sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Capítulo 27 - Como eu era antes de você

PROMOTORIA DO REINO
Aos Cuidados: Diretor da Promotoria Pública
Documento Confidencial
Referência: William John Traynor
9/4/2009
Os detetives já ouviram o depoimento das pessoas envolvidas no caso acima e anexo arquivos com todos os documentos pertinentes.
O cerne da investigação é o Sr. William Traynor, de trinta e cinco anos, ex-sócio da empresa Madingley Lewins, com sede na City de Londres. O Sr. Traynor sofreu uma lesão na coluna, num acidente de trânsito em 2007 e foi diagnosticado como tetraplégico de C5/C6, podendo movimentar com grande limitação apenas um braço, necessitando de cuidados contínuos. Seu histórico médico está anexado.
Os documentos mostram que o Sr. Traynor teve dificuldade para regularizar seus documentos pouco antes de ir para a Suíça. Recebemos um testamento assinado e testemunhado por seu advogado, Sr. Michael Lawler, assim como cópias de todas as informações relevantes sobre as consultas que fez de antemão na clínica.
A família e os amigos do Sr. Traynor foram contrários à decisão dele de dar fim à vida prematuramente, mas, considerando seu histórico médico e tentativas anteriores de suicídio (descritas nos documentos hospitalares anexados), além de seu nível intelectual e sua força de vontade, não conseguiram convencê-lo a desistir, mesmo num longo prazo de seis meses acertado com essa única finalidade.
Note-se que uma das beneficiadas no testamento do Sr. Traynor é sua cuidadora remunerada, Srta. Louisa Clark. Devido ao pequeno período em que ela esteve com o Sr. Traynor, colocam-se algumas questões sobre a generosidade dele para com ela, mas todos os envolvidos acatam os desejos expressados pelo Sr. Traynor, que atendem às normas legais. Foram feitas diversas e demoradas entrevistas e a polícia comprovou os esforços dela para dissuadir o Sr. Traynor de realizar seu intento. (Por favor, consulte o “calendário de aventuras” incluído nas provas.)
É preciso destacar também que a Sra. Camilla Traynor, mãe de Willian Traynor, que é uma respeitada magistrada há anos, se resignou com a situação, em vista do destaque que o caso ganhou. É sabido que ela e o Sr. Traynor se separaram pouco após a morte do filho.
Embora a Promotoria do Reino não incentive o suicídio assistido feito em clínicas no exterior, e a julgar pelas provas coletadas, fica claro que os procedimentos da família e dos cuidadores do Sr. Traynor atendem às atuais diretrizes relativas ao suicídio assistido e ao provável processo das pessoas próximas ao falecido.
1. O Sr. Traynor foi considerado apto e manifestou o desejo “voluntário, claro, definido e informado” de tomar tal decisão.
2. Não há provas de deficiência mental, ou de qualquer tipo de coerção.
3. O Sr. Traynor deu provas inequívocas do desejo de se suicidar.
4. A deficiência física do Sr. Traynor era grave e incurável.
5. Os acompanhantes do Sr. Traynor tiveram pouca participação e influência.
6. Os acompanhantes do Sr. Traynor podem ser considerados relutantes em relação ao desejo determinado da vítima.
7. Todos os envolvidos deram toda a assistência à polícia na investigação do caso.
Sendo assim, considerando a boa reputação de todos os envolvidos e a prova anexa, concluo que não é do interesse público iniciar um processo.
Sugiro que, caso seja feita qualquer declaração pública com essa finalidade, o Diretor da Promotoria deixe claro que o caso Traynor não tem qualquer precedente nos anais, e que a Promotoria do Reino continuará a avaliar cada caso conforme seus méritos e circunstâncias.
Atenciosamente,
Sheilagh Mackinnon
Promotoria do Reino

Epílogo
Eu estava apenas seguindo as instruções.
Sentei-me sob a lona verde-escura do café, olhando a Rue de Francs Bourgeois ao longo de seu comprimento, o sol tépido de um outono parisiense aquecendo um lado do rosto. Em frente a mim, o garçom, com sua eficiência gálica, pôs sobre a mesa um prato de croissants e uma xícara grande de café. Alguns metros distante na rua, dois ciclistas pararam perto do sinal de trânsito e ficaram conversando. Um deles tinha uma mochila azul com duas grandes baguetes enfiadas ali dentro num ângulo estranho. O dia, parado e pesado, cheirava a café, pães e tinha o toque acre do cigarro de alguém.
Terminei a carta para Treena (ela disse que gostaria de telefonar, mas não podia bancar os custos de uma a ligação internacional). Tinha terminado Contabilidade II como a melhor aluna do curso e arranjara um novo namorado, Sundeep, que estava em dúvida se trabalhava na empresa de importação e exportação do pai perto de Heathrow e tinha um gosto ainda pior do que o dela para música. Thomas estava muito animado por passar de ano na escola. Papai continuava bem satisfeito no trabalho e mandava lembranças. Treena estava certa de que mamãe me perdoaria em breve. Recebeu sua cartacom certezaescreveuE leu. Dê um tempo a ela.
Dei um gole no café e por um instante fui transportada para Renfrew Road e um lar que parecia a milhares de quilômetros de distância. Apertei os olhos em direção ao sol baixo, vendo uma mulher de óculos escuros ajeitar os cabelos no espelho de uma vitrine.
Apertou os lábios diante do reflexo, empertigou-se um pouco e então seguiu seu caminho rua abaixo.
Coloquei a xícara sobre o pires, respirei fundo e peguei a outra carta, que eu levava para todos os cantos há quase seis semanas.
Na frente do envelope estava escrito, em letras maiúsculas digitadas, sob o meu nome:

PARA SER LIDO EXCLUSIVAMENTE NO CAFÉ MARQUIS, RUE DES FRANCS BOURGEOIS, COM CROISSANTS E UMA XÍCARA GRANDE DE CAFÉ CRÈME.

Ri até mesmo quando chorei, ao ler o envelope pela primeira vez. Era bem típico de Will – autoritário até o último momento.
O garçom, um homem alto e ágil, com uma dúzia de pedaços de papel saindo do bolso do avental, virou-se e olhou para mim. Tudo certo? Perguntavam suas sobrancelhas levantadas.
— Sim — respondi. Depois, mais segura, repeti: — Oui.
A carta tinha sido impressa. Reconheci a letra por uma carta que ele tinha me mandado há muito tempo. Recostei-me na cadeira e comecei a ler.

Clark,
Quando você ler esta carta, terão se passado algumas semanas (mesmo com a sua recém-adquirida capacidade de organização, não acredito que esteja em Paris antes do início de setembro). Espero que o café esteja saboroso e forte, os croissants frescos e o tempo ainda ensolarado o bastante para que você se sente na calçada numa daquelas cadeiras de ferro que nunca estão bem firmes no chão. O Marquis não é ruim. O filé também é bom, se você quiser voltar no almoço. E se olhar a rua, à esquerda, verá o L’Artisan Parfumeur onde, depois de ler esta carta, você deveria experimentar um perfume que eles chamam de algo como Papillons Extreme (não me lembro direito do nome). Sempre achei que ia ficar ótimo em você.
Certo, as recomendações acabaram. Gostaria de dizer algumas coisas e as teria dito pessoalmente, mas: a) você se emocionaria e b) você não me deixaria dizer tudo. Sempre falou demais.
Portanto, eis aqui: o cheque que você recebeu de Michael Lawler no envelope anterior não é a quantia total, apenas um pequeno presente para ajudá-la nas primeiras semanas desempregada e para ir a Paris.
Quando voltar para a Inglaterra, leve esta carta para Michael, no escritório dele em Londres, e ele vai lhe entregar os documentos necessários para você acessar a conta que foi aberta, a meu pedido, no seu nome. Essa conta tem o suficiente para você comprar um bom lugar para morar, pagar seu curso e as despesas enquanto estiver estudando em tempo integral.
Meus pais serão comunicados de tudo. Espero que isso, e os serviços jurídicos de Michael Lawler, garantam que não haverá a menor dificuldade possível.
Clark, quase consigo ouvir daqui você hiperventilar. Não entre em pânico, nem tente desistir – isso não é o suficiente para você sentar o seu traseiro pelo resto da vida. Mas pode comprar a sua liberdade, tanto daquela claustrofóbica cidadezinha que nós chamamos de lar quanto das escolhas que você foi obrigada a fazer até agora.
Não estou lhe dando dinheiro porque quero que fique saudosa, em dívida em relação a mim ou para que isso seja uma espécie de maldita lembrança.
Estou lhe dando isso porque poucas coisas ainda me fazem feliz, e você é uma delas.
Sei que me conhecer lhe causou sofrimento e tristeza e espero que um dia, quando estiver menos zangada e chateada comigo, veja não só que eu só podia ter feito o que fiz, mas também que isso lhe ajudará a ter uma vida realmente boa,melhor do que se não tivesse me conhecido.
Durante algum tempo, você vai se sentir pouco à vontade em seu novo mundo. É sempre estranho ser arrancada de sua zona de conforto. Mas espero que fique animada também. Sua expressão, quando voltou da aula de mergulho naquele dia, me disse tudo: você tem ambição, Clark. É destemida. Mas escondeu essas qualidades, como quase todo mundo.
Não estou lhe dizendo para saltar de prédios altos, nadar com baleias ou algo assim (embora, no fundo, gostaria que você fizesse essas coisas), mas para viver corajosamente. Ir em frente. Não se acomodar. Usar aquelas meias listradas com orgulho. E se quiser mesmo se acomodar com algum sujeito ridículo, garanta que um pouco de tudo isso fique guardado em algum lugar. Saber que você ainda tem possibilidades é um luxo. Saber que lhe dei algumas me dá certo alívio.
É isso. Você está marcada no meu coração, Clark. Desde o dia em que chegou, com suas roupas ridículas, suas piadas ruins e sua total incapacidade de disfarçar o que sente. Você mudou a minha vida muito mais do que esse dinheiro vai mudar a sua.
Não pense muito em mim. Não quero que você fique toda sentimental. Apenas viva bem.
Apenas viva.
Com amor,
Will

Uma lágrima caiu sobre a mesa bamba diante de mim. Sequei-a com a mão e pousei a carta na mesa. Levei alguns minutos para enxergar direito.
— Mais um café? — perguntou o garçom que ressurgiu à minha frente.
Pisquei para ele. Era mais jovem do que pensei e tinha perdido o leve ar de altivez. Talvez os garçons parisienses fossem treinados para serem gentis com mulheres chorosas em seus cafés.
— Talvez... um conhaque? — Ele deu uma olhada rápida na carta e sorriu como se compreendesse.
— Não — respondi, retribuindo o sorriso. — Obrigada. Tenho... tenho que fazer umas coisas.
Paguei a conta e enfiei com cuidado a carta no bolso.
Saindo de detrás da mesa, endireitei a bolsa no ombro e segui pela rua na direção da perfumaria e de toda a Paris diante de mim.

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