Passaram-se duas
semanas, e com elas surgiu uma espécie de rotina. Todos os dias eu
chegava na Granta House às oito da manhã, avisava que estava lá e,
quando Nathan terminava de ajudar Will a se vestir, eu ouvia
cuidadosamente ele me dizer o que eu precisava saber a respeito dos
medicamentos de Will e, o mais importante, como estava o humor dele.
Depois que Nathan saía, eu sintonizava o rádio ou a TV para Will, dava seus comprimidos, às vezes amassando-os no pequeno pilão de mármore. Geralmente, depois de mais ou menos dez minutos ele deixava claro que estava cansado da minha presença. Eu então realizava com dificuldade as pequenas tarefas domésticas do anexo, lavando panos de prato que não estavam sujos ou usando partes aleatórias do aspirador para limpar os menores cantinhos de cortinas ou peitoris de janelas, enfiando minha cabeça pela porta religiosamente a cada quinze minutos, conforme a Sra. Traynor me pedira. E, quando eu fazia isso, Will continuava sentado em sua cadeira, olhando para fora na direção do jardim.
Mais tarde, eu levava um copo
d’água, ou uma daquelas bebidas calóricas que serviam supostamente para
manter seu peso e que pareciam cola para papel de parede num tom pastel,
ou lhe dava comida. Ele podia mexer um pouco as mãos, mas não os
braços, por isso precisava ser alimentado garfada a garfada. Essa era a
pior parte do dia; parecia errado que, de algum modo, um adulto
recebesse comida na boca e meu embaraço me fazia parecer desajeitada e
inábil. Will odiava tanto isso que não conseguia nem me olhar enquanto
eu o alimentava.
E então, pouco antes da uma da
tarde, Nathan chegava e eu pegava o meu casaco e sumia para andar pelas
ruas. Às vezes comia meu almoço no ponto de ônibus que ficava do lado de
fora do castelo. Fazia frio e provavelmente eu parecia patética
empoleirada ali, comendo sanduíches, mas eu não ligava. Não conseguia
passar o dia inteiro dentro daquela casa.
À tarde, eu colocava um filme – Will
era sócio de uma locadora de DVDs e chegavam filmes novos pelo correio
todos os dias – mas ele nunca me convidou para assistir a nenhum com
ele, então eu costumava ficar na cozinha ou no quarto extra.
Passei a levar um livro ou uma
revista, mas me sentia estranhamente culpada por não estar trabalhando
de verdade, e não conseguia me concentrar nem um pouco nas palavras. De
vez em quando, no final do dia, a Sra. Traynor aparecia – embora nunca
falasse muita coisa comigo além do “Está tudo bem?”, cuja única resposta
aceitável parecia ser “Sim”.
Ela perguntava a Will se ele queria
alguma coisa, às vezes sugeria algo que ele poderia gostar de fazer no
dia seguinte – sair ao ar livre, ou visitar algum amigo que havia
perguntado por ele – e ele quase sempre respondia com desprezo, quando
não diretamente com uma grosseria. Ela parecia magoada, corria os dedos
por sua correntinha dourada e sumia de novo.
O pai de Will, um homem gorducho de
aparência gentil, costumava chegar quando eu estava saindo. Era o tipo
do sujeito que pode ser visto assistindo a um jogo de críquete usando um
chapéu panamá e que, aparentemente, desde que se aposentara de seu
emprego bem-remunerado na cidade, supervisionava a administração do
castelo. Eu desconfiava de que era como um daqueles ricos fazendeiros
que de vez em quando planta alguma coisa ele mesmo, só para “manter a
mão na massa”. Ele encerrava o expediente todos os dias às cinco em
ponto e vinha ver TV com Will. Às vezes, ao sair eu o escutava fazer uma
observação sobre alguma coisa do noticiário.
Precisei prestar muita atenção em
Will Traynor naquelas primeiras semanas. Reparei que ele parecia
determinado a não lembrar em nada com o homem que tinha sido; deixara
seu cabelo castanho-claro crescer em uma bagunça disforme e a barba por
fazer se espalhava sobre o rosto. Seus olhos cinzentos tinham marcas de
cansaço, ou do desconforto que ele sentia quase o tempo todo (Nathan me
disse que ele raramente se sentia bem). Eles levavam o olhar vazio de
alguém que está sempre alguns passos afastado do mundo a seu redor. Às
vezes, eu me perguntava se aquilo não era um mecanismo de defesa de
Will, já que a única maneira que encontrou de lidar com sua vida foi
fingir que não era com ele que aquelas coisas estavam acontecendo.
Eu gostaria de sentir pena dele. Eu
realmente queria. Quando o pegava olhando para fora através da janela,
pensava que ele era a pessoa mais triste que eu já conhecera. E, à
medida que os dias se passavam e eu notava que sua condição não tinha
relação somente com o fato de estar preso naquela cadeira ou com a perda
de sua liberdade física, mas por uma série infinita de problemas de
saúde, riscos e desconfortos, concluí que, se eu fosse Will,
provavelmente também me sentiria infeliz.
Mas, meu Deus, ele era horrível
comigo. Tinha uma resposta mordaz para tudo o que eu dizia. Se eu queria
saber se ele estava bem aquecido, ele retrucava que era suficientemente
capaz de me avisar se precisasse de outro cobertor. Se eu perguntava se
o aspirador fazia muito barulho – eu não queria atrapalhar seu filme –
Will questionava o porquê daquela pergunta, por acaso eu conseguia fazer
o aparelho funcionar em silêncio? Quando eu lhe dava as refeições, ele
reclamava que a comida estava quente demais ou fria demais, ou que eu
tinha levado a próxima garfada antes de ele ter acabado de mastigar. Ele
possuía a habilidade de distorcer quase todas as minhas palavras ou
ações, me fazendo parecer uma idiota.
Nessas duas primeiras
semanas, fiquei bastante boa em manter uma expressão totalmente neutra,
em dar as costas e me retirar para outro cômodo e em falar com ele o
mínimo necessário. Comecei a odiá-lo, e tenho certeza de que ele sabia
disso.
Eu não imaginava que fosse possível sentir ainda mais falta do meu antigo emprego.
Sentia saudades de Frank e de como
ele realmente parecia satisfeito ao me ver quando eu chegava pela manhã.
Sentia falta dos clientes, da companhia deles, das conversas fáceis,
dos suaves sons de engolir e de coisas sendo mergulhadas em líquidos que
pareciam um mar calmo. Aquela casa linda e elegante era vazia e
silenciosa como um necrotério. Seis meses, eu repetia mentalmente quando tudo parecia insuportável. Seis meses.
Então, numa quinta-feira, quando eu
estava preparando a bebida hipercalórica que Will tomava no meio da
manhã, ouvi a voz da Sra. Traynor no corredor. Só que, dessa vez, havia
outras vozes também. Parei, ainda com o garfo na mão. Identifiquei
apenas uma voz feminina, jovem e clara, e outra, masculina.
A Sra. Traynor surgiu na porta da cozinha e tentei parecer ocupada, batendo rápido o suco no copo especial de Will.
— Misturou na proporção de seis partes de água para quatro de leite? — ela perguntou, observando atentamente a bebida.
— Sim. É o de morango.
— Os amigos de Will vieram visitá-lo. Seria melhor se você...
— Tenho várias coisas para fazer aqui — falei.
Na verdade, estava um tanto aliviada
por ter sido dispensada de sua companhia durante mais ou menos uma
hora. Rosqueei a tampa do copo.
— As visitas gostariam de um chá ou café?
Ela ficou quase surpresa.
— Sim, seria muito simpático. Café. Acho que vou...
Ela parecia ainda mais tensa que o
normal, seu olhar disparando em direção ao corredor, de onde podíamos
escutar o murmúrio de vozes. Supus que Will não recebia muitas visitas.
— Eu acho... vou deixá-los
conversar. — Deu uma olhadela para o corredor, seus pensamentos pareciam
estar longe. — Rupert. É Rupert, um velho amigo do trabalho — disse
ela, virando-se de súbito para mim.
Tive o pressentimento de que aquele
era de certa forma um momento significativo e que ela queria dividir a
notícia com alguém, mesmo que fosse comigo.
— E Alicia. Will e ela foram... muitos próximos... por algum tempo. Café seria adorável. Obrigada, Srta. Clark.
* * *
Hesitei por um instante antes de
abrir a porta, empurrando-a com o quadril de modo a conseguir equilibrar
a bandeja que estava em minhas mãos.
— A Sra. Traynor disse que gostariam de um café — falei ao entrar, colocando a bandeja na mesa de centro.
Quando pus o copo especial de Will
no suporte de sua cadeira, virando o canudinho de modo que ele apenas
precisasse ajustar a cabeça para alcançá-lo, olhei furtivamente para as
visitas.
Vi primeiro a mulher. Tinha pernas
longas e cabelos louros, com a pele num tom levemente dourado. O tipo de
mulher que me faz duvidar de que todos os humanos pertençam à mesma
espécie. Parecia um puro-sangue. Eu já tinha visto mulheres como aquela
algumas vezes, costumavam subir a colina do castelo carregando crianças
pequenas que pareciam ter saído de um catálogo de moda e, quando
entravam no café, suas vozes eram claras como cristal e despretensiosas
ao perguntarem: “Harry, querido, você quer um café? Quer que eu pergunte
se fazem macchiato?” Aquela era, sem dúvida, uma mulher macchiato. Tudo nela exalava dinheiro, privilégios e uma vida que parecia sair das páginas de uma revista chique.
Então olhei a moça mais de perto e
concluí que ela a) era a mulher na fotografia de esqui de Will e b)
parecia muito, muito desconfortável.
Ela beijou Will no rosto e depois
recuou, sorrindo desajeitadamente. Usava um colete marrom de pele de
carneiro, o tipo de coisa que faria com que eu parecesse o Abominável
Homem das Neves, e, em volta do pescoço, uma echarpe de cashmere
cinza-clara, na qual começou a mexer nervosamente, como se não
conseguisse decidir se tiraria ou não.
— Você parece bem — disse a mulher para ele. — Realmente. Você... deixou o cabelo crescer um pouco.
Will não falou nada. Ficou só
olhando para ela, sua expressão mais indecifrável do que nunca. Senti-me
ligeiramente grata por não ser eu a pessoa que era olhada daquele
jeito.
— Cadeira nova, hein? — O homem deu
um tapinha nas costas da cadeira de Will, o queixo contraído e a boca
voltada para baixo, em sinal de aprovação, como se admirasse um carro
esporte de última linha. — É... bem bacana. Muito... high tech.
Fiquei sem saber o que fazer.
Permaneci ali por um momento, trocando o peso do corpo de um pé para
outro, até a voz de Will romper o silêncio.
— Louisa, pode colocar um pouco mais de lenha na lareira? Acho que é preciso aumentar um pouco o fogo.
Foi a primeira vez que ele pronunciou meu nome de batismo.
— Claro — concordei.
Ocupei-me em atiçar o fogo e vasculhei o cesto em busca de toras do tamanho certo.
— Meu Deus, lá fora está muito frio — disse a mulher. — É ótimo ter uma boa lareira acesa.
Abri a porta do queimador, cutucando as toras incandescentes com o atiçador.
— Aqui está uns bons graus mais frio do que em Londres.
— É, com certeza — concordou o homem.
— Estou querendo comprar um
queimador desse tipo para a minha casa. Parece que é mais eficiente do
que uma lareira comum. — Alicia inclinou-se um pouco para examinar o
queimador, como se nunca tivesse visto um antes.
— É, ouvi dizer — disse o homem.
— Preciso ver isso. É uma dessas coisas que você quer fazer e depois... — calou-se.
— O café está delicioso — acrescentou ela, após uma pausa.
— Então... o que tem feito, Will? — A voz do homem tinha uma espécie de alegria forçada.
— Pouca coisa, por incrível que pareça.
— Mas a fisioterapia e tal. Está indo bem? Alguma... melhora?
— Rupert, não acredito que eu volte a esquiar tão cedo — disse Will, com a voz transbordando de sarcasmo.
Quase sorri para mim mesma. Esse era
o Will que eu conhecia. Comecei a passar a escova para retirar as
cinzas do meio do aquecedor. Tive a impressão de que todos me olhavam. O
silêncio pareceu carregado. Ponderei por um instante se a etiqueta de
minha blusa de tricô estava para fora e lutei contra a urgência de
conferir.
— Então... — disse Will, enfim. — A que devo o prazer desta visita? Depois de... oito meses?
— Ah, eu sei. Desculpe. Andei...
andei terrivelmente ocupada. Tenho um novo emprego em Chelsea. Sou
gerente da loja de Sasha Goldstein. Lembra-se dela? Tenho trabalhado
muito nos fins de semana também. A loja fica lotada aos sábados. É muito
difícil arrumar tempo livre. — A voz de Alicia tinha ficado frágil. —
Liguei umas vezes. Sua mãe lhe disse?
— As coisas têm estado um pouco
complicadas nos Lewins. Você... você sabe como é, Will. Temos um novo
sócio. Um camarada de Nova York. Bains. Dan Bains. Chegou a conhecê-lo?
— Não.
— O maldito homem parece trabalhar
vinte e quatro horas por dia e espera que todo mundo faça o mesmo. —
Dava para escutar o alívio do homem por achar um assunto a respeito do
qual ele estava confortável. — Você conhece a velha ética de trabalho
ianque: nada mais de almoços demorados, nada de piadas sujas... Will,
vou lhe contar. Até a atmosfera do lugar mudou.
— É mesmo?
— Oh, céus, é. Presenteísmo em larga escala. Às vezes, eu sinto que nem posso me levantar da cadeira.
Todo o ar da sala pareceu ter sido sugado de repente. Alguém tossiu.
Levantei-me e limpei as mãos na calça jeans.
— Eu vou... estou indo pegar mais lenha — murmurei, na direção de Will.
Peguei o cesto e escapuli.
O ar estava enregelante, mas me
demorei do lado de fora, matando tempo enquanto escolhia pedaços de
madeira. Achava que era melhor perder um dedo para o congelamento do que
voltar para aquela sala. Mas estava frio demais e o meu indicador, que
uso para costurar, começou a ficar azulado e enfim precisei admitir a
derrota.
Arrastei a lenha o mais lentamente
possível, entrando no anexo, e voltei devagar pelo corredor. Ao me
aproximar da sala, ouvi a voz da mulher escapando pela porta levemente
aberta.
— Na verdade, Will, há outro motivo para virmos aqui — dizia ela. — Nós... temos uma novidade.
Vacilei do lado de fora da porta, abraçada ao cesto de lenha.
— Achei... quer dizer, nós achamos... que... você tinha o direito de saber... mas é o seguinte. Rupert e eu vamos nos casar.
Fiquei totalmente imóvel, calculando se podia dar meia-volta sem ser ouvida.
A mulher continuou de maneira pouco convincente:
— Olha, sei que deve ser um pouco
chocante para você. Na verdade, foi um choque também para mim. Nós...
isso... bem, as coisas só começaram muito depois que...
Meus braços começaram a doer. Olhei para baixo, em direção ao cesto, tentando decidir o que fazer.
— Bom, você sabe que você e eu... nós...
Outro silêncio pesado.
— Will, por favor, diga alguma coisa.
— Parabéns — disse ele, por fim.
— Sei o que você está pensando. Mas
nenhum de nós esperava que isso fosse acontecer. De verdade. Durante um
tempo enorme fomos apenas amigos. Amigos que estavam preocupados com
você. É que Rupert me deu o apoio mais incrível do mundo depois do seu
acidente...
— Que generoso.
— Por favor, não fique assim. Isso é
tão esquisito. Eu estava completamente apavorada só de pensar em contar
para você. Nós dois estávamos.
— Evidentemente — disse Will, sem inflexão na voz.
A voz de Rupert os interrompeu.
— Olha, só estamos contando porque
nós dois nos importamos com você. Não queríamos que você soubesse por
outra pessoa. Mas a vida continua. Você sabe. Faz dois anos, afinal de
contas.
Fez-se silêncio. Percebi que eu não
queria ouvir mais nada e fui me afastando devagar da porta, grunhindo
baixo com o esforço. Porém, quando a voz de Rupert voltou, veio em um
volume tão maior que eu ainda podia ouvi-lo.
— Vamos lá, cara. Eu sei que deve
ser muitíssimo difícil... tudo isso. Mas, se você se importa com Lissa,
deve querer que ela tenha uma vida bacana.
— Diga alguma coisa, Will. Por favor.
Eu podia imaginar a cara dele. Eu
podia ver aquele olhar que ele fazia, ao mesmo tempo inescrutável e
carregado de certo desdém frio.
— Parabéns — disse Will, finalmente. — Tenho certeza de que serão muito felizes.
Alicia começou a dizer alguma coisa (algo que não entendi) e foi interrompida por Rupert.
— Vamos, Lissa. Acho que devemos ir.
Will, não viemos aqui esperando a sua bênção. Foi uma gentileza. Lissa
pensou... bem, quer dizer, nós dois apenas pensamos... que você devia
saber. Desculpe, meu velho. Eu... eu espero que as coisas melhorem para
você e que você mantenha contato quando... você sabe... quando a poeira
baixar um pouco.
Ouvi passos e inclinei-me sobre o cesto de lenha, como se tivesse acabado de voltar.
Ouvi-os no corredor e então Alicia
apareceu na minha frente. Seus olhos estavam vermelhos, como se ela
estivesse prestes a chorar.
— Posso usar o banheiro? — perguntou, com a voz embargada e emocionada.
Levantei o dedo devagar e apontei, muda, a direção.
Então, ela me olhou de maneira dura e
percebi que o que eu sentia devia estar estampado em minha cara. Nunca
fui muito boa em esconder meus sentimentos.
— Sei o que você está pensando —
disse ela, após uma pausa. — Mas eu tentei. Tentei mesmo. Durante meses.
E ele apenas me afastava. — O maxilar dela estava rígido, a expressão
estranhamente furiosa. — Ele realmente não me queria aqui. Deixou isso
bem claro.
Parecia esperar que eu dissesse alguma coisa.
— Não é realmente da minha conta — falei, por fim.
Nós duas ficamos nos encarando.
— Sabe, você só pode ajudar alguém que aceita ajuda — disse ela.
E então ela se foi.
Esperei alguns minutos, ouvi o
barulho do carro deles saindo pela passagem de veículos e então entrei
na cozinha. Fiquei por lá e esquentei água na chaleira, ainda que não
quisesse tomar chá. Folheei uma revista que já tinha lido. Finalmente,
entrei de volta no corredor e, com um grunhido, peguei o cesto de lenha,
arrastando-o para a sala de estar, batendo com o objeto delicadamente
na porta antes de entrar, para que Will soubesse que eu estava chegando.
— Estava pensando se você gostaria que eu... — comecei.
Não havia ninguém lá.
A sala estava vazia.
Foi aí que ouvi o estrépito.
Lancei-me em direção ao corredor bem a tempo de ouvir outro barulho,
seguido pelo som de vidro se estilhaçando. Estava vindo do quarto de
Will.
Oh, Deus, permita que ele não tenha se machucado. Entrei em pânico, a recomendação da Sra. Traynor girando em minha cabeça. Deixei-o sozinho por mais de quinze minutos.
Apressei-me pelo corredor, deslizei
até parar na porta, onde fiquei, as duas mãos segurando o batente. Will
estava no meio do quarto, aprumado em sua cadeira de rodas, com uma
bengala equilibrada sobre os braços da cadeira, de modo que o bastão se
projetava uns vinte centímetros à esquerda: uma lança de justa. Não
havia mais um único porta-retratos nas compridas prateleiras, as
molduras caras jaziam despedaçadas por todo o chão, o tapete cravejado
de reluzentes cacos de vidro. Seu colo estava pulverizado com pedaços de
vidro e molduras de madeira quebradas. Absorvi aquela cena de
destruição, sentindo meu coração vagarosamente reduzir devagar o ritmo à
medida que eu compreendia que ele não estava ferido. Will respirava
pesadamente, como se aquilo que acabara de fazer tivesse sido um grande
esforço para ele.
A cadeira voltou-se em minha
direção, triturando de leve os vidros no chão. Seus olhos encontraram os
meus. Eles estavam infinitamente cansados. E me desafiavam a oferecer
compaixão.
Olhei para baixo, em direção ao colo
de Will, depois para o chão a seu redor. Eu conseguia apenas distinguir
a foto dele com Alicia, cujo rosto agora estava oculto por uma moldura
de prata dobrada, em meio a outras vítimas.
Engoli em seco examinando a cena, e, aos poucos, levantei os olhos para os dele.
Foram os segundos mais longos que já tive.
— O pneu dessa coisa fura? —
perguntei, por fim, apontando com a cabeça para a cadeira de rodas. —
Porque não tenho a menor ideia de onde posso colocar um macaco para
levantá-la.
Ele arregalou os olhos. Por um
instante, pensei que eu realmente tivesse estragado tudo. Mas um mínimo
lampejo de sorriso passou pelo rosto dele.
— Olha, não se mexa. Vou buscar o aspirador — falei.
Escutei a bengala cair no chão. Quando saí da sala, acho que ouvi um pedido de desculpas.
* * *
O Kings Head ficava sempre cheio nas
tardes de quinta e naquele canto da pequena sala ele estava mais
agitado ainda. Sentei-me espremida entre Patrick e um homem – cujo nome
acho que era Rutter, e que olhava de vez em quando para a decoração
composta por arreios e selas de cavalo pendurados nas vigas de carvalho
acima da minha cabeça e para as fotos do castelo que as pontuavam – e
tentei aparentar estar vagamente interessada na conversa ao redor, que
parecia versar principalmente sobre taxas de gordura corporal e
quantidade de carboidratos.
Sempre achei que as reuniões
quinzenais dos Tratores do Triatlo de Hailsbury deviam ser o pesadelo de
um dono de pub. Só eu estava consumindo bebida alcoólica e meu
solitário pacote de salgadinhos estava amassado e vazio na mesa. Todos
bebericavam água mineral ou conferiam a quantidade de adoçante de suas
Diet Cokes.
Quando finalmente pediam comida, não
se permitiam o luxo de um molho de salada que não fosse light sobre a
folha de alface, ou um pedaço de frango que ainda ostentasse a pele. Eu
costumava pedir batata frita só para poder ver todos fingindo que não
queriam uma.
— Phil perdeu o fôlego aos sessenta
quilômetros. Disse que realmente ouviu vozes. Os pés pesavam como
chumbo. Ficou com aquela cara de fantasma, sabe?
— Comprei aqueles tênis japoneses com balanceamento sob medida. Com eles, reduzi em quinze minutos meu tempo nas 10 milhas.
— Não viaje com uma capa de bicicleta flexível. A bicicleta de Nigel chegou ao campo de Triatlo parecendo um cabide enferrujado.
Eu não podia dizer que gostava dos
encontros dos Tratores do Triatlo mas, com minhas horas a mais de
trabalho e os horários dos treinos de Patrick, aquela era uma das raras
oportunidades em que conseguíamos nos ver. Ele sentou-se ao meu lado,
vestindo short sobre as coxas musculosas apesar do frio intenso lá fora.
Era uma questão de honra que os sócios do clube usassem o mínimo
possível de roupa. Os homens eram magros e sarados, ostentavam camadas
sobrepostas de roupas esportivas obscuras e caras, que garantiam
propriedades extras de “palitice” ou de peso corporal mais leve que o
ar. Eles tinham nomes como Scud e Trig e alongavam uns aos outros,
mostrando machucados ou alegando crescimento muscular. As garotas não
usavam maquiagem e tinham a bendita aparência de quem não pensa em mais
nada que não seja praticar jogging por quilômetros em condições
glaciais. Olhavam para mim com uma leve repugnância (ou talvez até mesmo
com incompreensão), certamente tentando calcular minha massa gorda e
minha massa magra e considerando que a proporção estava abaixo das
expectativas.
— Foi horrível — comecei a contar para Patrick, me perguntando se poderia pedir cheesecake sem que todos me lançassem um Olhar Mortal. — A namorada com o melhor amigo dele.
— Você não pode culpá-la — disse ele. — Ou vai me dizer que ia continuar comigo se eu ficasse paralisado do pescoço para baixo?
— Claro que ia.
— Não, não ia. E nem eu esperaria isso de você.
— Pois eu ia.
— Mas eu não ia querer. Não ia querer que uma pessoa ficasse comigo por pena.
— Mas quem disse que seria por pena? Por dentro, você seria a mesma pessoa.
— Não, não seria. Não seria a mesma
pessoa de maneira alguma. — Ele franziu o nariz. — Eu não ia querer
viver. Depender dos outros para qualquer coisa. Ter estranhos limpando o
meu traseiro...
Um homem de cabeça raspada se enfiou entre nós dois.
— Pat, você experimentou aquela nova
bebida em gel? — perguntou. — Na semana passada, uma delas explodiu na
minha mochila. Nunca vi nada igual.
— Não sei se experimentei, Trig. Para mim basta uma banana e um Luco zade todos os dias.
— Dazzer tomou uma Diet Coke quando
participou do Norseman Xtreme. Passou mal a novecentos metros de altura.
Meu Deus, como nós rimos.
Abri um leve sorriso.
O homem de cabeça raspada sumiu e Patrick voltou a falar comigo, aparentemente ainda ponderando sobre o destino de Will.
— Meu Deus. Pense em tudo que não
poderia mais fazer... — Balançou a cabeça. — Nada mais de corrida, nada
mais de andar de bicicleta. — Olhou para mim como se tivesse acabado de
lhe ocorrer. — Nada de sexo.
— Claro que dá para fazer sexo. Só que a mulher tem de ficar por cima.
— Ficaríamos fodidos, então.
— Engraçadinho.
— Além do mais, se você fica paralítico do pescoço para baixo, imagino que... hum... o equipamento não deve funcionar direito.
Pensei em Alicia. Eu tentei, ela disse. Tentei mesmo. Durante meses.
— Tenho certeza de que funciona com algumas pessoas. De todo modo, deve ter um jeito para isso, se você... usar a imaginação.
— Ah. — Patrick deu um golinho na
água. — Você precisa perguntar para ele amanhã. Olha, você disse que ele
é horrível. Talvez ele já fosse assim antes do acidente. Talvez esse
seja o verdadeiro motivo para ela ter terminado o relacionamento. Já
pensou nisso?
— Não sei... — Pensei na foto. — Eles pareciam tão felizes juntos.
Mas o que prova uma foto? Eu tinha
uma num porta-retratos em casa, na qual eu estava sorrindo para Patrick
de maneira radiante, como se ele tivesse acabado de me salvar de um
prédio em chamas, quando na verdade eu tinha acabado de dizer que ele
era um “completo idiota” e ele tinha reagido com um enérgico “ah, não
enche!”.
Patrick perdeu o interesse pelo tema.
— Ei, Jim... Jim, já viu a nova bicicleta superleve? É boa?
Deixei que ele mudasse de assunto,
e fiquei pensando no que Alicia tinha dito. Eu podia imaginar muito bem
Will afastando-a. Mas, certamente, se você ama alguém, é sua função
ficar com ele? Para ajudar na depressão? Na doença e na saúde e tal?
— Mais uma bebida?
— Uma vodca com tônica. Tônica light — acrescentei, quando ele franziu o cenho.
Patrick deu de ombros e foi em direção ao bar.
Comecei a me sentir meio culpada
pela maneira como estávamos falando do meu patrão. Ainda mais quando
percebi que ele provavelmente suportava aquela situação o tempo todo.
Era quase impossível não especular sobre os aspectos mais íntimos de sua
vida. Eu me desliguei do assunto. Havia uma conversa sobre um fim de
semana de treino na Espanha. Eu ouvia meio distraída, até que Patrick
reapareceu do meu lado e me cutucou.
— Já pensou?
— No quê?
— Fim de semana na Espanha. Em vez
das férias na Grécia. Você pode ficar de pernas para o ar na piscina se
não gostar do passeio de sessenta quilômetros de bicicleta. Podemos
conseguir voos baratos. Seis semanas. Agora que você está nadando em
dinheiro...
Pensei na Sra. Traynor.
— Não sei... não sei se eles vão gostar que eu tire férias tão cedo.
— Você se incomoda se eu for, então? Adoro a ideia de treinar na altitude. Pretendo participar do maior.
— Do maior o quê?
— Triatlo. O Norseman Xtreme. Cem
quilômetros de bicicleta, cinquenta a pé, depois um maravilhoso e longo
nado nos mares nórdicos com temperaturas abaixo de zero.
O Norseman era citado com respeito:
os que tinham participado exibiam seus machucados como se fossem
veteranos de uma guerra distante e especialmente brutal.
Patrick estava quase estalando os
lábios com a expectativa. Olhei para meu namorado e me perguntei se ele
era um alienígena. Pensei por um instante que eu gostava mais dele na
época em que trabalhava em televendas e não conseguia passar por um
posto de gasolina sem fazer um estoque de barras de chocolates Mars.
— Você vai participar?
— Por que não? Nunca estive tão em forma.
Pensei em todos aqueles treinos
extra, as infindáveis conversas sobre peso e distância, preparo físico e
resistência. Era difícil conseguir a atenção de Patrick durante a maior
parte do tempo naqueles dias.
— Você podia ir comigo — disse ele, embora nós dois soubéssemos que ele não acreditava no que dizia.
— É melhor você ir sozinho — respondi. — Claro. Vá em frente — insisti.
E pedi o cheesecake.
* * *
Se eu achava que os acontecimentos do dia anterior poderiam quebrar o gelo na Granta House, estava enganada.
Cumprimentei Will com um largo sorriso e um animado “oi”, e ele nem sequer se incomodou em tirar os olhos da janela.
— Não está num bom dia — murmurou Nathan, vestindo o casaco para sair.
Era uma manhã de tempo muito ruim,
com nuvens baixas e uma chuva batendo sem piedade nas janelas, e estava
difícil de imaginar que o sol voltaria a brilhar em algum momento. Até
mesmo eu ficava carrancuda num dia como aquele. Portanto, não era
surpresa que Will estivesse pior. Comecei a me ocupar das tarefas
matinais, repetindo para mim mesma o tempo todo que nada daquilo
importava. Você não precisa gostar do seu patrão, não é? Um monte de gente não gosta. Pensei
no chefe de Treena, um sujeito de cara fechada, divorciado várias
vezes, que controlava a quantidade de vezes que ela ia ao banheiro e era
conhecido por perguntar de maneira áspera se Trena não achava que tinha
excesso de atividade renal. Além do mais, eu já completara duas semanas
de trabalho. O que significava que me faltavam apenas cinco meses e
treze dias para sair.
As fotos estavam cuidadosamente
empilhadas na prateleira de baixo da estante, onde eu as havia colocado
no dia anterior, e então, agachada, comecei a retirá-las dos
porta-retratos, separando-as, determinando quais molduras eu seria capaz
de consertar. Sou muito boa em consertar coisas. Além disso, pensava
que poderia ser uma forma bastante produtiva de passar o tempo.
Estava fazendo isso havia uns dez
minutos quando o zumbido discreto da cadeira de rodas motorizada me
alertou da chegada de Will.
Ele ficou à porta, olhando para mim.
Havia manchas escuras sob seus olhos. Nathan me dissera que, às vezes,
Will não conseguia dormir. Eu não quis pensar em como deveria ser
isso, ficar preso numa cama, tendo por companhia só pensamentos ruins
pela madrugada a fora.
— Acho que posso ver se consigo consertar algumas dessas molduras — falei, segurando uma. Era a foto dele fazendo bungee jump. Tentei parecer animada. Ele precisa de alguém feliz, alguém para cima.
— Por quê?
Pestanejei.
— Bom... acho que algumas dessas
podem ser salvas. Trouxe um pouco de cola de madeira, se estiver tudo
bem para você que eu mexa nelas. Se quiser substituí-las, posso ir ao
centro da cidade no horário do almoço e ver se encontro outros
porta-retratos. Ou podíamos ir os dois, se você quiser dar uma volta...
— Quem mandou você começar a consertar?
Ele me encarava firmemente.
Oh-oh, pensei.
— Eu... eu só estava querendo ajudar.
— Você queria consertar o que eu fiz ontem.
— Eu...
— Sabe de uma coisa, Louisa? Seria
ótimo se alguém, por uma vez, prestasse atenção ao que eu quero.
Destruir essas fotos não foi um acidente. Não foi uma tentativa de
decoração radical de interiores. Eu fiz isso porque realmente não quero
vê-las.
Levantei-me.
— Desculpe. Não pensei que...
— Você achou que sabia. Todo mundo acha que sabe do que eu preciso. Vamos colocar as malditas fotos juntas de novo. Vamos dar ao pobre aleijado alguma coisa para olhar. Não
quero ter as porcarias dessas fotos me encarando toda vez que estiver
na cama até alguém chegar e me tirar de lá. Certo? Você acha que é capaz
de entender isso?
Engoli em seco.
— Eu não ia consertar aquela com Alicia... não sou tão idiota assim... só pensei que daqui a pouco você poderia...
— Oh, Céus... — Ele virou as costas
se afastando, a voz sarcástica. — Por favor, me poupe de psicoterapia.
Continue lendo suas revistas de fofoca ou seja lá o que você faça quando
não está preparando chá.
Minhas bochechas ficaram em chamas.
Observei-o manobrar a cadeira no corredor estreito e minha voz saiu
antes mesmo de eu saber o que estava fazendo.
— Você não precisa se comportar como um babaca.
As palavras pairaram no ar.
A cadeira de rodas parou. Houve uma
longa pausa, e então ele deu marcha a ré e fez a volta devagar, até
poder me encarar, sua mão no pequeno joystick.
— O quê?
Olhei para ele, o coração batendo acelerado.
— Seus amigos receberam um
tratamento de merda. Ótimo. Eles provavelmente mereciam. Mas eu estou
aqui todos os dias apenas tentando fazer meu trabalho melhor que posso.
Por isso, eu ficaria muito satisfeita se você não fizesse da minha vida
algo tão desagradável, ao contrário do que você faz com a vida de todo
mundo.
Will arregalou um pouco os olhos. Passou-se um instante até ele falar de novo.
— E se eu disser que não quero mais você aqui?
— Não fui contratada por você. Fui
contratada pela sua mãe. E, a não ser que ela não me queira mais aqui,
vou continuar. Não porque eu me importe particularmente com você, ou com
este trabalho idiota, ou por querer mudar a sua vida de alguma maneira,
mas porque preciso do dinheiro. Certo? Eu realmente preciso desse
dinheiro.
Aparentemente, a expressão de Will
Traynor não se alterou muito, mas acho que vi espanto ali, como se não
estivesse acostumado a ter alguém discordando dele.
Ai, droga, pensei, como se a verdade do que eu tinha acabado de fazer começasse a emergir. Eu realmente estraguei tudo dessa vez.
Mas Will apenas ficou me olhando por
um tempo e, como eu não desviei o olhar, deu um pequeno suspiro, como
se quisesse dizer algo desagradável.
— Muito bem — disse ele, e virou-se na cadeira de rodas. — Apenas coloque as fotos na gaveta de baixo, sim? Todas.
E, com um zunido baixo, foi embora.
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