelo resto da vida. — Ajudei-o a manobrar a cadeira na rampa e levantei-a. — Cuidado, se a sua mãe souber que você também fez uma...
— Vou dizer que a garota do Centro de Trabalho me deixou louco.
— Certo, Traynor, me mostre a sua.
Ele me olhou firme, meio sorridente.
— Terá de trocar o curativo quando chegarmos em casa.
— Sei. Como se eu nunca tivesse feito isso. Vamos. Não tiro o carro daqui se você não mostrar a tatuagem.
— Então levante a minha camisa. Do lado direito. A sua direita.
Debrucei-me nos bancos da frente, levantei a camisa dele e tirei a gaze. Ali, tinta escura sobre a pele clara, tinha um retângulo listrado de preto e branco tão pequeno que precisei olhar duas vezes antes de entender o que dizia.

Validade: 19 de março de 2007

Fiquei olhando. Meio que ri, e meus olhos se encheram de lágrimas.
— Essa é a data...
— Data do acidente. Sim. — Ele olhou para o céu. — Ah, pelo amor de Deus, Clark, não se comova. Era para ser engraçado.
— É engraçado. De um jeito horrível.
— Nathan vai gostar. Ah, não faça essa cara. Não é como se eu tivesse estragado meu corpo perfeito, certo?
Desci a camisa de Will, virei-me para a frente e liguei a ignição. Não sabia o que dizer. Não sabia o que aquilo significava. Ele estava aceitando seu estado? Ou era apenas outra maneira de mostrar desprezo pelo próprio corpo?
— Ei, Clark, faça-me um favor — disse ele, assim que eu saí com o carro. — Alcance minha mochila para mim. O bolso com zíper.
Olhei no retrovisor e puxei o freio de mão novamente. Debrucei-me nos bancos da frente e enfiei a mão na mochila, vasculhando lá dentro conforme ele pediu.
— Quer analgésicos? — Eu estava a poucos centímetros do rosto dele. Seu rosto estava mais corado do que jamais estivera desde que saiu do hospital. — Tenho alguns na minha...
— Não, continue procurando.
Tirei um pedaço de papel e recostei-me no banco. Era uma nota de dez libras.
— Pronto. As dez libras de emergência.
— E então?
— São suas.
— Por quê?
— Por essa tatuagem. — Ele sorriu. — Até você se sentar naquela cadeira, não acreditei que fosse fazer.

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