— Então, vamos lá, Clark. Que programas animados você planejou para esta noite?
Estávamos no jardim. Nathan
fazia fisioterapia em Will, levantando as pernas dele até o peito e
abaixando-as enquanto Will estava deitado em um cobertor, seu rosto
voltado para o sol, seus braços estendidos, como se estivesse tomando
banho de sol. Eu me sentei no gramado perto deles e comi meus
sanduíches. Agora, eu raramente saía para almoçar.
— Por quê?
— Curiosidade. Quero saber como passa seu tempo quando não está aqui.
— Bom... esta noite participarei de
uma pequena luta de artes marciais avançadas, depois vou de helicóptero
jantar em Monte Carlo. E então, no caminho de volta para casa, talvez
tome um drinque em Cannes. Se você olhar para cima às... aah... lá pelas
duas da manhã, acenarei para você quando passar — respondi. Abri o meu
sanduíche e olhei o recheio. — Acho que vou terminar de ler meu livro.
Will deu uma olhada para Nathan.
— Dez pratas — disse ele, sorrindo.
Nathan enfiou a mão no bolso para pegar o dinheiro e falou:
— Sempre assim.
Olhei para os dois e perguntei:
— Sempre assim o quê?
Nathan pôs o dinheiro na mão de Will.
— Ele disse que você ia ler um livro, eu disse que ia ver TV. Ele sempre ganha a aposta.
O sanduíche grudou nos meus lábios.
— Sempre? Vocês têm apostado quão chata é a minha vida?
— Não usamos essa palavra — respondeu Will. O olhar levemente culpado me fez pensar em outra coisa.
Empertiguei-me.
— Deixe-me ver se entendi. Vocês
estão apostando dinheiro se numa noite de sexta-feira eu vou estar em
casa para ler um livro ou ver TV?
— Não — respondeu Will. — Teve uma rodada em que apostei que você iria ver o Corredor na pista.
Nathan soltou a perna de Will. Pegou o braço, esticou-o e começou a massageá-lo a partir do pulso.
— E se eu dissesse que ia fazer uma coisa totalmente diferente?
— Mas você nunca faz — disse Nathan.
— Na verdade, vou ficar com o dinheiro — falei, tirando a nota de dez da mão de Will. — Porque esta noite vocês erraram.
— Você disse que ia ler! — protestou Will.
— Agora que tenho isto — continuei,
mostrando a cédula de dez libras — vou ao cinema. Pronto. Pode acionar o
Juizado de Pequenas Causas ou seja lá como se chame.
Levantei, guardei o dinheiro no
bolso e joguei o resto do meu almoço no saco de papel pardo. Sorri ao me
afastar deles mas, estranhamente, e sem qualquer razão aparente, meus
olhos se encheram de lágrimas.
Naquela manhã, fiquei uma hora
trabalhando no calendário antes de ir para a Granta House. Em alguns
dias, eu apenas me sentava na cama e, de lá, olhava o calendário, a
caneta na mão, pensando para onde eu poderia levar Will. Ainda não
estava convencida de que poderia levá-lo para muito mais longe e, mesmo
com a ajuda de Nathan, pensar em passar a noite em algum lugar parecia
uma ideia assustadora.
Olhei o jornal da cidade, à procura
de jogos de futebol e festas regionais, mas, após o fracasso das
corridas, tive medo de que a cadeira de Will atolasse na grama. E ficava
preocupada que multidões o fizessem se sentir exposto. Tinha de excluir
todos os eventos relacionados com cavalos, o que, na nossa região,
significava uma quantidade surpreendente de atividades ao ar livre.
Sabia que Will não gostaria de ir ver Patrick numa corrida e que
detestava críquete e rúgbi. Às vezes, eu ficava pasma com minha
incapacidade de pensar novas coisas.
Talvez Will e Nathan tivessem razão.
Talvez eu fosse chata. Talvez eu fosse a pessoa menos capacitada do
mundo para inventar coisas que pudessem instigar a vontade de viver em
Will.
Um livro, ou a televisão.
Posto assim, era difícil concluir outra coisa a meu respeito.
* * *
Depois que Nathan saiu, Will foi me
encontrar na cozinha. Eu estava sentada à mesinha, descascando batatas
para o jantar, e não olhei para ele quando chegou e posicionou a cadeira
no vão da porta. Examinou-me por tempo suficiente para que minhas
orelhas ficassem vermelhas com o escrutínio.
— Sabe — falei, finalmente. — Eu poderia ter sido malvada com você. — Poderia ter dito que você também não faz nada.
— Não sei se Nathan teria apostado que eu iria sair para dançar — disse Will.
— Eu sei que é brincadeira —
prossegui, descartando uma comprida tira de casca de batata. — Mas
vocês fizeram com que eu me sentisse muito mal mesmo. Se vocês vão fazer
apostas com a minha vida sem graça, precisam me avisar? Não poderiam
fazer disso uma espécie de piada particular?
Ele não disse nada por um tempo. Quando, finalmente, olhei para ele, estava me observando.
— Desculpe — disse.
— Você não me parece arrependido.
— Bom... está bem... talvez eu quisesse que você escutasse isso. Talvez eu quisesse mostrar o que você está fazendo da sua vida.
— Acha que estou desperdiçando minha vida...?
— Acho, na verdade.
— Meu Deus, Will. Eu gostaria que
você parasse de me dizer o que eu devo fazer. E daí se eu gosto de ver
televisão? E daí se eu não quero muito mais que ler um livro? — Minha
voz tinha ficado esganiçada. — E daí se estou cansada quando chego em
casa? E daí se não preciso preencher meus dias com atividades
frenéticas?
— Mas um dia pode se arrepender — disse ele, em voz baixa. — Sabe o que eu faria, se fosse você?
Larguei o descascador.
— Acho que você vai me dizer.
— É. E fico bastante constrangido de
dizer isso a você. Eu faria um curso noturno. De costureira ou
estilista de moda, ou seja lá o que for esses remendos de que você
realmente gosta. — Fez um gesto em direção ao meu minivestido, inspirado
no estilo Pucci dos anos 1960, feito com o tecido que, uma vez, tinha
sido uma das cortinas do meu avô.
A primeira vez que papai viu, ele apontou para mim e gritou:
— Ei, Lou, controle-se! — E levou cinco minutos para parar de rir.
— Eu procuraria o que pudesse fazer e
que fosse mais barato: aulas de ginástica, natação, voluntariado,
qualquer coisa. Daria aulas de música, ou passearia com o cachorro de
alguém, ou... — sugeriu Will.
— Certo, certo entendi o recado — falei, irritada. — Mas não sou você, Will.
— Sorte sua.
Ficamos ali por um tempo. Will entrou na cozinha e levantou o assento da cadeira de maneira a nos vermos por cima da mesa.
— Certo — falei. — Então, o que você fazia depois do trabalho? Era algo tão precioso assim?
— Bom, não me sobrava muito tempo depois do trabalho, mas eu tentava fazer alguma coisa todos os dias. Praticava escalada indoor em um centro esportivo, jogava squash, ia a concertos, experimentava restaurantes novos...
— Tudo isso é fácil com dinheiro — reclamei.
— E eu corria. É verdade — disse, e
levantei uma sobrancelha. — Tentava aprender a língua de lugares que eu
poderia visitar um dia. E encontrava meus amigos... ou quem eu achava
que eram meus amigos... — Ele hesitou por um instante. — E planejava
viagens. Procurava por lugares em que eu nunca tinha estado, coisas que
me assustassem ou me levassem ao limite. Uma vez, atravessei o Canal da
Mancha a nado. Pratiquei parapente. Subi montanhas e as desci esquiando.
É — falou, quando fiz menção de interromper. — Sei que muitas dessas
coisas exigem dinheiro, mas muitas outras, não. Além do mais, como você
acha que eu ganhava dinheiro?
— Explorando as pessoas na City?
— Eu fazia o que me faria feliz e o que eu queria fazer; me preparei para trabalhar no que me permitisse fazer as duas coisas.
— Você faz isso parecer tão simples.
— E é — disse ele. — O problema é que ainda assim é muito trabalho. E ninguém quer trabalhar muito.
Terminei com as batatas. Joguei as
cascas no lixo e coloquei a panela no fogão, pronta para mais tarde.
Virei-me e, apoiando os braços na mesa, sentei-me ali, com as pernas
balançando.
— Você teve uma boa vida, não?
— É, tive. — Ele chegou um pouco
mais perto e elevou o assento até quase ficar na altura dos meus olhos. —
Por isso é que você me irrita, Clark. Vejo todo esse talento, toda
essa... — Ele deu de ombros. — Essa energia e inteligência e...
— Não diga potencial...
— ... potencial. Sim. Potencial. Não
consigo entender como se contenta com essa vidinha. Essa vidinha que
será passada quase toda num raio de quinze quilômetros, sem ninguém que a
surpreenda, incentive ou mostre coisas que façam sua cabeça girar e
você perder o sono à noite.
— É uma forma de dizer que eu deveria estar fazendo coisas melhores do que descascar batatas para você.
— Estou avisando que existe um mundo
inteiro lá fora. Mas eu gostaria muito que, antes de conhecer esse
mundo, você fizesse umas batatas para mim. — Ele me lançou um sorriso e
não pude evitar retribuir.
— Você não acha... — comecei a dizer, mas desisti.
— Continue.
— Não acha que é mais difícil para você... se adaptar, digamos assim... Porque você fez todas essas coisas?
— Está perguntando se eu preferia não ter feito nada?
— Estava pensando se não seria mais
fácil para você. Se tivesse tido uma vida menos rica antes. Viver assim,
como você vive agora, quero dizer.
— Jamais me arrependerei do que fiz.
Porque, quase sempre, se você está enfiado numa cadeira assim, só pode
ir aos lugares da lembrança. — Sorriu. Um sorriso duro, como se lhe
custasse. — Então, se você está me perguntando se prefiro me lembrar da
vista que se tem do castelo quando se está no minimercado, ou daquela
linda fileira de lojas por ali, então, não. Minha vida foi ótima.
Obrigado.
Desci da mesa. Não tinha muita
certeza, mas me senti mais uma vez como uma pessoa colocada contra a
parede. Peguei a tábua de cortar no escorredor.
— E Lou, me desculpe. Sobre aquela história da aposta.
— Tudo bem. — Virei-me e comecei a enxaguar a tábua. — Mas não pense que isso vai lhe trazer de volta aquelas dez libras.
* * *
Dois dias depois, Will teve uma
infecção e acabou no hospital. Era uma medida de precaução, foi o que
eles disseram, mas era óbvio para todos que ele sentia muita dor.
Alguns tetraplégicos não têm
sensibilidade física, mas, apesar de não sentir calor ou frio, do peito
para baixo ele podia sentir dor e o toque. Fui visitá-lo duas vezes,
levando músicas e coisas gostosas para comer, me ofereci para fazer
companhia mas, particularmente, senti como se eu estivesse atrapalhando,
e logo percebi que ele não queria mais atenção. Disse para eu ir para
casa e aproveitar o tempo que teria para mim mesma.
Um ano antes, eu teria aproveitado
mesmo, percorreria as lojas, talvez até fosse almoçar com Patrick. Eu
provavelmente teria visto um pouco de TV à tarde e faria uma vaga
tentativa de arrumar minhas roupas. Teria dormido à beça.
Agora, no entanto, eu estava
estranhamente agitada e perturbada. Sentia falta de um motivo para me
levantar cedo, de um propósito para o dia.
Levei a metade de uma manhã para
concluir que esse tempo poderia ser útil. Fui à biblioteca e comecei a
pesquisar. Olhei todos os sites sobre tetraplégicos que pude encontrar e
descobri coisas que poderíamos fazer quando Will estivesse melhor. Fiz
listas e acrescentei o equipamento ou as coisas que seriam necessárias
para cada programa.
Encontrei salas de bate-papo para
portadores de lesão na coluna e descobri que havia centenas de pessoas
iguais a ele lá fora – vivendo vidas escondidas em Londres, Sydney,
Vancouver ou até ali naquela rua – ajudadas por amigos ou familiares e,
às vezes, sozinhos, o que era de cortar o coração.
Eu não era a única cuidadora
interessada naqueles sites. Havia namoradas perguntando como ajudar seus
parceiros a terem confiança para sair de casa de novo, maridos querendo
saber opiniões sobre os equipamentos médicos mais novos. Tinha anúncios
de cadeiras de roda que podiam enfrentar areia ou terra; içadores
inteligentes e acessórios infláveis para banho.
As pessoas usavam muitas siglas nos
bate-papos. Descobri que LME era lesão na medula espinhal; ITU, infecção
do trato urinário; FS, forte e saudável. Vi também que uma lesão em C4 e
C5 era bem mais grave do que em C11 e C12, pois muitos dos lesionados
nessa última localização usavam os braços ou o torso. Havia história de
amor e perda, de homens lutando para lidar com esposas deficientes
físicas e também com filhos pequenos. Havia esposas que se sentiam
culpadas por terem rezado para que o marido parasse de espancá-la; agora
ele nunca mais faria isso. Havia maridos que queriam se separar da
esposa deficiente, mas tinham medo de como a comunidade reagiria. Havia
exaustão e desespero e muito humor negro – piadas sobre bolsas de coleta
que explodiam; atitudes bem-intencionadas, mas burras; desventuras de
bêbados. Cair da cadeira parecia um tema corriqueiro. E havia ameaças de
suicídio: os que queriam se matar; outros que os encorajavam a esperar,
a aprender a olhar a vida de outra maneira. Li cada uma delas e me
senti como se estivesse olhando para um panorama secreto de como o
cérebro de Will funcionava.
No almoço, saí da biblioteca e fui
andar pela cidade para desanuviar a cabeça. Dei-me o luxo de um
sanduíche de camarão e sentei-me no muro, observando os cisnes no lago
abaixo do castelo. Estava quente o suficiente para que eu tirasse o
casaco, e voltei meu rosto na direção do sol. Havia um curioso sossego
em olhar o restante do mundo cuidar de suas vidas. Depois de passar a
manhã inteira enfiada no mundo dos paralíticos, só o fato de poder andar
e comer meu sanduíche ao sol já me dava uma sensação de liberdade.
Quando terminei, voltei para a biblioteca e solicitei o computador que estava usando.
Tomei fôlego e digitei uma mensagem.
Olá, sou amiga e cuidadora de um tetraplégico de trinta e cinco anos,
com lesão em C4 e C5. Ele era muito bem-sucedido e dinâmico em sua vida
anterior e está tendo dificuldades para se adaptar à nova realidade. Na
verdade, sei que ele não quer mais viver e estou tentando pensar em
maneiras de fazê-lo mudar de ideia. Alguém pode, por favor, me dizer
como posso fazer isso? Alguma ideia de coisas de que ele possa gostar,
ou meios de eu conseguir fazer com que ele pense de maneira diferente?
Todas as opiniões são bem-vindas.
Assinei Abelha Atarefada. Então, recostei-me na cadeira, mordisquei um pouco meu dedão e finalmente apertei “Enviar”.
* * *
Na manhã seguinte, quando me sentei
no terminal, havia quatorze respostas. Entrei no bate-papo e fiquei
surpresa com a lista de nomes. Pessoas do mundo inteiro haviam
respondido dia e noite. O primeiro dizia:
Cara Abelha Atarefada
Seja bem-vinda. Tenho certeza que seu amigo terá muito consolo por ter alguém cuidando dele.
Eu não estou muito certa disso, pensei.
Quase todos nós enfrentamos um obstáculo definitivo na vida. Talvez o
seu amigo tenha chegado ao obstáculo dele. Não deixe que ele afaste
você. Mantenha-se positiva. E lembre-o de que não compete a ele decidir
quando chegamos e saímos desse mundo, mas ao Senhor. Com Sua Sabedoria,
Ele resolveu mudar a vida do seu amigo, o que pode ser uma mostra de que
Ele...
Passei para a mensagem seguinte.
Cara Abelha,
Não tem jeito, ser tetra pode ser
um saco. Se o seu amigo ainda por cima gostava de esportes, vai achar
mais duro ainda. Eis as coisas que me ajudaram: muita companhia, mesmo
quando eu não estava querendo. Boa comida. Bons médicos. Bons remédios,
antidepressivos, quando necessário. Você não disse onde vocês estão, mas
se conseguir que ele converse com outras pessoas na comunidade de LME,
isso pode ajudar. No começo, eu era muito relutante (acho que uma parte
minha não queria admitir que eu era um tetra), mas ajuda saber que não
se está só. Ah, e NÃO DEIXE que ele assista a nenhum filme como O escafandro e a borboleta. Mó deprê!
Dê notícias.
Sinceramente,
Ritchie
Pesquisei por O escafandro e a borboleta.
“A história de um homem que fica paralisado devido a um derrame e suas
tentativas de se comunicar com o mundo externo”, dizia o resumo
do filme. Anotei o título no meu bloco, sem saber se eu estava fazendo
aquilo para garantir que Will não o assistiria ou para me lembrar de ver
depois.
As outras duas mensagens eram de um
Adventista do Sétimo Dia e de um homem que sugeria coisas para levantar o
ânimo de Will que certamente não estavam no meu contrato de trabalho.
Enrubesci e passei rápido para outra mensagem, com medo de que alguém
desse uma olhada na tela por trás de mim. E então eu fiquei indecisa
quanto à próxima mensagem.
Olá Abelha Atarefada,
Por que acha que o seu amigo/paciente/o que for precisa mudar de
ideia? Se eu conseguisse um jeito de morrer com dignidade e se eu
soubesse que isso não devastaria minha família, eu me mataria. Estou
confinado a esta cadeira há oito anos e minha vida consiste numa série
de humilhações e frustrações. Você consegue mesmo se colocar no lugar
dele? Sabe o que é não conseguir nem evacuar sem ajuda? Saber que ficará
de cama para sempre; sem poder comer, se vestir ou se comunicar com o
mundo exterior sem que alguém o ajude? Nunca mais transar? Encarar a
possibilidade de ter escaras, adoecer e até precisar de respiradores?
Você parece uma pessoa ótima, e tenho certeza que tem boas intenções.
Mas talvez você não cuide dele na semana que vem. Talvez no futuro seja
alguém que o deixe deprimido, ou até que não goste muito dele. Isso,
como todas as outras coisas, está fora do controle dele. Nós, portadores
de LME, sabemos que muito pouco está sob nosso controle – quem nos
alimenta, quem nos veste, quem nos lava, quem prescreve nosso remédio.
Viver consciente disso é muito duro.
Por isso, acho que você está fazendo a pergunta errada. Quem são os
fortes e sadios para decidir como deve ser a nossa vida? Se essa não é a
vida certa para o seu amigo, a questão deveria ser: como posso ajudá-lo
a acabar com isso?
Sinceramente,
Gforce, Missouri, Estados Unidos
Fiquei olhando para a mensagem, meus
dedos parados sobre o teclado. Depois, passei para as mensagens
restantes. Eram de outros tetraplégicos criticando as palavras
desanimadoras de Gforce, afirmando que eles conseguiram um jeito de
seguir em frente, que a vida deles valia a pena. Houve uma pequena
discussão que parecia não ter nada a ver com Will.
A seguir, voltaram a comentar o meu
pedido. Havia sugestões de antidepressivos, massagens, recuperações
miraculosas, histórias de como a vida dos próprios membros da comunidade
passou a ter um novo valor. Havia algumas sugestões práticas:
degustação de vinho, música, exposições de arte, teclados de computador
especialmente adaptados.
“Sugiro uma companheira”, escreveu
Grace31, de Birmigham. “Se ele amar, sentirá que pode seguir em frente.
Sem amor, eu já teria afundado várias vezes.”
Essa frase ecoou na minha cabeça até bem depois de eu sair da biblioteca.
* * *
Will saiu do hospital na
quinta-feira. Fui buscá-lo com o carro adaptado e trouxe-o para casa.
Estava pálido e exausto; ficou olhando distraidamente pela janela
durante todo o trajeto.
— Não dá para dormir nesses lugares — explicou, quando perguntei se estava bem. — Tem sempre alguém gemendo na cama ao lado.
Eu disse que ele teria o fim de
semana para se recuperar, mas que depois eu tinha planejado vários
passeios. Disse também que estava seguindo o conselho dele e tentando
fazer coisas novas e ele teria de me acompanhar. Era uma mudança sutil
no enfoque, mas eu sabia que era a única forma de conseguir com que ele
fosse comigo.
Na verdade, eu tinha planejado uma
programação detalhada para as próximas semanas. Cada programa foi
cuidadosamente marcado em preto no meu calendário; em vermelho, os
cuidados que eu deveria ter, e, em verde, os acessórios de que poderia
precisar. Toda vez que eu olhava atrás da porta do meu quarto, sentia
certa animação por ser tão organizada e também porque um daqueles
programas poderia realmente mudar a visão que Will tinha do mundo.
Como papai sempre diz, minha irmã é o cérebro da família.
A visita à galeria de arte durou
pouco menos de vinte minutos. Incluindo contornar o quarteirão três
vezes à procura de uma vaga que servisse. Chegamos e, antes mesmo de eu
fechar a porta, Will disse que todas as obras eram horríveis. Perguntei
por quê, ele respondeu que, se eu não conseguia ver, não dava para
explicar. Tivemos de desistir do cinema após o funcionário,
desculpando-se, explicar que o elevador estava quebrado.
Outros programas, como a tentativa
fracassada de nadar, exigiam mais tempo e organização – ligar antes para
a piscina, combinar com Nathan para ele ficar depois do horário. E,
quando chegamos, Will bebeu o chocolate quente em silêncio no
estacionamento do centro de lazer e se recusou a entrar.
Na quarta-feira seguinte, à noite,
fomos ao show de um cantor que ele tinha visto uma vez em Nova York. Foi
uma boa viagem. Quando ouvia música, sua expressão ficava bastante
concentrada. Era como se, na maior parte do tempo, ele não estivesse
totalmente presente, como se uma parte dele lutasse com dores,
lembranças ou pensamentos sombrios. Mas com a música tudo era diferente.
No dia seguinte, eu o levei a uma
degustação de vinhos promovida por uma vinícola numa loja especializada.
Tive de prometer a Nathan que não deixaria Will se embriagar. Segurei
cada taça para Will sentir o aroma do vinho e ele sabia qual era cada um
deles antes mesmo de provar. Eu me esforcei para não rir quando Will
cuspiu a prova na cuspideira (era mesmo muito engraçado), e ele me olhou
sério e disse que eu era uma criança. O dono da loja passou de um
estado de desconcerto esquisito por ter um cadeirante ali para outro
muito impressionado. À medida que a tarde correu, ele se sentou e
começou a abrir outras garrafas, discutindo com Will sobre cada região
produtora e cada tipo de uva, enquanto eu andava de um lado para outro
olhando os rótulos e ficando, para ser sincera, meio entediada.
— Vamos lá, Clark. Eduque-se — incitou Will, acenando com a cabeça para que eu me sentasse ao seu lado.
— Não posso. Mamãe me ensinou que cuspir é falta de educação.
Os dois homens se entreolharam como
se eu fosse louca. Mas nem sempre ele cuspia. Fiquei observando. E ficou
estranhamente falante pelo resto da tarde – com o riso fácil e até mais
briguento do que o normal.
Então, a caminho de casa, passamos
por uma cidade a que não costumávamos ir e, como estávamos parados no
trânsito, olhei pela janela do carro e vi um estúdio de tatuagem e
piercing.
— Sempre quis fazer uma tatuagem — comentei.
Eu deveria saber depois de tudo que
não se podia dizer uma coisa dessas na frente de Will. Ele não era do
tipo que ficava enrolando, nem jogando conversa fora. Quis imediatamente
saber por que nunca fiz uma.
— Ah... não sei. Por medo do que as pessoas iam dizer, acho.
— Por quê? O que elas iam dizer?
— Meu pai detesta tatuagem.
— Quantos anos você tem mesmo?
— Patrick também detesta.
— E ele nunca faz nada de que você pode não gostar.
— Posso ficar nervosa. Posso mudar de ideia depois de fazer.
— Aí é só removê-la com laser, certo?
Examinei-o pelo espelho retrovisor. Os olhos estavam alegres.
— Então, vamos — disse ele. — O que você quer tatuar?
Percebi que eu estava sorrindo.
— Não sei. Nada de cobras, nem nomes de pessoas.
— Não esperava que você quisesse um coração com uma faixa dizendo “mãe”.
— Promete não rir?
— Sabe que não posso. Ah, Deus, não vai tatuar um provérbio indiano em sânscrito ou algo assim, vai? O que não me mata, me fortalece.
— Não. Eu queria uma abelha. Uma abelhinha preta e amarela. Adoro abelhas.
Ele concordou com a cabeça, como se fosse algo perfeitamente razoável.
— E onde quer tatuar? Ou não devo perguntar?
Dei de ombros.
— Não sei. No ombro? No quadril?
— Pare o carro — disse ele.
— Por quê, você está bem?
— Apenas pare. Tem uma vaga ali. Olhe, à sua esquerda.
Parei o carro no meio-fio e dei uma olhada para trás, na direção dele.
— Vamos lá, então — disse ele. — Hoje não temos mais nada para fazer.
— Vamos lá onde?
— No estúdio de tatuagem.
Comecei a rir.
— Ah, está bem.
— Por que não?
— Você engoliu o vinho, em vez de cuspir.
— Não respondeu a minha pergunta.
Virei-me no banco do carro. Ele estava sério.
— Não posso simplesmente entrar e fazer uma tatuagem. Assim, desse jeito.
— Por que não?
— Porque...
— Porque o seu namorado diz que não.
Porque você precisa continuar sendo uma boa moça, mesmo aos vinte e
sete anos. Porque é muito assustador. Vamos lá, Clark. Viva um pouco. O
que a impede?
Fiquei parada na rua, vendo a
fachada da loja de tatuagem. A vidraça meio embaçada tinha um grande
coração de néon e fotos emolduradas de Angelina Jolie e Mickey Rourke.
A voz de Will penetrou nas minhas avaliações.
— Certo, se você fizer, eu também faço.
Virei-me para ele.
— Faria uma tatuagem?
— Se isso convencê-la, ao menos uma vez, a sair da sua casca.
Desliguei o motor. Ficamos ali
ouvindo a engrenagem diminuir, o murmúrio enfadonho dos carros
enfileirados na rua, ao nosso lado.
— É um pouco permanente.
— Não existe “pouco” em relação a isso.
— Patrick vai detestar.
— É o que você diz.
— E provavelmente contrairemos
hepatite com as agulhas sujas. E teremos uma morte lenta, horrível e
dolorosa. — Virei-me para Will. — Não devem tatuar na hora. Não
imediatamente.
— É possível que não. Mas vamos entrar e ver?
* * *
Duas horas depois, saímos da loja de
tatuagens: eu, com menos oitenta libras na carteira e um curativo no
quadril, onde a tinta ainda estava secando. O tatuador disse que, como o
desenho era relativamente pequeno, podia ser feito e colorido na mesma
sessão, então ali estava. Pronto. Tatuada. Ou, como Patrick certamente
diria depois, marcada para sempre. Embaixo do curativo de gaze branca
tinha uma gorda abelhinha, escolhida no arquivo de plástico separado com
argolas de metal que trazia os modelos e que o tatuador nos entregou
quando chegamos. Fiquei quase histérica de nervoso. Tentava alcançar com
a vista, girando a cabeça para olhar o trabalho do tatuador até Will
mandar eu parar, senão eu ia deslocar algum osso.
Will ficou descansado e contente, o
que era bastante estranho. Não deram tempo para ele pensar. Já tinham
tatuado alguns tetraplégicos, disseram, o que explicava porque lidaram
com ele tão facilmente. Ficaram surpresos quando Will disse que sentia a
agulha na pele. Seis semanas antes, eles tinham feito o desenho em tromp l’oeil de uma prótese biônica em toda a lateral da perna de um tetraplégico.
O tatuador, de piercing na orelha,
levou Will para a sala ao lado e, com a ajuda do meu tatuador, deitou-o
numa mesa especial, de modo que, pela porta entreaberta, só dava para eu
ver a parte de baixo das pernas dele. Eu podia escutar os dois falando
baixo e rindo junto com o zunido da agulha, o cheiro de antisséptico
penetrante no meu nariz.
Quando a agulha entrou na minha
pele, mordi o lábio determinada a não deixar que Will ouvisse meu
grunhido. Pensei em como ele estaria na sala ao lado, tentando ouvir o
que os dois falavam, imaginando o que Will tatuaria. Quando
ele finalmente apareceu, depois que a minha tatuagem já estava
terminada, não deixou que eu visse o que era.
Achei que era algo relacionado a Alicia.
— Você é uma péssima influência para
mim, Will Traynor — disse eu, abrindo a porta do carro e abaixando a
rampa. Não conseguia parar de sorrir.
— Mostre-me a sua.
Olhei a rua, virei-me e levantei um pouquinho a blusa na cintura.
— Lindo. Gostei da sua abelhinha. De verdade.
— Terei de usar calças de cintura
alta quando estiver perto de meus pais pelo resto da vida. — Ajudei-o a
manobrar a cadeira na rampa e levantei-a. — Cuidado, se a sua mãe souber
que você também fez uma...
— Vou dizer que a garota do Centro de Trabalho me deixou louco.
— Certo, Traynor, me mostre a sua.
Ele me olhou firme, meio sorridente.
— Terá de trocar o curativo quando chegarmos em casa.
— Sei. Como se eu nunca tivesse feito isso. Vamos. Não tiro o carro daqui se você não mostrar a tatuagem.
— Então levante a minha camisa. Do lado direito. A sua direita.
Debrucei-me nos bancos da frente,
levantei a camisa dele e tirei a gaze. Ali, tinta escura sobre a pele
clara, tinha um retângulo listrado de preto e branco tão pequeno que
precisei olhar duas vezes antes de entender o que dizia.
Validade: 19 de março de 2007
Fiquei olhando. Meio que ri, e meus olhos se encheram de lágrimas.
— Essa é a data...
— Data do acidente. Sim. — Ele olhou para o céu. — Ah, pelo amor de Deus, Clark, não se comova. Era para ser engraçado.
— É engraçado. De um jeito horrível.
— Nathan vai gostar. Ah, não faça essa cara. Não é como se eu tivesse estragado meu corpo perfeito, certo?
Desci a camisa de Will, virei-me
para a frente e liguei a ignição. Não sabia o que dizer. Não sabia o que
aquilo significava. Ele estava aceitando seu estado? Ou era apenas
outra maneira de mostrar desprezo pelo próprio corpo?
— Ei, Clark, faça-me um favor — disse ele, assim que eu saí com o carro. — Alcance minha mochila para mim. O bolso com zíper.
Olhei no retrovisor e puxei o freio
de mão novamente. Debrucei-me nos bancos da frente e enfiei a mão na
mochila, vasculhando lá dentro conforme ele pediu.
— Quer analgésicos? — Eu estava a
poucos centímetros do rosto dele. Seu rosto estava mais corado do que
jamais estivera desde que saiu do hospital. — Tenho alguns na minha...
— Não, continue procurando.
Tirei um pedaço de papel e recostei-me no banco. Era uma nota de dez libras.
— Pronto. As dez libras de emergência.
— E então?
— São suas.
— Por quê?
— Por essa tatuagem. — Ele sorriu. — Até você se sentar naquela cadeira, não acreditei que fosse fazer.
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