Maio foi um mês
estranho. Os jornais e a TV veiculavam várias notícias sobre o que
chamavam de “direito de morrer”. Uma mulher que tinha uma doença
degenerativa pediu que o marido fosse protegido por lei, caso a levasse
para a Dignitas quando o sofrimento dela se tornasse insuportável. Um
jovem jogador de futebol cometeu suicídio depois de convencer os pais a
levá-lo até lá. A polícia estava investigando o caso. O assunto seria
debatido no Parlamento.
Eu assistia aos noticiários e ouvia
os argumentos legais de pessoas a favor da vida, avaliava os argumentos
morais e não sabia muito bem de que lado ficar. Por mais estranho que
fosse, nada daquilo parecia ter a ver com Will.
Enquanto isso, Will e eu passamos a
sair de casa com mais frequência e a distância dos passeios também
aumentou. Fomos ao teatro, pegamos a estrada para assistir a um ensaio
de dança tradicional Morris (Will tentou olhar sério para os sinos e
lenços que eles agitavam mas acabou ficando vermelho por causa do
esforço). Uma noite, fomos a um concerto ao ar livre numa imponente
residência (o que tinha mais a ver com ele do que comigo) e, certa vez,
no cinema, por eu não ter pesquisado direito, assistimos a um filme
sobre uma menina que sofria de uma doença terminal.
Mas eu sabia que ele também estava
vendo aquelas notícias. Depois que instalamos um novo software, ele
passou a usar mais o computador e conseguiu até mexer no mouse passando o
dedo no trackpad. Esse esforço permitia que lesse os jornais na
internet. Certa manhã, ao levar uma xícara de chá para ele, vi que
estava lendo uma reportagem sobre o jovem jogador de futebol, repleta de
detalhes sobre tudo o que aconteceu até ele se matar. Will minimizou a
tela quando percebeu que eu estava atrás dele e isso me deu um nó no
peito que demorou mais de meia hora para passar.
Procurei na biblioteca essa mesma
reportagem sobre o jogador. Eu vinha lendo os jornais. Vi quais
argumentos eram mais sólidos: nem sempre as informações mais difíceis,
mais duras, eram as mais úteis.
Os tabloides arrasaram com os pais do jogador. As manchetes gritavam: Como o deixaram morrer? Eu
também me perguntava isso. Leo McInerney tinha 24 anos e estava doente
havia três, portanto, não muito mais tempo que Will. Ele não era jovem
demais para ter certeza de que não tinha mais razão para viver? Só então
li a mesma matéria que Will lera: não era um texto opinativo, mas um
amplo histórico sobre o que acontecera com o rapaz. Dava a entender que o
repórter tinha conseguido falar com os pais dele.
O texto dizia que Leo jogava futebol
desde os três anos. Vivia para o esporte. Sofreu um acidente que,
segundo eles, “ocorre uma vez em um milhão” quando outro jogador deu um
carrinho nele. Os pais fizeram de tudo para animar o rapaz, mostrar que a
vida ainda valia a pena. Mas ele entrou em depressão. Era um atleta que
não só estava fora do esporte, mas que não podia se mexer e, às vezes,
nem respirar sem ajuda. Não sentia prazer em mais nada. Sentia dores,
tinha infecções e dependia totalmente de outras pessoas. Sentia falta
dos amigos, mas se recusava a vê-los. Dispensou a namorada. Todos os
dias, dizia aos pais que não queria mais viver. E que era insuportável,
quase uma tortura, ver outras pessoas terem nem que fosse a metade da
vida que ele pretendia ter.
Tentou se suicidar duas vezes
fazendo greve de fome, mas acabou sendo hospitalizado e, quando voltou
para casa, implorou que os pais o sufocassem enquanto dormia. Quando li
isso, fiquei sentada na biblioteca esfregando os olhos até parar de
soluçar.
* * *
Papai foi demitido. Mas reagiu de
maneira bastante corajosa. Chegou em casa à tarde, vestiu terno e
gravata e voltou para a cidade no ônibus seguinte para se inscrever no
Centro de Trabalho.
Disse a mamãe que já tinha decidido
que se ofereceria para qualquer emprego, apesar de ser um ótimo artesão,
com anos de experiência.
— Acho que não podemos ser muito exigentes no momento — falou, sem ligar para os protestos de mamãe.
Se para mim tinha sido difícil
conseguir um emprego, imagina para um homem de cinquenta e cinco anos
que só fez uma coisa a vida toda. Papai voltou para casa após uma série
de entrevistas e contou, desanimado, que não servia nem para almoxarife
ou vigia. Eles preferiram um rapaz bobo e inseguro, de dezessete anos,
porque o governo daria mais incentivos, e não podiam aceitar um homem
maduro, com um currículo extenso. Após duas semanas de recusas, meus
pais decidiram pedir o auxílio-desemprego e passaram as tardes
decifrando formulários incompreensíveis, de cinquenta páginas, que
perguntavam quantas pessoas usavam a máquina de lavar deles e quando foi
a última vez que viajaram para o exterior (papai achava que tinha sido
em 1988). Coloquei a quantia que Will me deu de presente na latinha no
armário da cozinha onde eles guardavam o dinheiro. Achei que se
sentiriam melhor sabendo que tinham uma pequena reserva.
Quando acordei de manhã, o dinheiro havia sido colocado em um envelope e jogado por debaixo da minha porta.
Os turistas começaram a chegar e a
cidade foi ficando cheia. O Sr. Traynor aparecia cada vez menos em casa;
o trabalho dele no castelo era proporcional à quantidade de visitantes.
Numa quinta-feira à tarde, quando eu voltava para casa depois de passar
na lavanderia, vi-o na rua. Não era nada fora do comum, a não ser pelo
fato de que ele estava envolvendo com o braço uma mulher ruiva que
claramente não era a Sra. Traynor. Quando me viu, soltou-a como se fosse
uma batata quente.
Virei-me, fingindo olhar uma
vitrine, sem saber se queria que ele soubesse que eu os vira, e me
esforcei para não pensar mais nisso.
Na sexta-feira seguinte à demissão
de papai, Will recebeu o convite para o casamento de Alicia e Rupert.
Bom, tecnicamente, era o Coronel e a Sra. Timothy Dewar, pais de Alicia,
que convidavam Will para participar do casamento da filha deles com
Rupert Freshwell. Veio num pesado envelope de pergaminho com toda a
programação da festa e, num papel dobrado, havia uma extensa lista de
presentes que as pessoas podiam comprar em lojas das quais eu nunca
tinha ouvido falar.
— Ela é muito cara de pau —
comentei, observando as letras douradas e o papel grosso de bordas
igualmente douradas. — Quer que eu jogue fora?
— Tanto faz. — O corpo de Will era um perfeito exemplo indiferença forçada.
Conferi a lista de presentes.
— Que diabo é um couscoussier?
Não sei se foi por causa da rapidez
com que Will se virou e passou a dedicar sua atenção ao teclado do
computador. Ou pelo tom de voz dele. Mas, por alguma razão, não joguei o
convite fora. Guardei com cuidado na agenda dele na cozinha.
Will me deu outro livro de contos, que tinha encomendado pela Amazon, e um exemplar de A rainha vermelha. Logo vi que não era o tipo de livro que eu gostava.
— Não tem nem história — falei, depois de olhar a contracapa.
— E daí? — questionou Will. — É um novo desafio para você.
Aceitei, não por ter algum interesse
em genética, mas porque, se dissesse não, sabia que Will ficaria
insistindo. Ele agora andava assim. Na verdade, era um pouco tirano. O
pior era que perguntava em que ponto do livro eu estava só para ter
certeza de que eu estava lendo mesmo.
— Você não é meu professor — eu reclamava.
— Graças a Deus — dizia ele, ofendido.
O livro – que era surpreendentemente
interessante – era sobre uma espécie de luta pela sobrevivência.
Afirmava que as mulheres não escolhiam os homens por amor. Segundo o
livro, a fêmea da espécie sempre escolheria o macho mais forte para
aumentar as chances de sobrevivência da prole. Ela não tinha culpa. É a
natureza.
Eu discordava. E não gostava do
argumento usado. Havia uma desconfortável segunda intenção na escolha do
tema, da qual Will estava querendo me convencer. Sob o olhar do autor
do livro, Will era fisicamente fraco, prejudicado. Por isso era
irrelevante biologicamente. A vida dele não valia nada.
Ele ficou falando sobre o assunto quase uma tarde inteira, até eu interrompê-lo:
— Tem uma coisa que esse Matt Ridley não levou em consideração.
Will levantou os olhos da tela do computador.
— Ah, é?
— E se o macho geneticamente superior for uma besta quadrada?
* * *
No terceiro sábado de maio, Treena e
Thomas voltaram para casa. Minha mãe abriu a porta e atravessou o
jardim antes que eles chegassem na metade da rua. Ela jurou, agarrada a
Thomas, que ele tinha crescido vários centímetros durante o tempo em
que ficaram longe. Estava mudado, tão crescido, parecia um homenzinho.
Treena cortara o cabelo e tinha uma aparência estranhamente sofisticada.
Usava uma jaqueta que eu nunca tinha visto antes e sandálias de tiras.
Sendo mesquinha, pensei onde ela havia arrumado dinheiro para pagar por
tudo aquilo.
— Então, como é tudo lá? — perguntei, enquanto mamãe andava com Thomas pelo jardim, mostrando os sapos no laguinho.
Papai assistia ao jogo de futebol na TV com vovô, levemente frustrado com um suposto lance perdido.
— Ótimo. Lá é muito bom. Quer dizer,
é difícil não ter ninguém para me ajudar a cuidar de Thomas e ele
demorou um pouco para se adaptar à nova creche. — Ela se inclinou na
minha direção. — Mas não conte isso para mamãe... eu disse que ele
estava bem.
— O curso é bom?
Treena abriu um sorriso.
— É excelente. Não consigo nem
explicar, Lou, como é bom voltar a usar a cabeça. Tenho a impressão de
ter perdido um tempo enorme... e agora é como se o tivesse recuperado.
Isso parece bobagem?
Balancei a cabeça. Na
verdade, fiquei contente por ela. Queria contar da biblioteca, dos
computadores e do que eu tinha feito por Will. Mas achei que aquele era o
momento dela. Sentamos nas cadeiras dobráveis, embaixo do toldo
rasgado, e tomamos nosso chá. Notei que ela tinha pintado as unhas com a
cor da moda.
— Mamãe sente sua falta — falei.
— A partir de agora, viremos quase
todo fim de semana. Eu precisava... Lou, não foi só uma questão de
Thomas se adaptar. Eu precisava de um tempo longe de tudo isso. Eu
queria um tempo para ser outra pessoa.
Ela parecia um pouco diferente. O
que era estranho. Só algumas semanas longe de casa podiam acabar com a
familiaridade de alguém. Parecia que ela estava prestes a se tornar uma
pessoa que eu não conhecia direito. Foi um pouco estranho, como se eu
estivesse ficando para trás.
— Mamãe contou que o seu amigo deficiente veio jantar aqui.
— Ele não é meu amigo deficiente. O nome dele é Will.
— Desculpe. Will. Quer dizer que a velha lista de programas antissuicídio está funcionando?
— Mais ou menos. Uns programas foram
melhores que outros. — Contei do desastre da corrida de cavalos, do
sucesso inesperado do concerto e dos nossos piqueniques. E ela riu
quando falei do meu jantar de aniversário.
— Você acha...? — Vi que ela estava pensando na melhor maneira de formular a pergunta. — Acha que você vai vencer?
Como se fosse uma espécie de campeonato.
Peguei uma madressilva e comecei a desfolhá-la.
— Não sei. Acho que preciso me esforçar ainda mais. — Contei o que a Sra. Traynor pensava a respeito de viajar para o exterior.
— Não acredito que você foi a um concerto. Logo você!
— E eu gostei.
Ela levantou uma sobrancelha.
— Gostei de verdade. Foi... emocionante — insisti.
Treena olhou bem para mim.
— Mamãe disse que ele é uma simpatia.
— É, mesmo.
— E muito bonito.
— Uma lesão na espinha não transforma ninguém no Quasímodo.— Por favor, não diga que é um tremendo desperdício, pedi a ela em pensamento.
Talvez minha irmã fosse mais esperta do que eu imaginava.
— Enfim, mamãe ficou muito surpresa. Acho que esperava encontrar o Quasímodo.
— O problema é esse, Treen — falei, jogando o resto do meu chá no canteiro. — As pessoas sempre esperam.
* * *
Mamãe estava animada durante o
jantar. Tinha feito lasanha, o prato preferido de Treena, e Thomas teve
permissão de ficar acordado até mais tarde, como prêmio.
Comemos, conversamos, rimos e
falamos de assuntos que não eram perigosos, como futebol, meu trabalho e
os colegas de Treena. Mamãe deve ter perguntado umas cem vezes se ela
tinha certeza de que estava se virando realmente bem e se Thomas
precisava de alguma coisa, como se meus pais tivessem dinheiro sobrando
para dar à ela. Foi bom eu ter avisado antes que eles estavam sem um
tostão. Por isso, Treena respondeu, de um jeito firme e delicado, que
não precisava de nada. Mais tarde, perguntei se não precisava mesmo.
Naquela noite, acordei por volta da
meia-noite com um choro. Era Thomas, no quartinho. Ouvi Treena tentando
consolá-lo e acalmá-lo, a luz sendo acesa e apagada, a cama sendo
ajeitada. Fiquei deitada no escuro, observando a luz da rua passar pelas
cortinas e iluminar o meu teto recém-pintado. Esperei até o choro
parar, mas tudo se repetiu às duas da manhã. Desta vez, ouvi mamãe andar
de chinelos pelo corredor e murmurar alguma coisa. Então, finalmente,
Thomas se aquietou.
Às quatro, acordei com minha porta
rangendo ao ser aberta. Pisquei, tonta, olhando na direção de onde vinha
a luz. Podia ver a silhueta de Thomas na porta, as pernas do pijama
compridas demais, o cobertorzinho de estimação arrastando um pouco no
chão.
Não conseguia ver seu rosto, mas ele ficou em pé ali, inseguro, como se não soubesse o que fazer.
— Venha cá, Thomas — sussurrei.
Quando ele veio na minha direção, vi
que ainda estava meio dormindo. Os passos eram hesitantes, o dedo
enfiado na boca, o precioso cobertor sendo agarrado. Puxei o edredom e
ele subiu ao meu lado na cama, deitando no outro travesseiro, e se
encolheu todo. Cobri-o e fiquei olhando para ele, encantada com o seu
sono profundo e imediato.
— Durma bem, querido — sussurrei e
dei um beijo na testa dele; uma mãozinha gorda agarrou a minha camiseta
como para garantir que eu não iria embora.
* * *
— Qual o melhor lugar onde você já foi?
Will e eu estávamos sentados no
abrigo, esperando que uma chuvinha repentina parasse para darmos uma
volta nos jardins atrás do castelo. Will não gostava de andar pelas
áreas principais, pois lá muita gente ficava olhando para ele. Mas a
horta era um dos tesouros ocultos do castelo, aonde poucos iam. Os
pomares escondidos ficavam separados por trilhas de seixos, por onde a
cadeira de rodas passava facilmente.
— Melhor de que forma? Por que essa pergunta?
Despejei um pouco de sopa de uma garrafa térmica e segurei a colher próximo à sua boca.
— É de tomate.
— Certo. Meu Deus, está quente.
Espere um instante. — Ele olhou para longe. — Escalei o monte
Kilimanjaro quando fiz trinta anos. Foi incrível.
— Que altura?
— Mais de cinco mil metros até o pico Uhuru. Nos últimos metros já estava engatinhando. A altitude prejudica muito.
— Estava frio?
— Não... — Ele sorriu. — Não é como o
Everest. Pelo menos, na época do ano em que fui. — Ele olhou ao longe,
imerso na lembrança. — Foi lindo. É considerado o teto da África. Lá de
cima dá para ver quase até o fim do mundo.
Will ficou calado por um instante. Olhei para ele, pensando onde realmente estaria.
Quando tínhamos essas conversas, ele parecia o meu colega de escola que se distanciou de nós depois que se aventurou pelo mundo.
— Que outros lugares você gostou de conhecer?
— A Baía Eau Douce, nas Ilhas
Maurício. A população de lá é muito simpática, as praias são lindas,
ótimas para mergulhos. Hum... o Parque Nacional de Tsavo, no Quênia, com
toda a sua terra vermelha e os animais selvagens. O Parque Nacional
Yosemite, na Califórnia. Montanhas tão altas que o cérebro da gente não
consegue processar tamanha imensidão.
Contou de uma noite que passou
escalando, pendurado num penhasco a muitos metros do chão, e precisou
prender o saco de dormir no rochedo, pois, caso rolasse o corpo durante o
sono, aconteceria um desastre.
— Você acabou de descrever o meu pior pesadelo.
— Gosto de grandes cidades também.
Adorei Sydney. E as terras ao norte da Islândia. Lá tem um lugar perto
do aeroporto onde se pode tomar banho em fontes vulcânicas. É uma
paisagem um pouco estranha, nuclear. Ah, gostei também de andar a cavalo
na planície central da China. Cheguei lá após dois dias a cavalo,
partindo da capital da província de Sichuan; os moradores cuspiram em
mim, pois nunca tinham visto um homem branco antes.
— Tem algum lugar que você não conhece?
Ele tomou mais um pouco de sopa.
— Coreia do Norte? — Ele pensou. — Ah, nunca fui à Disneylândia. Será que vale a pena? Nem à Eurodisney.
— Uma vez, comprei uma passagem para a Austrália. Mas nunca fui.
Ele virou-se para mim, surpreso.
— Acontece. Tudo bem. Talvez eu vá um dia — acrescentei.
— Nada de “talvez”. Você precisa
sair daqui, Clark. Prometa que não vai passar o resto da vida enfiada
nesta cidade que mais parece uma maldita estampa de jogo americano.
— Prometer? Por quê? — Tentei fazer uma voz suave. — Aonde você vai?
— É que... não aguento pensar que
você vai ficar aqui pelo resto da vida. — Ele engoliu em seco. — Você é
muito inteligente. Muito interessante. — Ele desviou os olhos de mim. —
Você só vive uma vez. É sua obrigação aproveitar a vida da melhor forma
possível.
— Está bem — concordei, com cuidado. — Então me diga para onde eu devia ir. Aonde você iria, se pudesse ir para qualquer lugar?
— Agora?
— Sim, agora. E não me venha com Kilimanjaro. Tem de ser um lugar onde eu possa me imaginar — expliquei.
O rosto de Will relaxou e ele ficou
parecendo outra pessoa. Naquele momento, um sorriso brotou em seu rosto,
seus olhos apertados de satisfação.
— Eu iria a Paris. Sentaria numa
mesa na calçada do Café Marais, tomaria uma xícara de café e comeria
croissants quentes com manteiga sem sal e geleia de morango.
— Marais?
— É um pequeno bairro no centro de
Paris. Com ruas de pedras, prédios residenciais que parecem balançar;
gays, judeus ortodoxos e mulheres de certa idade que já foram parecidas
com Brigitte Bardot. É o melhor lugar para ficar.
Virei-me para ele e disse baixinho:
— Podíamos ir. De Eurostar. É
simples, acho que nem precisaríamos que Nathan fosse junto. Nunca fui a
Paris. Adoraria ir. De verdade. Principalmente com alguém que já
conhece. O que acha, Will?
Eu já me imaginava naquele café.
Sentada àquela mesa, talvez admirando meus novos sapatos franceses
comprados em alguma butique chique, ou escolhendo um doce com os dedos
pintados de esmalte parisiense vermelho. Podia sentir o gosto do café, o
cheiro dos Gauloises que alguém fumava na mesa ao lado.
— Não.
— O que disse? — Levei um instante para deixar aquela mesa na calçada de Paris.
— Não.
— Mas você acabou de dizer...
— Você não entendeu, Clark. Não
quero ir lá nessa... nessa coisa. — Ele apontou para a cadeira, a voz
sumindo. — Quero ir a Paris como eu era. Quero sentar, recostar-me nas
cadeiras, usando minhas roupas preferidas, com lindas garotas francesas
me olhando ao passar como fariam com qualquer outro cara sentado ali.
Não quero vê-las desviar o olhar, rápido, ao perceber que sou um homem
numa enorme e maldita cadeira de rodas.
— Mas podemos tentar. Não precisa... — arrisquei.
— Não, não podemos. Pois ao fechar
os olhos consigo saber exatamente como é estar na Rue des Francs
Bourgeois, fumando um cigarro, o suco de tangerina num copo alto e
gelado na minha frente, o cheiro do rosbife com fritas que alguém pediu,
o pipocar de uma lambreta ao longe. Conheço todas essas sensações.
Engoliu em seco.
— Se formos lá e eu estiver nesta
maldita geringonça, todas essas lembranças, essas sensações boas, vão
desaparecer, apagadas pela dificuldade de chegar à mesa, de subir e
descer nas calçadas parisienses, pelos táxis que se recusam a nos levar,
pela maldita bateria da cadeira de rodas que não pode ser recarregada
numa tomada francesa. Entendeu?
A voz dele tinha endurecido. Tampei a
garrafa térmica. Ao fazer isso, fixei o olhar nos meus sapatos para que
Will não visse a minha expressão.
— Entendi — respondi.
— Certo. — Ele respirou fundo.
Um ônibus parou perto de nós e
descarregou mais um bando de turistas nos portões do castelo. Observamos
em silêncio eles descerem do veículo e entrarem na velha fortaleza
formando uma única e civilizada fila, prontos para ver as ruínas de
outros tempos.
Will decerto notou que fiquei desapontada, pois inclinou-se um pouco para o meu lado. Seu rosto se suavizou.
— Então, Clark. Acho que a chuva passou. Aonde vamos esta tarde? Percorrer o labirinto do jardim?
— Não — respondi mais rápido do que pretendia, e vi o olhar que Will me lançou.
— Você sente claustrofobia lá?
— Quase isso. — Juntei nossas coisas. — Vamos voltar para casa.
* * *
No fim de semana seguinte, levantei
no meio da noite para beber água. Estava com dificuldade para dormir e
percebi que levantar era melhor do que ficar deitada tentando afastar os
pensamentos confusos que passavam pela minha cabeça.
Não gostava de ficar acordada à
noite. Acabei me perguntando se Will também estaria acordado, lá do
outro lado do castelo, e imaginei no que ele estaria pensando. O que não
foi uma boa ideia.
A verdade é a seguinte: eu não
estava conseguindo nada. O tempo estava se esgotando. Não conseguia nem
convencê-lo a ir a Paris. E quando ele disse o motivo, foi difícil
contra-argumentar. Ele tinha um bom motivo para recusar todas as viagens
mais longas que sugeri. Como eu não podia dizer por que queria tanto
levá-lo, eu tinha pouco poder de persuasão.
Ao passar pela sala, ouvi um barulho
– uma tosse abafada, ou talvez uma exclamação de susto de alguém.
Parei, dei alguns passos para trás e fiquei na porta.
Empurrei-a com cuidado. Meus pais
estavam deitados no chão da sala, as almofadas do sofá formavam uma
espécie de cama, estavam cobertos com a colcha de visitas, a cabeça na
altura da lareira elétrica. Ficamos nos olhando por um instante à
meia-luz, eu com o copo na mão.
— O que... o que estão fazendo aqui? — perguntei.
Minha mãe se apoiou no cotovelo.
— Psiu, fale baixo. Nós... — ela olhou para o meu pai. — Fizemos uma mudança.
— O quê?
— Fizemos uma mudança. — Mamãe olhou para meu pai, como se pedisse seu apoio.
— Demos nossa cama para Treena —
disse papai. Ele vestia uma velha camiseta azul com um rasgo no ombro e o
cabelo estava grudado de um lado da cabeça. — Ela e Thomas não estavam
se sentindo bem no quartinho. Então, demos o nosso quarto para eles.
— Mas não podem dormir aí! É desconfortável.
— Estamos ótimos, querida — disse papai. — Eu garanto.
Como continuei parada ali, meio boba, tentando entender, ele acrescentou:
— É só nos fins semana. E você não
pode voltar para aquele quartinho. Precisa dormir, ainda mais... —
Engoliu em seco. — Ainda mais que é a única da casa que trabalha.
Meu pai, com sua eterna falta de jeito, não conseguiu olhar para mim.
— Volte para a cama, Lou. Ande. Estamos ótimos. — Mamãe praticamente me enxotou.
Subi a escada, os pés descalços sem fazer barulho no carpete, mal ouvindo os murmúrios de conversa vindo lá de baixo.
Hesitei diante da porta do quarto de
meus pais, e ouvi algo que não tinha escutado antes – Thomas ressonava.
Voltei devagar para o meu quarto e fechei a porta com cuidado. Deitei
na minha enorme cama e olhei pela janela os postes de luz na rua até o
amanhecer, quando – finalmente, graças aos céus – consegui algumas
preciosas horas de sono.
* * *
No meu calendário, faltavam setenta e nove dias. Fiquei preocupada outra vez. E eu não era a única.
A Sra. Traynor esperou até a hora do
almoço, quando Nathan ficava com Will, para pedir que eu a acompanhasse
até a casa principal. Fez eu me sentar na sala e perguntou como estavam
as coisas.
— Bom, estamos saindo com mais frequência — respondi.
Ela balançou a cabeça, como se concordasse.
— Ele tem conversado bem mais — acrescentei.
— Com você, pode ser. — Ela deu uma risada que não era bem uma risada. — Já comentou com ele sobre viajar para o exterior?
— Ainda não. Vou falar. É que... sabe como ele é.
— Não me importo se você quer ir a
algum lugar. Sei que não ficamos muito entusiasmados com a sua ideia,
mas meu marido e eu temos conversado bastante e achamos que...
Ficamos ali, em silêncio. Ela me
ofereceu uma xícara de café. Tomei um gole. Sempre me sinto com sessenta
anos quando tenho que equilibrar um pires de café no colo.
— Então... Will me contou que foi à sua casa.
— Sim, no meu aniversário. Meus pais prepararam um jantar especial.
— Como ele estava?
— Bem. Muito bem. Foi bastante
simpático com minha mãe. — Não consegui evitar um sorriso quando me
lembrei. — Quer dizer, mamãe está meio triste porque minha irmã e
o filho saíram de casa. Minha mãe sente falta deles. Acho que... Will
quis distraí-la.
A Sra. Traynor pareceu surpresa.
— Que... que simpático da parte dele.
— Minha mãe também achou.
Ela mexeu o café com a colher.
— Não lembro a última vez que Will quis jantar conosco.
Ela fez mais algumas perguntas. Nada
direto, claro, não era seu estilo. Mas não pude dar as respostas que
ela queria. Alguns dias, achava Will mais feliz – saía comigo sem
reclamar, me provocava, incitava minhas ideias, parecia um pouco mais
atento ao mundo do lado de fora do anexo – mas o que eu realmente sabia?
Ele parecia ter um imenso mundo interior sobre o qual não me dava
qualquer pista. Nas duas últimas semanas tive a desagradável impressão
de que esse mundo interior estava crescendo.
— Ele parece um pouco mais feliz — disse ela. Dava a impressão de querer se convencer disso.
— Acho que sim.
— Foi... — ela passou os olhos por
mim — ... muito gratificante vê-lo um pouco mais parecido com o que era
antes. Tenho certeza de que tudo isso é graças a você.
— Nem tudo.
— Eu não conseguia me aproximar
dele, nem um pouco. — Ela apoiou o pires e a xícara em cima do joelho. —
Will é uma pessoa única. Desde adolescente, ele sempre me olhava de uma
forma que me dava a impressão de que eu tinha feito algo errado. Nunca
soube bem o que era. — Tentou rir, mas o que saiu não foi de forma
alguma um riso, então olhou para mim por um breve instante, mas logo
desviou o olhar.
Fingi tomar um gole de café, embora a xícara já estivesse vazia.
— Você se dá bem com sua mãe, Louisa?
— Sim. Minha irmã é que me deixa louca — disse.
A Sra. Traynor olhou pela janela,
onde seu precioso jardim começava a florir em pálidas e perfumadas
misturas de tons de rosa, roxo e azul.
— Só nos restam dois meses e meio — disse ela, sem virar a cabeça.
Coloquei minha xícara na mesa. Com cuidado, para não fazer barulho.
— Estou fazendo o possível, Sra. Traynor.
— Eu sei, Louisa. — Ela concordou com a cabeça.
Saí da sala.
* * *
Leo McInerney morreu no dia vinte e
dois de maio, em um quarto anônimo de um apartamento na Suíça, usando
sua camisa preferida do time de futebol e ao lado dos pais. O irmão
caçula se recusou a ir com eles, mas divulgou uma nota dizendo que
ninguém foi mais amado ou recebeu mais apoio do que seu irmão. Leo tomou
o líquido leitoso de sedativos letais às três e quarenta e sete da
tarde e os pais disseram que, alguns minutos depois, ele pareceu cair em
um sono profundo. Foi declarado morto pouco depois das quatro da tarde
por uma testemunha que registrou tudo, além da câmera de vídeo instalada
para evitar qualquer alegação de mau procedimento.
“Ele parecia em paz”, consta na
declaração da mãe. “É o que me consola.” Ela e o pai de Leo foram
interrogados três vezes pela polícia e ameaçados de processo. Receberam
cartas indignadas. A mãe parecia, no mínimo, vinte anos mais velha do
que era. Mesmo assim, quando ela falava havia algo em sua expressão que,
além da tristeza, da raiva, da preocupação e do cansaço, mostrava um
profundo alívio.
— Ele finalmente pareceu o Leo de antes.
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