sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Capítulo 7 - Como eu era antes de você

A primavera chegou durante a noite, como se o inverno fosse um hóspede indesejado que de repente resolveu vestir seu casaco e desaparecer sem se despedir. Tudo ficou mais verde, as ruas foram banhadas por um sol fraco, o ar agora perfumado. O dia tinha sinais florais e acolhedores, com trinados primaveris como fundo musical.
Não notei nada disso. Tinha passado a noite na casa de Patrick. Era a primeira vez que nos víamos em uma semana devido a seu rigoroso programa de treinamento mas, após quarenta minutos imersos numa banheira com meio pacote de sais de banho, Patrick se mostrou tão cansado que mal conseguia conversar comigo. Massageei suas costas numa rara tentativa de seduzi-lo, mas ele resmungou que estava mesmo cansado demais e fez um gesto com as mãos como se me quisesse longe. Quatro horas depois, eu continuava acordada encarando o teto.
Patrick e eu nos conhecemos quando eu ainda estava no meu primeiro emprego, como estagiária no The Cutting Edge, o único salão de beleza unissex de Hailsbury. Ele entrou quando Samantha, a dona do salão, estava ocupada, e disse que queria passar máquina quatro no cabelo. Fiz o corte que ele depois descreveu como não só o pior de sua vida mas o pior de toda a História. Três meses depois, cheguei à conclusão de que gostar de mexer no meu próprio cabelo não significava necessariamente saber cortar o dos outros. Saí do salão e comecei a trabalhar com Frank.
Quando começamos a namorar, Patrick trabalhava com vendas e suas coisas preferidas eram: cerveja, chocolate artesanal, falar de esportes e sexo (fazer, não falar), nessa ordem. Uma boa noite para nós deveria incluir essas quatro coisas. Ele tinha uma aparência comum, não chegava a ser bonito; seu traseiro era maior que o meu, mas eu gostava disso. Gostava da solidez do seu corpo e de me enroscar nele. Era órfão de pai e eu admirava o jeito como ele tratava a mãe, como era protetor e solícito. E seus quatro irmãos e irmãs lembravam a série de TV “Os Waltons”. Pareciam se gostar de verdade.
Na primeira vez que saímos juntos, uma vozinha na minha cabeça disse: Este homem jamais a magoará, e nada do que tenha feito nos sete anos seguintes me fez duvidar disso.
E então, ele virou maratonista.
A barriga de Patrick não afundava mais quando eu me aninhava nele, era dura, impenetrável como uma tábua, e ele gostava de levantar a camiseta e bater com alguns objetos nela para mostrar o quão dura era. O rosto dele estava seco e desgastado devido ao tempo que passava ao ar livre. Suas coxas tinham músculos sólidos. Isso seria bem sexy caso ele quisesse fazer sexo. Mas só fazíamos umas duas vezes por mês e eu não era do tipo que pedia.
Parecia que quanto mais ele ficava em forma, mais obcecado ficava pelo próprio corpo e menos interessado em mim. Perguntei a ele algumas vezes se não gostava mais de mim e ele pareceu bem enfático.
— Você é maravilhosa — disse. — Eu só estou exausto. Mas não quero que você emagreça. Mesmo se eu juntasse os peitos de todas as garotas da academia, não daria para fazer um peito decente.
Tive vontade de perguntar de onde exatamente ele havia tirado uma equação tão complexa mas, no fundo, era uma coisa bonita de se dizer, então deixei por isso mesmo.
Eu queria me interessar pelo que ele fazia, queria mesmo. Ia às reuniões do clube de triatlo e puxava papo com as outras garotas. Mas logo percebi que eu era uma anomalia, não havia outra namorada como eu: todo mundo era solteiro ou se relacionava com alguém que também tinha um físico impressionante. Os casais incentivavam-se a malhar, passavam os fins de semana usando shorts com elásticos e carregavam nas carteiras fotos dos dois de mãos dadas completando mais uma prova de triatlo, ou exibindo medalhas, orgulhosos. Era indescritível.
— Não sei do que você está reclamando — disse minha irmã, quando lhe contei. — Depois que o Thomas nasceu, só transei uma vez.
— É? Com quem?
— Ah, um cara que entrou na floricultura querendo um Buquê de Cores Vibrantes — contou ela. — Eu só queria confirmar que ainda sabia transar.
Quando fiquei boquiaberta, ela acrescentou:
— Ah, não faça essa cara. Não foi durante o horário de trabalho. E o buquê era para um funeral. Se fosse para a esposa, claro que eu não tocaria nele nem com uma pétala.
Não é que eu fosse uma maníaca sexual; afinal, Patrick e eu já estávamos juntos havia bastante tempo. É que algum lado perverso meu começou a questionar minha capacidade de sedução.
Patrick nunca se importou com o fato de eu me vestir “criativamente”, como ele dizia. Mas, e se ele não estivesse sendo totalmente sincero sobre isso? O trabalho e toda a vida social dele agora giravam em torno do controle da carne: domá-la, reduzi-la, aprimorá-la. E se, entre todos aqueles traseiros apertados em trajes esportivos, o meu deixasse de ser atraente? E se minhas curvas, que sempre julguei agradavelmente voluptuosas, agora parecessem flácidas para o seu olhar exigente?
Esses eram os pensamentos que passavam pela minha cabeça quando a Sra. Traynor apareceu e mandou que Will e eu saíssemos de casa.
— Encomendei uma limpeza especial para a primavera, então pensei que vocês podiam aproveitar o lindo dia enquanto eles estão aqui.
Nós nos entreolhamos e Will levantou de leve as sobrancelhas.
— Isso não é exatamente uma sugestão, não é, mãe?
— Só achei que seria uma boa ideia você tomar um ar fresco — disse ela. — A rampa está pronta. Talvez, Louisa, você possa levar um pouco de chá?
Não era uma ideia totalmente descabida. O jardim estava lindo. Como se, graças ao leve aumento de temperatura, tudo tivesse de repente decidido ficar um pouco mais verde. As flores dos narcisos surgiram do nada, seus bulbos amarelados pareciam um prenúncio que mais flores viriam. Botões surgiam em galhos marrons, perpétuas abriam caminho na terra escura e lamacenta. Escancarei as portas e saímos. Will conduziu sua cadeira pelo caminho de pedras York. Ele apontou para um banco de ferro com uma almofada e fiquei ali sentada por um tempo, nossos rostos na direção do sol fraco, ouvindo as andorinhas agitarem as cercas vivas.
— O que você tem?
— Como assim?
— Está calada.
— Você disse que queria que eu ficasse quieta.
— Não tanto. Está me assustando.
— Estou bem — eu disse. E acrescentei: — É só um probleminha com meu namorado, se quer saber.
— Ah, o Corredor — disse ele.
Abri os olhos para conferir se ele estava zombando de mim.
— O que aconteceu? Vamos, conte para o tio Will.
— Não.
— Minha mãe vai manter as faxineiras lá enlouquecidas por mais uma hora, no mínimo. Vamos ter de conversar sobre alguma coisa.
Endireitei-me no banco e virei-me para ele. Sua cadeira de rodas tinha um botão de controle que elevava o assento e deixava Will no mesmo nível das outras pessoas. Ele não costumava usar isso, pois o deixava tonto com frequência, mas dessa vez usou. Eu tinha de olhar para ele.
Apertei o casaco em volta de mim e semicerrei os olhos.
— Pois então, o que quer saber?
— Há quanto tempo estão juntos? — perguntou ele.
— Pouco mais de seis anos.
Ele pareceu surpreso.
— Isso é bastante tempo.
— É, pois é — concordei.
Inclinei-me e ajeitei a manta sobre ele. O sol decepcionou, prometeu mais do que cumpriu. Pensei em Patrick, que acordara às seis e meia em ponto para sua corrida matinal. Talvez eu também devesse correr, assim nós viraríamos um daqueles casais que usam os mesmos conjuntos de lycra. Talvez eu devesse comprar uma lingerie sensual e procurar na internet dicas para apimentar o sexo. Sabia que não ia fazer nenhuma das duas coisas.
— O que ele faz?
— É personal trainer.
— Por isso ele corre.
— Por isso ele corre.
— Como ele é? Em três palavras, caso você fique constrangida.
Pensei na sua pergunta.
— Positivo. Fiel. Obcecado com quantidade de calorias.
— São sete palavras.
— Você leva quatro de graça. E como ela era?
— Quem?
— Alicia? — Olhei para ele do jeito como ele havia me olhado: direto.
Will respirou fundo e encarou um grande plátano. Seu cabelo caiu nos olhos e me contive para não colocá-los atrás da orelha.
— Linda. Sensual. Alto custo de manutenção. Incrivelmente insegura.
— Como ela pode ser insegura? — As palavras saíram da minha boca sem que eu pudesse evitar.
Ele parecia estar achando graça.
— Você não vai acreditar. Garotas como Lissa investem tanto na própria aparência que acham que só têm isso. Estou sendo injusto, na verdade. Ela tem outros dons: bom gosto para roupas e decoração. Consegue fazer qualquer coisa ficar linda.
Segurei-me para não dizer que qualquer um consegue fazer com que as coisas fiquem bonitas se possuem uma carteira tão recheada quanto uma mina de diamantes.
— Ela mudava algumas coisas de lugar em qualquer cômodo e tudo ficava completamente diferente. Nunca entendi como conseguia fazer isso. — Apontou com a cabeça para a casa. — Foi ela quem arrumou o anexo, assim que me mudei para cá.
Pensei naquela sala decorada com perfeição. E percebi que minha admiração pelo local diminuiu um pouco.
— Há quanto tempo estavam juntos?
— Oito, nove meses.
— Não é muito.
— Para mim, era.
— Como se conheceram?
— Num jantar. Num jantar terrível. E vocês?
— No salão de cabeleireiro onde eu trabalhava. Ele era meu cliente.
— Ah. Você era o algo a mais dele no fim de semana.
Acho que deixei transparecer minha expressão confusa, pois ele balançou a cabeça e disse, baixinho:
— Deixa para lá.
Podíamos ouvir o barulho de aspirador de pó vindo de dentro da casa. Eram quatro faxineiras com aventais iguais. Imaginei o que elas tinham para fazer durante duas horas naquele pequeno anexo.
— Sente falta dela?
Dava para ouvir as faxineiras falando entre elas. Alguém tinha aberto uma janela e de vez em quando o ar frio carregava suas risadas até nós.
Will parecia estar observando alguma coisa lá longe.
— Sentia. — Virou-se para mim, com uma voz neutra. — Mas tenho pensado no assunto e cheguei à conclusão de que ela e Rupert formam um belo casal.
Concordei com a cabeça.
— Eles vão dar uma festa de casamento ridícula, ter um ou dois pestinhas, como você diz, comprar uma casa no campo e daqui a cinco anos ele estará transando com a secretária — falei.
— Você deve estar certa.
Eu me entusiasmei.
— E ela vai ficar um pouco cismada com ele, sem saber direito o motivo e vai enchê-lo de críticas durante jantares horríveis, deixando os amigos constrangidos, e ele não vai querer se separar dela por temer a pensão.
Will virou-se para me olhar.
— E eles vão fazer sexo uma vez a cada mês e meio e ele vai adorar os filhos, mas não vai se esforçar o mínimo para cuidar deles. E ela vai ter um cabelo perfeito emoldurando aquela cara comprida — franzi os lábios — que jamais demonstra o que quer dizer, e vai se viciar em Pilates, ou talvez compre um cachorro ou um cavalo e acabe se apaixonando pelo instrutor de equitação. Aos quarenta, ele vai começar a praticar corrida e, talvez, compre uma Harley-Davidson que ela vai detestar; todos os dias, no escritório, ele vai olhar os rapazes mais jovens e ouvir sua conversa nos bares sobre quem eles pegaram no fim de semana ou onde foram para se divertir e, sem nunca entender como, vai se sentir um babaca.
Virei-me.
Will estava olhando fixamente para mim.
— Desculpe — falei, depois de um momento — não sei bem de onde tirei isso.
— Começo a ter um pouco de pena do Corredor.
— Ah, não foi ele que me deixou assim — exclamei. — Foram todos esses anos de trabalho no café. Lá, a gente ouve e vê todos os tipos de comportamento humano. Você não imagina o que existe.
— Por isso você nunca se casou?
Pisquei.
— Acho que sim.
Não quis dizer que na verdade nunca fui pedida em casamento.

* * *

Pode parecer que não fazíamos muita coisa. Mas, na verdade, os dias com Will eram sutilmente diferentes, variando conforme o humor dele e, mais importante, a intensidade das dores. Alguns dias, quando eu chegava, percebia pela rigidez do maxilar dele que não queria falar comigo, nem com ninguém. Assim, eu me ocupava do anexo, tentando prever o que ele ia precisar para não ter que perguntar.
As dores dele tinham causas variadas. Havia a dor pela perda muscular – apesar de toda a fisioterapia feita por Nathan, Will tinha muito menos músculos para sustentar o corpo. Havia a dor de estômago causada por problemas digestivos; a dor no ombro; a dor por infecção urinária – inevitável, apesar dos esforços de todos. Ele também tinha uma úlcera estomacal devido ao excesso de analgésicos que tomara como se fossem balinhas no início da recuperação.
De vez em quando, tinha escaras na pele por ficar sentado na mesma posição durante muito tempo. Por duas vezes, precisou ficar na cama para que as feridas cicatrizassem, mas ele detestava ficar na cama. Ficava deitado ouvindo o rádio, os olhos brilhando de raiva de tal forma que nem conseguia controlar. Will também tinha dores de cabeça. Para mim isso era efeito colateral da raiva e frustração que sentia. Ele tinha muita energia mental mas não podia usá-la para nada. Tinha de desaguar em alguma coisa.
Mas o que mais incomodava era a incessante queimação nas mãos e nos pés que não o deixava pensar em outra coisa. Eu trazia uma tigela de água gelada e mergulhava as mãos dele, ou enrolava os pés em uma flanela fria na esperança de amenizar seu desconforto. Um músculo da sua mandíbula se retesava e ficava pulsando e de vez em quando Will parecia sair do ar, como se a única forma de não sentir dor fosse deixar o próprio corpo. Surpreendentemente, eu havia me acostumado às suas necessidades físicas. Parecia injusto que, além de não poder usar ou sentir as mãos e os pés, eles ainda causassem tanto desconforto.
Apesar de tudo, ele não reclamava. Por isso levei semanas para perceber que estava sofrendo. Agora eu conseguia decifrar o cansaço em seu olhar, os silêncios, o jeito como ele parecia se refugiar dentro de si mesmo. Ele apenas pedia:
— Pode trazer água gelada, Louisa? — ou: — Acho que preciso de alguns analgésicos.
Às vezes, a dor era tanta que ele ficava pálido, de um branco pastoso. Esses eram os piores dias.
Mas nos outros dias nós nos dávamos muito bem. Ele não parecia mais mortalmente ofendido quando eu falava com ele, como no começo. Naquele dia, tive a impressão de que ele estava sem dor. Quando a Sra. Traynor veio nos avisar que as faxineiras demorariam ainda uns vinte minutos, fiz mais um chá para nós e demos outra volta vagarosa pelo jardim, Will conduzindo a cadeira pelo caminho de pedras e eu olhando minhas sapatilhas de cetim escurecerem na grama molhada.
— Interessante escolha de sapatos — observou Will.
Eram verde-esmeralda. Encontrei-as num brechó. Patrick disse que eu ficava parecendo um duende drag queen.
— Sabe, você não se veste como alguém daqui. Sempre aguardo ansioso a próxima combinação maluca de roupas com que vai aparecer.
— Como é que “alguém daqui” deveria se vestir?
Ele virou a cadeira de rodas um pouco à esquerda para evitar um galho no caminho.
— Com roupas esportivas de fleece. Ou, se for como minha mãe, com terninhos da Jaeger ou da Whistles. — Ele olhou para mim. — Então, onde você adquiriu seu gosto exótico? Morou fora?
— Não.
— Sempre morou aqui? Onde trabalhou?
— Aqui, só. — Virei-me para ele e cruzei os braços, na defensiva. — O que tem de estranho nisso?
— É uma cidade tão pequena. Tão limitada. Tudo gira em torno do castelo. — Paramos no meio do caminho e olhamos para ele, surgindo a distância em sua estranha colina que lembrava um domo, tão perfeita que parecia desenhada por uma criança. — Sempre pensei que esse é o tipo de lugar para onde as pessoas retornam quando se cansam de todo o resto. Ou quando não têm imaginação suficiente para ir para outro canto.
— Obrigada.
— Não há nada de errado nisso. Mas... céus. Não chega a ser um lugar dinâmico, não acha? Não é cheio de ideias, pessoas interessantes e oportunidades. Aqui consideram uma atitude subversiva a loja de turistas vender jogo americano com uma foto diferente que não a da miniferrovia.
Tive de rir. Na semana anterior, o jornal local tinha publicado uma reportagem exatamente com essa questão.
— Você tem vinte e seis anos, Clark. Devia estar lá fora, buscando conquistar o mundo, arrumando confusão em bares, mostrando seu estranho guarda-roupa para homens espertos...
— Estou contente aqui — disse.
— Bom, não deveria.
— Você gosta de dizer às pessoas o que elas devem fazer, não?
— Só quando estou certo — disse ele. — Pode arrumar meu copo? Não consigo alcançar.
Virei o canudinho do copo para que ele pudesse alcançá-lo mais facilmente e esperei enquanto ele bebia. As pontas das suas orelhas estavam rosadas por causa do frio.
Ele fez uma careta.
— Meu Deus, para quem vivia disso, você faz um chá horrível.
— Você está acostumado com chá lésbico — falei. — Aquele negócio de erva Lapsang souchong.
— Chá lésbico! — Ele quase se engasgou ao rir. — Bom, é melhor do que esse verniz de escada. Meu Deus. Dá para apoiar uma colher em cima.
— Quer dizer que até o meu chá é ruim. — Sentei-me no banco de frente para ele. — E o que acha de você dar palpite sobre cada coisa que eu digo ou faço, quando ninguém mais diz nada?
— Continue, Louisa Clark. Diga o que acha.
— De você?
Ele soltou um suspiro dramático.
— E eu tenho escolha?
— Você podia cortar o cabelo. Desse jeito, parece um mendigo.
— E você agora parece a minha mãe.
— Bom, você fica horrível. Podia fazer a barba, pelo menos. Essa cabeleira toda não dá coceira?
Ele me olhou de rabo de olho.
— Dá, não é? Eu sabia. Certo: rasparei tudo esta tarde.
— Ah, não.
— Sim, senhor. Você pediu a minha opinião. Pois é essa. Não precisa fazer nada, pode deixar comigo.
— E se eu não quiser?
— Eu farei de qualquer jeito. Se ficar mais comprido, daqui a pouco estarei tirando restos de comida do seu cabelo. E se isso acontecer, sinceramente, terei de processá-lo por comportamento inadequado no local de trabalho.
Ele sorriu, como se estivesse se divertindo comigo. Pode parecer um pouco triste, mas os sorrisos de Will eram tão raros que fiquei meio orgulhosa de provocar um.
— Escute, Clark. Pode me fazer um favor? — perguntou ele.
— O quê?
— Coce a minha orelha, sim? Está me deixando doido.
— Se eu coçar, vai me deixar cortar seu cabelo? Só uma aparadinha?
— Não abuse da sorte.
— Psiu. Não me deixe nervosa. Não sou muito boa com a tesoura.

* * *

Encontrei as lâminas de barbear e um pouco de creme no armário do banheiro, enfiados atrás de lenços de papel e do algodão como se não fossem usados há muito tempo. Convenci-o a entrar com a cadeira de rodas no banheiro, enchi a pia com água morna, fiz Will inclinar um pouco a cabeça e coloquei uma toalha quente em seu queixo.
— O que é isso? Você vai dar uma de barbeiro? Para que essa toalha?
— Não sei — confessei. — É assim que fazem nos filmes. Do mesmo jeito usam uma bacia de água quente e toalhas brancas quando uma mulher dá a luz.
Não consegui ver sua boca, mas seus olhos se apertaram, um pouco divertidos. Eu queria que continuassem assim. Queria que ele fosse feliz, que seu rosto perdesse aquele ar assustado e alerta. Comecei a tagarelar. Contei piadas. Cantarolei baixinho. Fiz de tudo para estender o momento antes que ele voltasse a ser sombrio.
Enrolei as mangas da minha blusa e comecei a passar o creme de barbear a partir do seu queixo, indo até as orelhas. Então hesitei ao segurar a lâmina próximo a seu rosto.
— Agora é o momento de avisar a você que até hoje só raspei pernas?
Ele fechou os olhos e recostou-se. Comecei a raspar com cuidado, tudo o que se ouvia era o barulho da lâmina quando eu a mergulhava na água da pia. Trabalhei em silêncio, estudando o rosto de Will Traynor, as rugas nos cantos da boca que pareciam prematuramente fundas para a idade dele. Raspei a costeleta e vi as cicatrizes que muito provavelmente eram do acidente. Reparei também nas olheiras escuras de noites e noites insones, na ruga entre as sobrancelhas, que indicava sua dor silenciosa. A pele emanava uma doçura cálida, o cheiro do creme de barbear e algo bem característico de Will, discreto e caro. Seu rosto começou a aparecer e percebi como devia ter sido fácil para ele seduzir alguém como Alicia.
Trabalhei devagar e com cuidado, incentivada pelo fato de ele estar calmo. Passou pela minha cabeça que o único momento em que alguém tocava nele era para algum procedimento médico ou terapêutico, então encostei os dedos de leve na sua pele, tentando me afastar ao máximo da rispidez desumana de Nathan e do médico.
Fazer a barba de Will foi um momento curiosamente íntimo. À medida que prossegui, notei que havia pensado que a cadeira de rodas seria um obstáculo, que a deficiência física impediria qualquer aspecto sensual. Por mais estranho que fosse, não estava sendo assim. Era impossível estar tão perto de alguém, sentir sua pele sob os dedos, respirar o mesmo ar, ficar com o rosto a centímetros do dele, sem me atrapalhar um pouco. Quando cheguei à outra orelha, senti-me esquisita, como se tivesse ultrapassado uma linha invisível.
Talvez Will conseguisse perceber as mudanças sutis na pressão que eu exercia em sua pele; talvez prestasse mais atenção aos humores das pessoas ao seu redor. Mas abriu os olhos e encarou diretamente os meus.
Fez-se uma pequena pausa e ele pediu, direto:
— Por favor, não diga que raspou também as minhas sobrancelhas.
— Só uma. — Lavei a lâmina, esperando que o rubor sumisse do meu rosto quando me virasse de volta. — Pronto — disse, finalmente. — Acho que já está bom, não? Nathan já deve estar chegando.
— E o cabelo? — perguntou ele.
— Quer mesmo que eu corte?
— Tem minha permissão para isso.
— Achei que não confiasse em mim.
Ele deu de ombros como pôde. Um movimento bem discreto.
— Se você ficar sem resmungar comigo por algumas semanas, acho que é um preço justo a pagar.
— Ai, meu Deus, sua mãe vai ficar tão satisfeita — exclamei, limpando a espuma de barbear da mão.
— Bom, não vamos deixar que isso nos atrapalhe.

* * *

Cortei o cabelo dele na sala. Acendi a lareira, coloquei um filme – um suspense americano – e estiquei uma toalha em volta dos seus ombros. Avisei que havia perdido a prática com as tesouras, mas que o cabelo não podia ficar pior do que estava.
— Obrigado pelo elogio — respondeu ele.
Dei início aos trabalhos, passando os dedos pelo seu cabelo, tentando lembrar o pouco que tinha aprendido. Will assistia ao filme, parecendo relaxado e quase contente.
De vez em quando, fazia algum comentário – de quais outros filmes o ator principal tinha participado, onde ele tinha assistido pela primeira vez – e eu fazia um ruído vagamente interessado (como eu faço quando Thomas me mostra seus brinquedos).
Mas todo o meu foco estava centrado em não destruir o cabelo dele. Finalmente, após ter cortado a pior parte fora, postei-me diante dele para ver o resultado.
— Então? — Ele pausou o DVD.
Endireitei-me.
— Não sei se gosto de ver seu rosto tão exposto. É meio enervante.
— Sinto mais frio assim — observou ele, mexendo a cabeça de um lado para outro, como se testasse a nova sensação.
— Espere, vou pegar dois espelhos. Assim você vai conseguir ver direito. Mas não se mexa. Ainda falta o acabamento. Talvez eu corte uma orelha.
Eu estava no quarto procurando um espelhinho nas gavetas quando ouvi a porta. Dois pares de pés apressados, a voz alta e preocupada da Sra. Traynor.
— Georgina, não, por favor.
A porta da sala foi aberta de supetão. Peguei o espelho e saí correndo do quarto. Não queria ser pega de surpresa longe de Will novamente. A Sra. Traynor estava em pé na porta da sala, as duas mãos sobre a boca, como se visse algo surpreendente.
— Você é o homem mais egoísta que já conheci! — uma jovem menina começou a gritar. — Não acredito nisso, Will. Você já era egoísta antes, agora piorou.
— Georgina. — A Sra. Traynor olhou fixo para mim quando me aproximei. — Por favor, pare.
Entrei na sala atrás dela. Will, com a toalha nos ombros, as rodas da cadeira cobertas de pequenos tufos de cabelo castanho, olhava para uma jovem. Ela tinha um cabelo negro enroscado em um nó bagunçado na nuca. Sua pele era bronzeada, e ela estava usando jeans caros e desbotados e botas de camurça. Assim como Alicia, seus traços eram lindos e perfeitos, os dentes de um branco incrível de anúncio de creme dental. Vi isso porque, mesmo com o rosto vermelho de raiva, ela continuava sibilando para ele.
— Não acredito. Não acredito que tenha pensado nisso. O que você...
— Por favor, Georgina. — O tom de voz da Sra. Traynor aumentou, ríspido. — Não é hora para isso.
Will, o rosto impassível, olhava para um ponto invisível à frente.
— Hum...Will? Precisa de ajuda? — perguntei, baixinho.
— Quem é você? — quis saber a jovem, virando-se para mim. Foi então que vi seus olhos cheios de lágrimas.
— Georgina — disse Will. — Esta é Louisa Clark, minha cuidadora e cabeleireira incrivelmente criativa. Louisa, esta é minha irmã, Georgina. Parece que ela veio de avião direto da Austrália para berrar comigo.
— Não seja engraçadinho — disse Georgina. — Mamãe me contou. Contou tudo.
Ninguém se mexeu.
— Vou deixá-los a sós um minuto — disse.
— Boa ideia. — Os nós dos dedos da Sra. Traynor estavam brancos sobre o braço do sofá.
Saí da sala de mansinho.
— Aliás, Louisa, aproveite para tirar seu intervalo de almoço.
Aquele ia ser um dia de buscar abrigo em algum ponto de ônibus. Peguei meus sanduíches na cozinha, vesti o casaco e desci pela trilha dos fundos.
Ao sair, ouvi a voz de Georgina Traynor ficar ainda mais alta dentro da casa.
— Will, nunca passou pela sua cabeça que, por incrível que pareça, tudo isso pode não se tratar apenas de você?

* * *

Quando voltei, exatamente meia hora depois, a casa estava em silêncio. Nathan lavava uma caneca na pia da cozinha.
Ao me ver, virou-se na minha direção.
— Como você está?
— Ela já foi embora?
— Quem?
— A irmã.
Ele olhou para trás.
— Ah. Era ela? Sim, já foi. Quando cheguei, estava saindo de carro. Problemas de família, não?
— Não sei — respondi. — Eu estava cortando o cabelo de Will quando ela entrou e começou a brigar com ele. Pensei que fosse outra namorada.
Nathan deu de ombros.
Percebi que, mesmo se soubesse, Nathan não se interessaria pelos detalhes pessoais da vida de Will.
— Ele está meio calado. Aliás, excelente trabalho com a barba. É bom tirá-lo de trás de todo aquele mato.
Voltei para a sala. Will olhava para a tela da TV, que continuava congelada na mesma cena de quando saí.
— Quer que eu ligue de novo? — perguntei.
Por um instante, ele pareceu não me ouvir. A cabeça estava afundada nos ombros, a expressão relaxada de antes tinha sido coberta por um véu. Will se fechara novamente num lugar onde eu não conseguia entrar.
Piscou, como se só então tivesse notado minha presença ali.
— Claro — respondeu.

* * *

Eu carregava um cesto de roupas lavadas pelo corredor quando as ouvi. A porta do anexo estava entreaberta e as vozes da Sra. Traynor e da filha vieram pelo longo corredor, em ondas abafadas. A irmã de Will soluçava baixinho, toda a raiva da sua voz tinha sumido.
Soava quase como uma criança.
— Deve haver alguma coisa que eles possam fazer. Algum avanço da medicina. Não podem levá-lo para os Estados Unidos? As coisas estão sempre se aprimorando por lá.
— Seu pai está atento a todos os progressos. Mas não, querida, não há nada de... concreto.
— Ele está tão... diferente agora. Como se estivesse determinado a não ver o lado bom em nada.
— Ele está assim desde o começo, George. É que você só o viu agora. Na época, acho que ele ainda estava... determinado. Antes, ele tinha certeza de que podia melhorar em algum aspecto.
Fiquei um pouco constrangida por ouvir uma conversa tão pessoal. Mas a excentricidade do assunto fez com que eu me aproximasse. Avancei na direção da porta sem fazer barulho, os pés silenciosos dentro das meias.
— Olhe, seu pai e eu não contamos a você. Não queríamos preocupá-la. Mas ele tentou... — ela lutou com as palavras. — Will tentou... tentou se matar.
— O quê?
— Seu pai o encontrou. Aconteceu em dezembro. Foi... foi horrível.
Embora isso apenas confirmasse o que eu já desconfiava, senti todo o sangue sumir das minhas veias. Ouvi um choro abafado, murmúrios de consolo. Fez-se outro longo silêncio. Então Georgina voltou a falar, com a voz rouca de tristeza.
— E a moça...?
— Sim. Louisa está aqui para garantir que nada parecido aconteça de novo.
Congelei. Do outro lado do corredor, vindo do banheiro, pude ouvir Nathan e Will falando baixinho, sem tomar conhecimento da conversa a poucos metros de distância.
Dei um passo à frente, aproximando-me mais da porta. Acho que tive certeza disso quando vi as cicatrizes nos pulsos dele. Afinal de contas, tudo fazia sentido: a preocupação da Sra. Traynor para que eu não deixasse Will sozinho por muito tempo, a raiva dele por eu estar lá, o fato de eu ter sentido que não tinha nada de útil para fazer ali. Eu era uma babá. Eu não sabia, mas Will sim, e me detestava por isso.
Peguei na maçaneta da porta me preparando para fechá-la sem fazer barulho.
Imaginei o quanto Nathan sabia. E se Will estava mais feliz agora. Percebi que estava me sentindo, de forma egoísta, um pouco aliviada por Will não ser contra mim, mas contra minha presença lá – ou de qualquer outra pessoa – para vigiá-lo. Meus pensamentos se atropelavam e quase perdi o outro trecho da conversa.
— Não pode deixar que ele faça isso, mãe. Tem de impedir.
— Não depende de nós, querida.
— Depende, sim. Se ele... se está pedindo para você participar — protestou Georgina.
Continuei segurando a maçaneta.
— Não acredito que esteja concordando com isso. E a sua religião? E tudo o que você fez? Para que o salvou da última vez?
A voz da Sra. Traynor estava propositalmente calma.
— Você não está sendo justa comigo.
— Você disse que ia levá-lo. O que...
— Você acha que, se eu me recusar a levá-lo, ele não vai pedir a outra pessoa?
— Mas levá-lo para a Dignitas? É errado. Sei que é difícil para ele, mas você e papai vão ficar arrasados. Sei disso. Pense em como você ia ficar! Pense nas notícias nos jornais! O seu trabalho! A reputação de vocês dois! Ele sabe disso. Só de pedir já é egoísta. Como ele se atreve? Como pode fazer isso? Como você pode? — Ela soluçou de novo.
— George...
— Não me olhe assim. Eu me preocupo com ele, mamãe. É meu irmão e eu o amo. Mas não posso aguentar. Não aguento nem pensar no assunto. Ele está errado em pedir, e você está errada em concordar. E não é só a própria vida que ele vai destruir levando isso adiante.
Recuei da janela. O sangue pulsava tão alto nos meus ouvidos que quase não ouvi a resposta da Sra. Traynor.
— Seis meses, George. Ele prometeu me dar mais seis meses. Não quero que você toque mais nesse assunto, muito menos na frente de outra pessoa. E temos... — Ela respirou fundo. — Temos de rezar muito para que, nesses seis meses, aconteça algo que o faça mudar de ideia.

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