O pior de se
trabalhar como cuidadora não é o que as pessoas pensam. Não é carregar e
limpar a pessoa, os remédios e os lenços de limpeza e o distante, mas
de algum modo sempre perceptível, cheiro de desinfetante. Não é nem o
fato de quase todo mundo achar que você faz isso porque não tem
inteligência suficiente para fazer qualquer outra coisa. O pior é o fato
de que, quando se passa o dia inteiro num estado de real proximidade
com outra pessoa, não há como escapar do estado de humor dela. E nem do
seu próprio.
Will ficou distante a manhã toda,
desde que contei dos meus planos. Nada que uma pessoa de fora pudesse
detectar, mas houve menos piadas, talvez a conversa tenha sido menos
casual. Ele não perguntou nada a respeito das notícias dos jornais
naquele dia.
— É isso... que você quer fazer? — Os olhos se agitavam, mas o rosto não demonstrava nada.
Dei de ombros. Depois, fiz que sim
com a cabeça de maneira bem enfática. Achei que minha resposta tinha
algo de descaso infantil.
— Realmente, está na hora. Quer dizer, eu tenho vinte e sete anos — falei.
Ele observou meu rosto. Algo se retesou em seu maxilar.
De repente, eu me senti
insuportavelmente cansada. Tive aquela sensação peculiar de precisar me
desculpar, mas sem saber bem por quê.
Will fez um pequeno aceno com a cabeça, sorriu.
— Fico feliz que você tenha resolvido isso — disse ele, e levou a cadeira para a cozinha.
Comecei a ficar bem chateada com
ele. Nunca havia me sentido tão julgada quanto me senti, naquele
momento, por Will. Foi como se eu ficasse menos interessante para ele
por ter decidido ir morar com o meu namorado. Como se eu não pudesse
mais ser o projeto preferido de Will. Eu não podia dizer nada disso para
ele, é claro, mas agi tão friamente com ele quanto ele comigo.
E isso foi, sinceramente, exaustivo.
À tarde, bateram à porta dos fundos
do anexo. Segui rápido pelo corredor, as mãos ainda molhadas de lavar
louça, abri a porta e vi um homem de terno escuro e uma maleta na mão.
— Ah, não. Nós somos budistas — disse firmemente, fechando a porta quando o homem começou a protestar.
Duas semanas antes, duas Testemunhas
de Jeová tinham alugado Will na porta dos fundos por quase quinze
minutos, enquanto ele tentava dar marcha a ré na cadeira por cima do
capacho, que estava fora do lugar. Quando finalmente fechei a porta,
eles abriram a caixa do correio e berraram que “ele, mais do que
ninguém”, deveria entender o que o estava esperando depois da morte.
— Hum... estou aqui para falar com o Sr. Traynor — disse o homem, e eu abri a porta com cautela.
Durante todo o tempo em que trabalhei na Granta House, ninguém procurou por Will pela porta dos fundos.
— Deixe-o entrar — disse Will,
surgindo atrás de mim. — Pedi que ele viesse. — Quando continuei parada
ali, ele acrescentou: — Está tudo bem, Clark... é um amigo.
O homem deu um passo adiante, ultrapassando o limiar da porta, estendeu a mão e me cumprimentou.
— Michael Lawler — disse ele.
Estava prestes a dizer mais alguma coisa, mas Will pôs a cadeira entre nós, cortando efetivamente qualquer provável conversa.
— Vamos ficar na sala. Pode nos fazer um café e depois nos deixar a sós um pouco?
— Hum... certo.
O Sr. Lawler sorriu de forma um pouco esquisita para mim e seguiu Will até a sala.
Quando, minutos depois, entrei com a
bandeja de café, eles falavam sobre críquete. A conversa sobre ataques e
defesas no jogo continuou até eu não ter mais motivo para espiar.
Tirei uma poeira invisível da minha saia, endireitei-me e disse:
— Bom, vou me retirar.
— Obrigado, Louisa.
— Tem certeza de que você não precisa de mais nada? Biscoitos?
— Obrigado, Louisa.
Will jamais me chamava de Louisa. E nunca havia me excluído de nada antes.
O Sr. Lawler ficou por quase uma
hora. Executei minhas tarefas, depois fiquei por ali, na cozinha,
pensando se tinha coragem de escutar escondido o que eles diziam. Não
tinha. Sentei-me, comi dois biscoitos de chocolate recheados, roí as
unhas, ouvi o murmúrio da conversa deles e pensei pela décima quinta vez
por que Will tinha pedido ao homem que não usasse a porta da frente.
Não parecia um médico. Podia ser
consultor financeiro, mas de algum jeito ele não tinha exatamente o ar
de quem desempenhava essas funções. Certamente também não parecia
ser fisioterapeuta, terapeuta ocupacional ou nutricionista – nem nenhum
integrante das legiões de pessoas da secretaria de saúde local que
apareciam e avaliavam os custos das necessidades sempre mutantes de
Will. Dava para reconhecê-las a quilômetros de distância. Pareciam
sempre exaustos, mas eram forçosa e agitadamente animados. Usavam meias
de lã em cores neutras, sapatos baixos de sola de borracha e dirigiam
empoeirados carros corporativos, cheios de pastas e caixas de
equipamentos. Mas o Sr. Lawler tinha uma BMW azul-marinho. Seu reluzente
modelo executivo não era o tipo de carro que uma autoridade local
usaria.
Por fim, o Sr. Lawler apareceu. Fechou a pasta e seu paletó pendia do braço. Tinha deixado de parecer esquisito.
Segundos depois, eu estava no corredor.
— Ah, poderia me mostrar onde fica o banheiro?
Mostrei o caminho, muda, e fiquei ali, inquieta, até ele aparecer.
— Bom, é só isso.
— Obrigado, Michael— disse Will, sem olhar para mim. — Espero notícias.
— Devo entrar em contato no final desta semana — disse o Sr. Lawler.
— Por e-mail será melhor que por carta. Ao menos por ora.
— Sim. Claro.
Abri a porta dos fundos para ele sair. Então, quando Will sumiu na sala, segui o homem pelo quintal e disse, alegremente:
— Então... o senhor tem um longo caminho de volta?
O terno dele era muito bem cortado, com um estilo urbano e um tecido de aparência cara.
— Venho de Londres, infelizmente. Espero que o tráfego não esteja muito ruim a esta hora da tarde.
Saí atrás dele. O sol estava alto no céu e precisei estreitar os olhos para vê-lo.
— Então... hum... onde o senhor fica, em Londres?
— Regent Street.
— A Regent Street? Ótimo.
— É. Não é ruim. Certo. Obrigado pelo café, senhorita...
— Clark. Louisa Clark.
Ele parou e me olhou um instante,
e fiquei pensando se ele tinha percebido minhas tentativas impróprias de
saber quem ele poderia ser.
— Ah. Srta. Clark — disse ele, seu sorriso profissional suavemente reinstalado. — Obrigado de todo modo.
Ele pousou a pasta com cuidado no assento de trás do carro, entrou e foi embora.
Naquela noite, quando ia para a casa
de Patrick, dei uma parada na biblioteca. Eu poderia ter usado o
computador dele, mas ainda me sentia como se precisasse pedir, e ir à
biblioteca apenas parecia mais fácil. Sentei-me no terminal e digitei
“Michael Lawler” e “Regent Street, Londres” no site de buscas. Informação é poder, Will, disse eu, silenciosamente.
Foram 3.290 resultados, sendo que os
três primeiros mostraram “Michael Lawler, advogado, especialista em
testamentos, certidões e procurações judiciais”, que ficava naquela
mesma rua. Olhei para a tela durante alguns minutos, digitei o nome dele
novamente, dessa vez buscando por imagens, e lá estava ele, em algum
tipo de conferência, usando um terno escuro – Michael Lawler,
especialista em testamentos e certidões, o mesmo homem que ficara uma
hora com Will.
Eu me mudei para o apartamento de
Patrick naquela noite, na uma hora e meia entre o fim do meu expediente e
a saída dele para o treino. Peguei tudo, menos a cama e as cortinas
novas. Ele veio com o carro e carregamos os meus pertences em sacos
plásticos de lixo. Em duas viagens, levamos tudo para o apartamento dele
– exceto meus livros escolares, que estavam no sótão.
Mamãe chorou, achou que estava me expulsando.
— Pelo amor de Deus, querida. Está na hora de ela sair de casa. Tem vinte e sete anos — papai lhe disse.
— Ela ainda é o meu bebê — lastimou
mamãe, me entregando duas latas cheias de bolo de frutas e uma sacola
com produtos de limpeza.
Fiquei sem saber o que falar. Eu nem gosto de bolo de frutas.
Foi surpreendentemente fácil colocar
minhas coisas no apartamento de Patrick. Ele quase não tinha nada
mesmo, nem eu, depois de anos morando no quartinho. O único incidente
foi por causa da minha coleção de CDs, que aparentemente só poderia se
juntar à dele depois que eu colasse etiquetas na parte de trás das
caixinhas e a colocasse em ordem alfabética.
— Fique à vontade — repetia ele, como se eu fosse uma espécie de visita.
Estávamos nervosos, estranhamente
sem jeito um com o outro, como duas pessoas num primeiro encontro.
Enquanto eu desempacotava as coisas, ele me trouxe chá e disse:
— Pensei que esta poderia ser a sua
caneca. — Mostrou o lugar de tudo na cozinha e disse várias vezes: —
Claro, ponha as coisas aonde quiser. Eu não ligo.
Ele tinha esvaziado duas gavetas e o
guarda-roupa do quarto extra. As outras duas gavetas estavam cheias com
suas roupas de ginástica. Eu não sabia que havia tantas combinações
entre lycra e fleece. Minhas roupas loucamente coloridas
deixaram muitos centímetros de espaço ainda vazio, os cabides de
arame ficaram balançando pesarosamente no closet.
— Preciso comprar mais roupa só para encher o armário — constatei, olhando lá para dentro.
Ele riu, nervoso.
— O que é isso?
Estava apontando para o meu
calendário, pregado na parede do quarto extra, com as ideias em verde e
os programas já marcados em preto. Quando alguma coisa tinha dado certo
(música, degustação de vinhos), eu colocava uma cara sorridente na data.
Quando não tinha (corrida de cavalos, galerias de arte), deixava vazio.
As duas semanas seguintes tinham poucos programas – Will estava cansado
dos lugares próximos e eu ainda não o convencera a ir mais longe. Dei
uma olhada em Patrick. Eu podia vê-lo examinar o dia 12 de agosto, que
estava sublinhado e tinha pontos de exclamação em preto.
— Hum... é para lembrar do meu trabalho.
— Acha que o seu contrato não será renovado?
— Não sei, Patrick.
Patrick retirou a tampa da caneta, olhou o mês seguinte e rabiscou embaixo de onde se lia 28ª semana: “Hora de começar a procurar emprego.”
— Desse jeito você está preparada para qualquer coisa que aconteça — disse ele.
Deu-me um beijo e saiu do quarto.
Coloquei meus cremes de beleza
cuidadosamente no banheiro, guardei os aparelhos de barbear, os
hidratantes e absorventes de forma organizada no armário do banheiro.
Coloquei alguns livros em
uma fileira arrumada no chão do quarto extra, sob a janela, inclusive os
novos, que Will tinha encomendado para mim na Amazon. Patrick prometeu
instalar prateleiras quando tivesse tempo.
E então, quando ele saiu para
correr, sentei-me e olhei as fábricas na direção do castelo e ensaiei
dizer a palavra casa, silenciosamente, sob minha respiração.
* * *
Sou bastante incompetente para
guardar segredos. Treena diz que eu toco no nariz assim que penso em
contar uma mentira. É uma dica bastante certeira. Meus pais ainda riem
da época em que eu mesma escrevia bilhetes justificando a falta na
escola. “Cara Srta. Trowbridge. Por favor, dispense Louisa Clark das
aulas hoje, pois estou muito indisposta devido a problemas femininos.” Papai se esforçava para ficar sério quando deveria estar me descascando.
Uma coisa era não contar os planos
de Will para meus pais – eu era boa em guardar segredos deles (afinal, é
algo que aprendemos à medida em que crescemos) – mas lidar com a minha
própria ansiedade era uma coisa completamente diferente.
Passei as noites seguintes tentando
saber o que Will pretendia fazer e o que eu poderia fazer para
impedi-lo, pensava nisso até enquanto conversava com Patrick, cozinhando
juntos na pequena cozinha (eu já estava descobrindo coisas novas sobre
ele – por exemplo, ele realmente sabia preparar mil pratos diferentes
com peito de peru).
À noite, fazíamos amor, o que
parecia quase obrigatório no momento, como se tivéssemos de aproveitar
por completo a nossa liberdade. Era como se Patrick achasse que eu tinha
uma dívida com ele, já que eu estava sempre fisicamente perto de Will.
Mas, assim que ele dormia, eu me perdia em pensamentos novamente.
Só faltavam sete semanas.
E Will estava fazendo planos, mesmo que eu não estivesse.
Na semana seguinte, se Will notou
minha preocupação, não disse nada. Cumprimos nossas rotinas diárias –
levei-o de carro para dar breves passeios no campo, preparei suas
refeições, cuidei dele quando estávamos em casa. Ele não fazia mais
piadas sobre o Corredor.
Comentei os livros mais recentes que ele tinha recomendado: lemos O paciente inglês (adorei
esse) e um suspense sueco (do qual não gostei). Fomos simpáticos um com
outro, quase excessivamente educados. Senti falta das agressões, do mau
humor dele – aquela ausência apenas se somou à sensação ameaçadora que
se avultava sobre mim.
Nathan nos olhava como se estivesse observando algum tipo de espécie nova.
— Vocês dois brigaram? — perguntou um dia na cozinha, quando eu desempacotava as compras.
— Melhor perguntar para ele — respondi.
— Foi exatamente o que ele disse.
Nathan me olhou de soslaio e sumiu no banheiro para destrancar o armário de remédios de Will.
Levei três dias depois da visita de
Michael Lawler para ligar para a Sra. Traynor. Perguntei se podíamos nos
encontrar em algum lugar fora da casa e marcamos num pequeno café,
recém-inaugurado nos jardins do castelo. O mesmo café que, ironicamente,
tinha custado o meu emprego anterior.
Era um lugar bem mais sofisticado
que o The Buttered Bun – todo de carvalho, com mesas e cadeiras de
madeira patinada. Servia sopa caseira com legumes de verdade e bolos
chiques. E você não conseguia beber um café simples, só latte, cappuccino ou macchiato.
Não havia ali operários, nem funcionários do salão de beleza. Sentei-me
e bebi vagarosamente meu chá, imaginando se a Sra. Dente-de-Leão se
sentiria confortável o suficiente para se sentar ali e ler o jornal a
manhã inteira.
— Louisa, desculpe meu atraso. —
Camilla Traynor entrou de repente, a bolsa enfiada embaixo do braço,
vestida com uma blusa de seda cinza e calça azul-marinho.
Contive o impulso de me levantar.
Sempre que eu falava com ela, tinha a impressão de estar participando de
uma espécie de entrevista.
— Fiquei presa no tribunal.
— Eu que peço desculpas. Por obrigá-la a sair do trabalho, quero dizer. Só achei que... bom, achei que não dava para esperar.
Ela ergueu a mão e falou algo com a garçonete, que trouxe um cappuccino em segundos. Então sentou-se à minha frente. Seu olhar fez com que eu me sentisse transparente.
— Will chamou um advogado — falei. — Descobri que ele é especialista em testamentos e certidões.
Não consegui uma maneira mais delicada de iniciar a conversa.
Parecia que eu tinha lhe dado um
tapa na cara. Percebi, tarde demais, que, na verdade, ela estava
esperando que eu lhe dissesse alguma coisa boa.
— Advogado? Tem certeza?
— Procurei por ele na internet. Tem
escritório na Regent Street. Em Londres — acrescentei, sem necessidade. —
Chama-se Michael Lawler.
Ela piscou forte, como se tentasse entender.
— Will contou isso a você?
— Não. Acho que não queria que eu soubesse. Eu... eu descobri o nome do advogado e investiguei.
O café chegou. A garçonete colocou-o diante da Sra. Traynor, mas ela pareceu nem notar.
— Mais alguma coisa? — perguntou a garçonete.
— Não, obrigada.
— A sugestão do dia é bolo de cenoura. Feito aqui mesmo. Com um delicioso recheio de creme...
— Não— disse a Sra. Traynor, ríspida. — Obrigada.
A moça ficou ali por tempo
suficiente para nos mostrar que ficou ofendida e então se retirou, seu
bloco balançando visivelmente em uma das mãos.
— Desculpe — disse eu. — Você tinha
dito que eu deveria avisar tudo o que fosse importante. Passei metade da
noite acordada, pensando se deveria contar ou não.
O rosto dela parecia lívido.
Eu sabia como ela se sentia.
— Como ele está? Você... você teve outras ideias? Passeios?
— Ele não dá a mínima. — Contei a ela sobre Paris e sobre a gama de coisas que eu tinha compilado.
À medida que eu falava, podia ver, diante de mim, sua mente trabalhando, calculando, avaliando.
— Qualquer lugar — disse ela. — Eu
pago. A viagem que você quiser. Pago para você. Para Nathan. Apenas
veja... veja se você consegue convencê-lo a ir.
Fiz que sim com a cabeça.
— Se há algo em que conseguir
pensar... só para ganharmos mais tempo. Pagarei seu salário além dos
seis meses de contrato, claro.
— Isso... isso não é problema.
Terminamos os cafés em silêncio, as
duas perdidas em pensamentos. Enquanto a observava, disfarçadamente,
reparei que seu cabelo imaculadamente bem-cuidado estava agora salpicado
de fios brancos, os olhos tinham tantas olheiras quanto os meus.
Percebi que não me senti melhor por
ter contado a ela, por transferir minha preocupação para ela – mas que
escolha eu tinha? As apostas estavam aumentando a cada dia. O som do
relógio batendo duas horas pareceu tirá-la de um transe.
— Preciso voltar ao trabalho. Por
favor, avise-me sobre qualquer coisa em que você... em que você consiga
pensar, Louisa. É melhor que essas conversas sejam fora do anexo.
Levantei-me.
— Ah, a senhora vai precisar do meu
novo telefone. Acabo de me mudar. — Enquanto ela procurava uma caneta na
bolsa, acrescentei: — Mudei-me para a casa de Patrick... meu namorado.
Não sei por que essa notícia a deixou tão surpresa. Ela pareceu espantada, e me entregou a caneta.
— Não sabia que você tinha namorado.
— Não sabia que precisava lhe contar.
Ela se levantou, uma das mãos apoiada na mesa.
— Outro dia, Will comentou que... você poderia se mudar para o anexo. Nos fins de semana.
Rabisquei o telefone da casa de Patrick.
— Bem, achei que seria mais simples
para todo mundo se eu me mudasse para a casa de Patrick. — Entreguei a
ela o pedaço de papel com o telefone. — Mas não fica muito longe. É bem
ao lado da área industrial. Não vai atrapalhar minha carga horária. Nem a
minha pontualidade.
Ficamos paradas ali. A Sra. Traynor
parecia agitada, sua mão corria pelos cabelos, segurava a corrente no
pescoço. Por fim, como se não conseguisse se conter, ela falou sem
pensar:
— Teria doído muito esperar? Só umas poucas semanas?
— Como?
— Will... acho que Will gosta muito de você. — Ela mordeu o lábio. — Não sei... não sei como isso pode ajudar.
— Espere um pouco. Está insinuando que eu não deveria ter me mudado para a casa do meu namorado?
— Eu disse apenas que o momento não
foi o ideal. Will está num estado muito vulnerável. Estamos fazendo de
tudo para deixá-lo otimista... e você...
— Eu o quê? — Eu podia ver a garçonete nos observando, o bloco parado na mão. — Eu o quê? Ousei ter uma vida fora do trabalho?
Ela abaixou a voz.
— Estou fazendo tudo o que posso,
Louisa, para impedir essa... coisa. Sabe o que estamos enfrentando. E
estou apenas dizendo que eu preferiria, uma vez que Will gosta muito de
você, que você tivesse esperado mais um pouco para esfregar sua...
felicidade na cara dele.
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Senti meu rosto ficar vermelho e respirei fundo antes de falar de novo.
— Como ousa sugerir que eu poderia
fazer alguma coisa para magoar Will? Fiz de tudo — sibilei. — Fiz tudo
em que pude pensar. Dei ideias, levei-o para passear, conversei com ele,
li para ele, cuidei dele. — As últimas palavras explodiram do meu
peito. — Arrumei as coisas dele. Troquei o maldito cateter. Fiz ele rir.
Fiz mais do que a sua maldita família tinha feito.
A Sra. Traynor ficou paralisada. Empertigou-se, colocou a bolsa embaixo do braço.
— Acho que essa conversa provavelmente terminou, Srta. Clark.
— Sim. Sim, Sra. Traynor. Acho que ela provavelmente terminou.
Ela se virou e saiu rapidamente do café.
Quando a porta se fechou com uma batida, percebi que eu também tremia.
* * *
A conversa com a Sra. Traynor continuou me atormentando nos dias que se seguiram.
Eu continuava ouvindo suas palavras, a ideia de que eu estava esfregando a minha felicidade na cara dele.
Não achei que Will pudesse ser afetado por nada do que eu fizesse.
Quando ele pareceu ficar contrariado a respeito da minha decisão de me
mudar para o apartamento de Patrick, pensei que era porque ele não
gostava de Patrick, e não porque ele nutrisse qualquer sentimento por
mim. E, o que era mais importante: não acho que eu tenha parecido estar
especialmente feliz.
Em casa, eu não conseguia afastar
essa sensação de ansiedade. Era como se uma corrente de baixa tensão
passasse por mim e se alimentasse de tudo o que eu fazia.
Perguntei a Patrick:
— Será que moraríamos juntos se minha irmã não tivesse precisado do meu quarto?
Ele me olhou como se eu fosse
maluca. Inclinou-se para mim e me puxou para perto, dando um beijo no
alto da minha cabeça. Depois, olhou para baixo:
— Precisa usar esse pijama? Detesto você de pijama.
— É confortável.
— Parece uma roupa que a minha mãe usaria.
— Não vou usar corpete e cinta-liga toda noite só para agradá-lo. E você não respondeu a minha pergunta.
— Não sei. Talvez. Sim.
— Mas não estávamos falando sobre isso, estávamos?
— Lou, a maioria das pessoas vai
morar junto porque é mais sensato. Você pode amar alguém e ainda assim
ver as vantagens práticas e financeiras.
— Eu só... não quero que pense que eu forcei isso. Não quero me sentir como se tivesse forçado isso.
Ele suspirou e deitou-se de costas.
— Por que as mulheres têm sempre que
remoer as coisas até que elas virem um problema? Eu amo você, você me
ama, estamos juntos há quase sete anos e não tinha mais lugar na casa
dos seus pais. Na verdade, é bem simples.
Mas eu não sentia que era assim.
Parecia que eu estava vivendo uma coisa que não tinha tido a chance de planejar.
Naquela sexta-feira, choveu o dia
todo – uma chuva morna, pesada, como se estivéssemos nos trópicos,
fazendo os canos gorgolejarem e inclinando os arbustos floridos, como se
eles suplicassem. Will olhava pelas janelas como um cachorro impedido
de passear. Nathan chegou e saiu, com uma sacola plástica protegendo a
cabeça. Will assistiu a um documentário sobre pinguins, e depois disso,
enquanto ele ficava no computador, procurei me manter ocupada, para que
não precisássemos conversar. Notei que o mal-estar entre nós era
gritante e ficar no mesmo ambiente que ele o tempo todo só piorava a
situação.
Eu tinha, finalmente, entendido o
conforto que uma boa faxina oferecia. Espanava, limpava janelas e
trocava edredons. Estava sempre em um turbilhão de atividades. Nenhum
cisco de poeira me escapava, nenhuma marca de xícara fugia do meu exame
atento. Estava limpando as torneiras do banheiro, usando papel
absorvente da cozinha encharcado com vinagre (dica da minha mãe) quando
ouvi a cadeira de Will atrás de mim.
— O que está fazendo?
Eu estava debruçada na banheira. Não me virei.
— Estou tirando as manchas das suas torneiras.
Eu podia sentir o olhar dele.
— Repita — disse ele, depois de um momento.
— O quê?
— Repita.
Eu me endireitei.
— Por quê, está ouvindo mal? Estou tirando as manchas das suas torneiras.
— Não, só queria que você ouvisse o
que está dizendo. Não tem por que tirar as manchas das minhas torneiras,
Clark. Minha mãe não vai notar, eu não ligo e esse produto está fazendo
o banheiro feder como um restaurante de fish and chips. Além do mais, eu gostaria de sair.
Afastei um cacho de cabelo do rosto. Era verdade. O ar cheirava exatamente como um hadoque gigante.
— Vamos. Finalmente parou de chover.
Acabo de falar com meu pai. Ele disse que vai nos dar as chaves do
castelo após as cinco horas, quando todos os turistas vão embora.
Não gostei muito da ideia de
conversarmos educadamente durante um passeio pelos jardins do castelo.
Mas a ideia de sair do anexo era sedutora.
— Certo. Preciso de cinco minutos. Tenho que tirar o cheiro de vinagre das mãos.
* * *
A diferença entre a minha educação e
a de Will era que ele desfrutava daquilo que tinha de maneira leviana.
Quem foi educado como ele, com pais ricos, numa casa bacana, frequentou
boas escolas e ótimos restaurantes, como era o caso, é claro,
provavelmente tem a impressão de que as coisas boas se encaixam e que
você goza de uma posição naturalmente superior no mundo.
Will escapulira para os jardins
vazios do castelo a infância inteira, como ele mesmo me contou. O pai
deixava-o perambular pelo lugar, confiando em que ele não tocaria em
nada. Depois das cinco e meia da tarde, quando o último turista tinha
saído, os jardineiros começavam a podar e arrumar as plantas, os
faxineiros esvaziavam as latas de lixo e varriam as caixas de bebidas
vazias e as embalagens de bala toffee, e então o lugar todo se
transformava em seu parque de diversões particular. Quando me contou
isso, pensei que, se Treena e eu tivéssemos tido a liberdade do castelo
só para nós, ficaríamos incrédulas, dando socos no ar e girando por todo
lado.
— Meu primeiro beijo em uma garota
foi na frente da ponte levadiça — disse ele, diminuindo a marcha da
cadeira para olhar a tal ponte à medida que percorríamos a trilha de
cascalho.
— Você disse a ela que este lugar era seu?
— Não. Talvez devesse ter dito. Ela me trocou pelo garoto que trabalhava no minimercado uma semana depois.
Virei-me e olhei para ele, chocada.
— Terry Rowlands? Um garoto de cabelo preto comprido, tatuagens nos cotovelos?
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Ele mesmo.
— Ele ainda trabalha lá, sabe. No minimercado. Se isso o faz se sentir melhor.
— Acho que ele não vai sentir muita inveja de como fiquei — disse Will, e parou de falar novamente.
Era estranho ver o castelo daquele
jeito, em silêncio, nós dois sendo os únicos ali, além do solitário
jardineiro, ao longe. Em vez de olhar os turistas, de me distrair com os
sotaques e suas vidas estrangeiras, eu me peguei olhando para o castelo
talvez pela primeira vez e comecei a assimilar um pouco da história
daquele lugar. Seus muros de pedra estavam ali havia mais de oitocentos
anos. Ali tinha nascido e morrido gente, corações tinham se enchido de
paixão e se partido. Agora, no silêncio, você quase pode ouvir a voz
deles, seus passos na trilha.
— Muito bem, hora da confissão — comecei. — Você nunca andou por aqui e fez de conta que era um príncipe guerreiro?
Will me olhou de esguelha.
— Sinceramente?
— Claro.
— Sim. Uma vez, até peguei uma das
espadas que ficam na parede do Grande Salão. Pesava uma tonelada. Lembro
que fiquei apavorado de não conseguir erguê-la para colocá-la de volta
no suporte.
Estávamos no alto da colina e, de
lá, na frente do fosso, víamos a longa extensão do gramado até o muro em
ruínas que demarcava o limite da propriedade. Depois dele se estendia a
cidade, os anúncios em néon e as filas do trânsito, a agitação que
caracterizava a hora do rush na pequena cidade. Ali no alto, havia
silêncio, exceto pelos pássaros e o suave zumbido da cadeira de Will.
Ele parou a cadeira por um momento e girou-a para olharmos para o gramado.
— Estranho nunca termos nos encontrado — disse ele. — Quando eu era menino, quero dizer. Nossos caminhos devem ter se cruzado.
— Por quê? Não frequentávamos os
mesmos círculos. E eu devo ter sido o bebê que passou no carrinho
enquanto você empunhava a espada.
— Ah, esqueci... eu sou definitivamente um ancião se comparado a você.
— Oito anos certamente o qualificam
como alguém “mais velho” — respondi. — Mesmo quando eu era adolescente,
meu pai jamais me deixaria sair com um homem mais velho.
— Nem se ele tivesse seu próprio castelo?
— Bom, isso poderia mudar as coisas, obviamente.
O doce aroma da grama se erguia ao
nosso redor à medida em que caminhávamos, a cadeira de Will sibilando
pelas poças do caminho. Senti um alívio. Nossa conversa não era a mesma
de sempre, mas talvez fosse de se esperar. A Sra. Traynor tinha razão –
devia ser sempre difícil para Will ver as outras pessoas seguindo com
sua vida. Fiz uma observação mental para me lembrar de pensar com mais
cuidado sobre como minhas atitudes poderiam impactar a vida dele. Não
queria mais me irritar.
— Vamos percorrer o labirinto. Não faço isso há séculos.
Fui arrancada dos meus pensamentos.
— Ah. Não, obrigada. — Dei uma olhada, notando de repente onde estávamos.
— Por quê? Tem medo de se perder?
Vamos lá, Clark. Será um desafio para você. Veja se consegue decorar o
caminho de ida, então, depois, é só fazer o caminho contrário para
voltar. Vou cronometrar seu tempo. Eu sempre fazia isso.
Lancei um olhar para trás, em direção à casa.
— Eu realmente prefiro não ir. — Só de pensar naquilo, fiquei com um nó no estômago.
— Ah. Mantendo-se na zona de conforto de novo.
— Não é isso.
— Está bem. Faremos nossa caminhada chata e voltaremos para o pequeno anexo chato.
Sei que ele estava brincando. Mas alguma coisa em seu tom realmente me pegou.
Pensei em Deirdre no ônibus, o
comentário de como era bom que uma das filhas ficasse em casa. Eu estava
destinada a ter uma vidinha, minhas ambições eram insignificantes.
Dei uma olhada no labirinto com suas
escuras e densas sebes bem-aparadas. Eu estava sendo ridícula. Talvez
estivesse me comportando de forma ridícula havia anos.
Afinal, tudo aquilo tinha acabado. E eu estava seguindo em frente.
— Basta se lembrar de cada lado que
você escolher, depois fazer o caminho inverso para sair. Não é tão
difícil quanto parece. De verdade.
Deixei-o ali na trilha antes que eu
pudesse pensar sobre aquilo. Respirei fundo e entrei, passando pela
placa que avisava “Proibido a crianças desacompanhadas”, caminhando
rapidamente por entre as sebes escuras e úmidas, que ainda brilhavam com
as gotas de chuva.
Não é tão ruim, não é tão ruim, peguei a mim mesma murmurando. São só uma porção de velhas sebes. Virei
à direita, depois à esquerda, por um buraco na sebe. Outra vez à
direita, à esquerda e, enquanto ia em frente, ensaiava na cabeça o
caminho da volta, pensando por onde eu havia passado. Direita. Esquerda.
Direita. Esquerda.
Meu batimento cardíaco começou a
aumentar um pouco, por isso eu conseguia ouvir o bombear do sangue em
meus ouvidos. Forcei-me a pensar em Will do outro lado da sebe, olhando o
relógio. Era só uma prova boba. Eu não era mais aquela garota ingênua.
Tinha vinte e sete anos. Morava com o namorado. Tinha um trabalho de
responsabilidade. Era outra pessoa.
Virei, segui direto e virei de novo.
E então, saído praticamente do nada,
o pânico me invadiu como fel. Achei que tinha um homem andando rápido
em minha direção no fim da sebe. Embora eu tenha dito a mim mesma que
era só minha imaginação, ter me concentrado para me tranquilizar me fez
esquecer as instruções para o caminho de volta. Direita. Esquerda.
Buraco. Direita. Direita? Eu tinha pegado o caminho errado ali? O
ar ficou preso na minha garganta. Eu me obriguei a seguir em frente,
apenas para perceber que havia perdido completamente meu senso de
orientação. Parei e olhei ao redor, na direção das sombras, tentando
descobrir para que lado ficava o oeste.
E fiquei ali até concluir que não
podia fazer aquilo. Não podia continuar. Eu me virei rapidamente e
comecei a andar para onde achei que era o sul. Eu ia conseguir sair.
Tinha vinte e sete anos. O que era
ótimo. Mas então, ouvi a voz deles, os risos de zombaria. Vi-os,
entrando e saindo dos vãos das sebes rapidamente, senti meus pés
balançarem como pés de bêbado nos meus saltos, o inesquecível espetar da
sebe quando caí em cima dela, tentando me equilibrar.
— Quero sair já — disse a eles, com voz pastosa e insegura. — Chega.
Todos tinham sumido. O labirinto
estava silencioso, havia apenas os sussurros distantes que poderia ser
deles do outro lado da sebe – ou poderia ser o vento deslocando as
folhas.
— Quero sair já — eu tinha dito, minha voz soando insegura até mesmo para mim.
Eu tinha lançado um olhar para o
céu, fiquei meio desequilibrada devido ao enorme e escuro espaço acima
de mim. E então tinha pulado quando alguém me agarrou pela cintura – o
de cabelos escuros. Aquele que tinha ido à África.
— Não pode ir ainda — disse ele. — Vai estragar a brincadeira.
Eu soube, então, só pelo toque de
sua mão em minha cintura. Percebi que alguma coisa tinha mudado, que
algum tipo de limite tinha começado a evaporar. E ri, empurrada por suas
mãos como se fosse uma brincadeira, não querendo que ele soubesse que
eu sabia. Eu o ouvi gritar por seus amigos. E escapei dele, correndo de
repente, lutando para tentar achar a saída, os pés afundando na grama
úmida. Eu escutava todos eles ao me redor, suas vozes elevadas, seus
corpos escondidos, e senti minha garganta se apertar de pânico. Estava
desorientada demais para me localizar. As sebes altas continuaram
balançando, me espetando. Continuei em frente, virando nas esquinas,
tropeçando, olhando esquivamente pelas frestas, tentando me afastar da
voz deles. Mas a saída não chegava. Para todo canto que eu virava, havia
mais uma extensão de sebe, outra voz zombeteira.
Tropecei numa fresta, exultante por um momento porque estava perto da liberdade.
Mas então eu vi que estava de volta
ao centro do labirinto, outra vez no lugar onde tinha começado. Eu me
encolhi ao vê-los todos parados ali, como se estivem simplesmente à
minha espera.
— Aí está você — disse um deles, e
sua mão agarrou meu braço. — Eu disse que ela estava pronta para isso.
Venha, Lou-Lou, me dê um beijo e eu mostro a saída. — A voz era suave e
arrastada.
— Dê um beijo em todos nós e todos nós mostraremos a saída.
A cara deles era um borrão.
— Só quero... só quero que vocês...
— Ora, Lou. Você gosta de mim, não gosta? Passou a tarde toda sentada no meu colo. Um beijo. Custa muito fazer isso?
Ouvi um risinho abafado.
— E você mostra como eu saio daqui? — Minha voz soava patética até para mim.
— Só um beijo. — Ele se aproximou.
Senti sua boca na minha, uma mão apertando minha coxa.
Ele se afastou e ouvi o curso de sua respiração mudar.
— Agora é a vez de Jake.
Não sei o que eu disse então. Alguém
segurou meu braço. Ouvi a risada, senti uma mão nos meus cabelos, outra
boca na minha, insistente, invasiva e então...
— Will...
Eu estava soluçando agora, encolhida.
— Will.
Eu estava dizendo seu nome várias
vezes, minha voz falhava, vindo de algum lugar do meu peito. Ouvi-o num
lugar distante, do outro lado da cerca.
— Louisa? Louisa, onde você está? Qual o problema?
Eu estava no canto, o mais embaixo
da sebe que consegui. As lágrimas nublavam meus olhos, eu apertava os
braços firmemente ao meu redor. Não conseguia sair. Ficaria presa ali
para sempre. Ninguém iria me achar.
— Will...
— Onde você...?
E ali estava ele, na minha frente.
— Desculpe. — Olhei para ele com o rosto contraído. — Desculpe. Não consigo... fazer isso...
Will moveu seu braço alguns centímetros, o máximo que conseguia.
— Ah, meu Deus, o quê...? Venha cá,
Clark. — Ele se adiantou, depois olhou para o braço, frustrado. —
Porcaria inútil... Está tudo bem. Apenas respire. Venha cá. Apenas
respire. Devagar.
Sequei os olhos. Ao vê-lo, o pânico começou a diminuir. Levantei-me, insegura, tentei recompor meu rosto.
— Desculpe... não sei o que houve.
— Você tem claustrofobia? — O rosto
dele, a centímetros do meu, estava cheio de preocupação. — Vi que você
não queria. Eu só... eu só pensei que você estava sendo...
Fechei os olhos.
— Eu só quero ir embora agora.
— Segure a minha mão. Vamos sair.
Ele me tirou de lá em minutos.
Conhecia o labirinto pelo avesso, ele disse enquanto caminhávamos, sua
voz calma, confiante. Fora um desafio para ele, quando era menino,
aprender a sair dali. Entrelacei meus dedos nos dele e senti o calor de
sua mão como algo reconfortante. Eu me senti idiota quando percebi que, o
tempo todo, estava muito perto da entrada.
Paramos num banco do lado de fora e
procurei por um lenço na parte de trás da cadeira. Ficamos lá em
silêncio, eu na ponta do banco ao lado dele, nós dois esperando que os
meus soluços diminuíssem.
Ele ficou ali, lançando olhares de soslaio para mim.
— Então...? — perguntou, por fim, quando pareceu que eu poderia falar sem desmoronar outra vez. — Pode me dizer o que houve?
Torci o lenço nas mãos.
— Não consigo.
Ele fechou a boca.
Engoli em seco.
— Não foi você — disse eu,
apressada. — Não contei a ninguém... É... é bobagem. E faz muito tempo.
Não pensei que... que eu fosse...
Senti seus olhos sobre mim, mas eu
queria que ele não me olhasse. Minhas mãos não paravam de tremer e meu
estômago parecia estar amarrado por um milhão de nós.
Balancei a cabeça, tentando dizer
que havia coisas que eu não podia contar. Queria segurar na mão dele
outra vez, mas achava que não devia. Estava ciente do seu olhar, quase
podia ouvir suas perguntas não feitas.
Atrás de nós, dois carros tinham
parado perto dos portões. Duas pessoas saltaram dos carros – dali, era
impossível ver quem – e se abraçaram. Ficaram assim um tempo, talvez
conversando, depois entraram de novo em seus carros e foram embora em
direções opostas. Eu as observei, mas não conseguia pensar. Minha mente
parecia congelada. Não sabia mais o que dizer sobre nada.
— Certo. Escute uma coisa — Will
falou, por fim. Virei-me, mas ele não estava olhando para mim. — Vou
contar uma coisa que não conto a ninguém. Certo?
— Certo. — Apertei o lenço na mão, fazendo dele uma bola, à espera.
Ele respirou fundo.
— Tenho muito, muito medo de como as
coisas vão ficar. — Deixou a frase se assentar no ar entre nós e,
então, em voz baixa e calma, continuou. — Sei que a maioria das pessoas
acha que viver como eu é a pior coisa que pode acontecer. Mas poderia
ser pior. Eu poderia não conseguir respirar sozinho, poderia não falar.
Poderia ter problemas circulatórios que me obrigariam a amputar braços e
pernas. Poderia viver hospitalizado indefinidamente. Isso não é lá uma
vida, Clark. Mas quando penso em como poderia ser pior... há noites em
que me deito na cama e realmente não consigo respirar.
Engoliu em seco.
— E sabe o quê? Ninguém quer ouvir
esse tipo de coisa. Ninguém quer ouvir você falar que está com medo, ou
com dor, ou apavorado com a possibilidade de morrer por causa de alguma
infecção aleatória e estúpida. Ninguém quer ouvir sobre como é saber que
você nunca mais fará sexo, nunca mais comerá algo que você mesmo
preparou, nunca vai segurar seu próprio filho nos braços. Ninguém quer
saber que às vezes me sinto tão claustrofóbico estando nesta cadeira que
tenho vontade de gritar feito louco só de pensar em passar mais um dia
assim. Minha mãe está por um fio e não me perdoa por ainda amar meu pai.
Minha irmã se ressente pelo fato de que, mais uma vez, eu fiz sombra
para ela – e porque minhas lesões significam que ela não pode me odiar
propriamente, como ela faz desde que éramos pequenos. Meu pai só quer
que tudo isso acabe. Nos últimos tempos, eles só querem ver o lado
positivo. Precisam que eu também veja.
Ele parou.
— Precisam acreditar que existe um lado positivo.
Fechei os olhos no escuro.
— Eu também faço isso? — perguntei, baixo.
— Você, Clark — ele olhou para as mãos — é a única pessoa com quem eu sinto que posso falar desde que eu acabei nesta porcaria.
E então eu contei para ele.
Segurei a mão dele, a mesma que
tinha me tirado do labirinto, olhei diretamente para meus pés, e
respirei fundo e contei a ele sobre aquela noite toda, e sobre como eles
riram de mim e zombaram de como eu estava bêbada e chapada, e como eu
desmaiei e depois minha irmã disse que na verdade isso tinha sido até
bom, não me lembrar de tudo o que eles fizeram, mas como aquela meia
hora de desconhecimento me assombrava desde então. Eu a completei, sabe. Eu a completei com as risadas, o corpo deles e as palavras deles. Eu a completei com a minha humilhação.
Contei a ele como eu via o rosto deles sempre que ia a qualquer lugar
fora da cidade, e como Patrick e meus pais e a minha vidinha tinham
bastado para mim, com todos os seus problemas e limitações. Eles tinham
feito eu me sentir segura.
Quando terminamos a conversa, o céu tinha escurecido e havia quatorze mensagens no meu celular perguntando onde estávamos.
— Você não precisa que eu lhe diga que a culpa não foi sua — garantiu ele, calmo.
Acima de nós, o céu tinha se tornado infindável e infinito.
Torci o lenço nas mãos.
— É. Bom. Ainda me sinto... responsável. Bebi demais para me exibir. Fui muito oferecida. Fui...
— Não. Eles foram os responsáveis.
Ninguém nunca tinha me dito aquilo com todas as letras. Mesmo o olhar solidário de Treena sustentava uma acusação tácita. Bom, se você fica bêbada e age como boba com homens que não conhece...
Seus dedos apertaram os meus. Um gesto vago, mas que era real.
— Louisa. Não foi sua culpa.
Então eu chorei. Sem soluçar desta
vez. As lágrimas saíam em silêncio e me diziam que mais alguma coisa
estava me deixando. Culpa. Medo. E algumas outras coisas para as quais
eu ainda não tinha encontrado nomes. Encostei minha cabeça de leve no
ombro dele e ele inclinou a dele até que estivesse repousada sobre a
minha.
— Certo. Está me ouvindo?
Murmurei um sim.
— Então vou dizer uma coisa boa —
anunciou ele, e esperou, como se quisesse ter certeza de que tinha minha
atenção. — Alguns erros... apenas têm consequências maiores que outros.
Mas você não precisa deixar que aquela noite seja aquilo que define
quem você é.
Senti a cabeça dele balançar contra a minha.
— Você, Clark, tem a escolha de não deixar isso acontecer.
O suspiro que saiu de mim então foi
longo e trêmulo. Ficamos lá em silêncio, deixando que as palavras dele
afundassem. Eu poderia ter ficado ali a noite inteira, acima do resto do
mundo, o calor da mão de Will na minha, sentindo que o pior começava a
escoar devagar de dentro de mim.
— Melhor voltarmos para casa — disse ele. — Antes que eles chamem uma equipe de buscas.
Soltei a mão dele e me levantei, meio relutante, sentindo a brisa fria em minha pele.
Então, quase num gesto de luxúria,
estiquei os braços acima de minha cabeça. Deixei que meus dedos se
esticassem no ar da noite, a tensão de semanas, meses, talvez anos,
diminuindo um pouco, e deixei sair uma grande expiração.
Abaixo de mim, as luzes da cidade piscavam, um círculo de luz no meio da escuridão do campo entre nós. Virei-me para ele.
— Will?
— Sim?
Eu mal conseguia vê-lo na luz fraca, mas sabia que estava me olhando.
— Obrigada. Obrigada por ir me buscar.
Ele balançou a cabeça e levou a cadeira de volta para a trilha.
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