sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Capítulo 10 - Como eu era antes de você

Os Traynor ficaram meio surpresos. Na verdade, surpresos é pouco. A Sra. Traynor ficou pasma, depois um pouco desconcertada, e então fechou a cara. A filha, enroscada ao lado dela no sofá, olhou para mim furiosa, da mesma forma que mamãe fazia quando mandava eu não me mexer nem se o vento mudasse.
Não era exatamente a reação entusiasmada que eu esperava.
— Mas o que você quer fazer exatamente?
— Ainda não sei. Minha irmã é boa em pesquisa. Está tentando descobrir quais programas são possíveis para tetraplégicos. Mas o que eu realmente queria saber era se vocês gostariam de ir junto.
Estávamos na sala de visitas. A mesma sala onde fui entrevistada, só que dessa vez a Sra. Traynor e a filha se encarapitavam no sofá, com o velho e baboso cão entre elas. O Sr. Traynor estava ao lado da lareira. Eu usava minha jaqueta jeans estilo camponês francês, um minivestido e coturnos. Pensando melhor, acho que podia ter escolhido um visual mais sério para expor meu plano.
— Deixe-me ver se entendi direito. — Camilla Traynor inclinou-se para a frente. — Você quer tirar Will de casa.
— Isso.
— E levá-lo numa série de “aventuras”.
Ela falou de um modo que fez parecer que eu estava sugerindo submetê-lo a uma cirurgia experimental.
— Sim. Como eu disse, ainda não sei o que é possível. Mas a proposta é sair com ele para ampliar seus horizontes. Primeiro, podíamos fazer algumas coisas por perto, depois, com sorte, iríamos mais longe.
— Você se refere a viajar para o exterior?
— Exterior...? — Pisquei. — Eu pensava em, quem sabe, levá-lo ao pub. Ou a um show, só para começar.
— Há dois anos Will só sai de casa para consultas no hospital.
— Bom, é... pensei em convencê-lo a fazer outras coisas.
— E você, claro, iria com ele em todas essas aventuras — concluiu Georgina Traynor.
— Olhe, não é nada de extraordinário. Estou falando apenas em tirá-lo de casa, para começar. Dar uma volta pelos arredores do castelo ou ir ao pub. Se acabarmos nadando com golfinhos na Flórida, ótimo. Mas, de verdade, eu só queria tirá-lo de casa um pouco e fazê-lo pensar em outras coisas.
Não acrescentei que só o pensamento de levá-lo ao hospital como única responsável ainda me dava calafrios. E pensar em levá-lo ao exterior, para mim, era o mesmo que participar de uma maratona.
— Acho uma ótima ideia — disse o Sr. Traynor. — Seria maravilhoso que Will passeasse por aí. Não pode ser bom para ele passar dia após dia olhando para quatro paredes.
— Tentamos sair com ele, Steven — disse a Sra. Traynor. — Não queríamos que ficasse mofando em casa. Tentei inúmeras vezes.
— Eu sei, querida, mas não deu muito certo, não é? Se Louisa está disposta a sugerir coisas que ele queira tentar, só pode ser algo bom, não acha?
— Bom, “disposta a sugerir” é a frase-chave.
— É só uma ideia — insisti. De repente, fiquei irritada. Sabia o que ela estava pensando. — Se vocês não quiserem...
— ...você vai embora? — ela olhava direto para mim.
Sustentei o olhar. Camilla Traynor não me assustava mais. Pois agora sabia que ela não era melhor do que eu. Era uma mulher capaz de sentar-se e deixar o filho morrer bem na sua frente.
— Sim, provavelmente irei.
— Então, isso é uma chantagem.
— Georgina!
— Bom, não vamos encobrir os fatos, papai.
Aprumei-me um pouco.
— Não, não é chantagem. É o que posso oferecer. Não posso ficar parada esperando até que... Will... bem. — Minha voz sumiu.
Cada um olhou para sua xícara de chá.
— Como eu disse — repetiu o Sr. Traynor, firme. — Acho que é uma ideia muito boa. Se conseguir convencer Will, não há mal nenhum. Adoraria que ele saísse de férias. Só... só diga o que precisamos fazer.
— Tive uma ideia. — A Sra. Traynor pôs a mão no ombro da filha. — Você poderia sair de férias com eles, Georgina.
— Acho ótimo — concordei. Achava mesmo. Pois a possibilidade de eu levar Will de férias era a mesma de competir no Mastermind.
Georgina Traynor mexeu-se desconfortável no sofá.
— Não posso. Você sabe que começo no novo emprego daqui a duas semanas. Não poderei voltar para a Inglaterra tão cedo.
— Você vai retornar para a Austrália?
— Não fique tão surpresa, mamãe. Eu disse que era apenas uma visita.
— Eu só achei que... considerando os últimos fatos, você fosse querer ficar um pouco mais. — Camilla Traynor olhava para a filha como jamais olhara para Will, por mais agressivo que ele fosse.
— É um emprego muito bom, mamãe. Eu corri atrás dele por dois anos. — Ela olhou para o pai. — Não posso colocar minha vida em suspenso por causa do estado psicológico de Will.
Fez-se um longo silêncio.
— Não é justo. Se eu estivesse numa cadeira de rodas, você pediria para Will mudar os planos dele?
A Sra. Traynor não olhou para a filha. Abaixei a cabeça e li e reli em silêncio o primeiro parágrafo da minha lista de sugestões.
— Eu também tenho uma vida, sabe. — A frase saiu como um protesto.
— Vamos discutir isso outra hora. — O Sr. Traynor colocou a mão no ombro da filha e o apertou de leve.
— É, vamos. — A Sra. Traynor mexeu nos papéis em seu colo. — Muito bem. Então proponho que façamos desta forma: quero saber tudo o que está planejando — disse, olhando para mim. — Quero saber os preços e, se possível, as datas para tentar conseguir uma folga e ir com vocês. Tenho alguns dias de férias que não tirei, posso...
— Não.
Todas nós viramos para o Sr. Traynor. Ele acarinhava a cabeça do cachorro com uma expressão simpática, mas sua voz era firme.
— Não. Acho que você não deve ir, Camilla. Will precisa fazer isso sozinho.
— Steven, ele não pode fazer isso sozinho. Ele precisa levar muitas coisas quando vai a qualquer lugar. É complicado. Acho que não podemos deixar por conta de...
— Não, querida — repetiu ele. — Nathan pode ajudar e Louisa consegue muito bem dar conta.
— Mas...
— Temos que deixar Will se sentir um adulto. O que será impossível com a mãe ou, quem sabe, a irmã sempre ao lado dele.
Senti uma súbita pena da Sra. Traynor. Ela continuava com aquela expressão altiva, mas eu podia ver que, no fundo, estava meio perdida, como se não entendesse muito bem o que o marido propunha. Segurou o colar.
— Posso garantir que ele vai ficar bem — disse. — E vou avisar com bastante antecedência tudo o que pretendemos fazer.
Ela mantinha a mandíbula tão rígida que um pequeno músculo pouco abaixo da maçã do rosto ficou visível. Fiquei me perguntando se ela me detestava.
— Também desejo que Will queira viver — acrescentei, por fim.
— Nós sabemos — disse o Sr. Traynor. — E agradecemos a sua determinação. E discrição.
Não entendi bem se isso era em relação a Will, ou a outra coisa completamente diferente; ele então se levantou e percebi que era um sinal para eu me retirar. Georgina e a mãe continuaram no sofá, caladas. Concluí que, assim que eu saísse da sala, eles continuariam a conversar sobre o assunto.
— Muito bem — concluí. — Mostrarei o plano a vocês depois de estruturar tudo na minha cabeça. Não demoro. Não temos muito...
O Sr. Traynor deu um tapinha no meu ombro.
— Eu sei. Basta nos avisar o que decidiu — disse.

* * *

Treena estava soprando as mãos para aquecê-las, seus pés se moviam para cima e para baixo involuntariamente, como se marchasse sem sair do lugar. Estava usando a minha boina verde-escura que ficava bem melhor nela do que em mim, o que era irritante. Ela se inclinou para a frente, apontou para uma lista que tinha acabado de tirar do bolso e me entregou.
— Pode ser que você precise excluir o Item 3, ou pelo menos esperar até a temperatura subir um pouco.
Olhei a lista.
— Basquete de tetraplégicos? Nem sei se ele gosta de basquete.
— Não importa. Puxa, aqui está muito frio. — Ela enfiou mais a boina na cabeça. — O importante é que ele conheça as possibilidades que tem. Que há outras pessoas na mesma situação, que praticam esportes e fazem coisas.
— Não sei. Ele não consegue nem segurar uma xícara. Esses jogadores devem ser paraplégicos. Não sei como podem jogar bola sem usar os braços.
— Você não está entendendo. Ele não precisa fazer nada, é só para abrir os horizontes, certo? Precisamos fazer com que ele veja o que os outros deficientes físicos estão fazendo.
— Vamos ver então.
A multidão soltou uma exclamação baixinha. Foi porque os atletas surgiram, a certa distância de nós. Se eu ficasse na ponta dos pés, podia vê-los no vale a uns três quilômetros, vários pontinhos brancos se mexendo, abrindo caminho no frio por uma estrada úmida e cinzenta. Olhei o relógio. Estávamos havia quarenta minutos ali na colina que recebera o nome bastante adequado de Windy Hill, e eu já não conseguia mais sentir os pés por causa do frio.
— Dei uma olhada nos eventos que vamos ter por aqui e, se você não quiser dirigir até muito longe, daqui a duas semanas haverá um jogo no centro esportivo. Ele pode até fazer uma aposta.
— Aposta?
— É, assim ele se envolve um pouco sem precisar jogar. Ah, olha, os atletas estão vindo. Quanto tempo acha que levam até chegar aqui?
Estávamos perto da linha de chegada. Acima de nós, uma faixa anunciava a “Linha de Chegada do Triatlo da Primavera” e ondulava com o vento frio.
— Não sei. Vinte minutos? Ou mais? Tenho uma barra de chocolate para emergências, caso queira dividir comigo. — Peguei-a no bolso. Era impossível segurar a lista de sugestões com uma mão só. — Então, o que mais você descobriu?
— Você disse que queria ir mais para o interior, não é? — Ela apontou para a minha mão. — Você ficou com o maior pedaço de chocolate.
— Então fique com este. Acho que a família de Will pensa que estou tirando proveito da situação.
— Por você querer sair com ele alguns míseros dias? Céus. Eles deviam agradecer por alguém fazer isso. Já que eles não se dão o trabalho.
Treena pegou o outro pedaço de chocolate.
— Enfim, acho que ele podia fazer o Item 5. Curso de informática. Eles prendem na cabeça da pessoa um aparelho que possui um bastão e com um gesto de cabeça é possível escrever no teclado. Há milhares de tetraplégicos na internet. Ele pode fazer muitos amigos. Ou seja, não vai ser necessário sair de casa sempre. Cheguei até a conversar com um casal na sala de bate-papo. Eles pareciam ótimos. Bem... — ela deu de ombros — ... normais.
Comemos nossas metades da barra de chocolate em silêncio, enquanto observávamos os pobres atletas se aproximarem. Não consegui ver Patrick. Nunca conseguia. Ele tinha aquele tipo de cara que some no meio da multidão.
Treena mostrou a anotação no papel.
— Olha, na parte cultural tem um concerto especial para deficientes físicos. Você disse que ele é culto, certo? Pois então, ele só precisa ficar lá sentado e se deixar levar pela música. Afinal, a finalidade da música é fazer com que você se desligue do mundo, não? Quem me disse isso foi Derek, o bigodudo do meu trabalho. Ele disse também que o concerto pode ser meio barulhento por causa de alguns deficientes, que às vezes gritam. Mas tenho certeza que mesmo assim Will vai gostar.
Franzi o nariz.
— Não sei, Treen...
— Você se assustou porque eu falei em “cultura”. Basta ficar sentada lá com ele. E nada de comer biscoitos crocantes. Mas se quiser um programa mais apimentado... — Ela abriu um enorme sorriso. — Tem um clube de striptease em Londres. Você podia ir com ele.
— Levar meu patrão a um show de striptease?
— Bom, você disse que faz tudo para ele... dá comida, limpa e tal. Não vejo problema em ficar ao lado dele enquanto tem uma ereção.
— Treena!
— Ele deve sentir falta. Você podia até pagar para uma stripper dançar no colo dele.
Várias pessoas no meio da multidão olharam para nós. Minha irmã ficou rindo. Ela falava de sexo desse jeito, como se fosse uma espécie de atividade recreativa. Como se não tivesse importância.
— Por outro lado, há também as viagens mais longas. Não sei o que você imaginou, mas podiam degustar vinhos no Vale do Loire... não é longe demais, para começar.
— Tetraplégicos ficam bêbados?
— Não sei, pergunte a ele.
Franzi o cenho olhando a lista.
— Então... digo aos Traynor que vou embebedar o filho tetraplégico com tendências suicidas, gastar o dinheiro deles com strippers e depois levá-lo aos Jogos Paraolímpicos...
Treena pegou a lista da minha mão.
— Bom, você não consegue sugerir nada mais inspirado.
— Eu pensei em... sei lá. — Cocei o nariz. — Na verdade, estou meio assustada. É difícil convencê-lo até a passear pelo jardim.
— Bom, você não pode ter medo. Ah, olhe, os atletas estão chegando. É melhor sorrirmos.
Abrimos caminho em meio à multidão e reforçamos a torcida. Tive dificuldade para fazer o barulho necessário, pois mal conseguia mexer os lábios de tanto frio.
Então vi Patrick, de cabeça baixa num mar de corpos concentrados, o rosto brilhando de suor, os tendões do pescoço esticados, a expressão de angústia como se estivesse sendo torturado. Esse mesmo rosto se iluminaria completamente assim que cruzasse a linha de chegada, como se precisasse mergulhar fundo dentro dele mesmo para chegar às alturas. Ele não me viu.
— Vai, Patrick! — gritei, a voz fraca.
E ele passou correndo rumo à linha de chegada.

* * *

Treena ficou dois dias sem falar comigo porque não fiquei tão entusiasmada com a lista de Coisas a Fazer, ao contrário do que ela esperava. Meus pais não notaram essa rusga, estavam felicíssimos por saber que eu continuaria no emprego. A diretoria da fábrica de móveis onde papai trabalhava tinha marcado várias reuniões com os funcionários para o final da semana e ele tinha certeza de que ia ser demitido. Ninguém conseguia ultrapassar a barreira dos quarenta anos.
— Somos muito gratos por sua ajuda aqui em casa, querida. — Mamãe repetiu isso tantas vezes que fiquei meio constrangida.
Foi uma semana engraçada. Treena começou a arrumar as malas para o curso e todos os dias eu ia dar uma olhada furtiva nas malas para descobrir quais coisas minhas ela estava pretendendo levar. Ela não surrupiou quase nenhuma roupa, mas consegui recuperar um secador de cabelo, meus óculos Prada falsos e minha nécessaire com estampa de limões. Se eu pedisse explicações, ela ia dar de ombros e dizer:
— Bom, você nunca usa essas coisas! — Como se isso bastasse.
Treena era assim. Ela achava que era seu direito. Mesmo depois de Thomas ter nascido, ela continuava se considerando a caçulinha da família e tinha o sentimento bem arraigado de que o mundo girava em torno dela. Quando éramos pequenas, ela ficava muito irritada quando queria uma coisa minha e mamãe pedia para eu “emprestar um pouquinho”, nem que fosse só para manter a paz no lar. Quase vinte anos depois, nada mudara. Tínhamos de cuidar de Thomas para Treena sair; dar comida a ele para Treena não se preocupar; comprar mais presentes de Natal e aniversário para ela já que “ela não pode comprar por causa de Thomas.” Bom, ela não precisava levar a minha maldita nécessaire com estampa de limões. Preguei um aviso na minha porta dizendo: “Minhas coisas são MINHAS. PARE COM ISSO.” Treena rasgou o aviso, reclamou com mamãe que eu era muito infantil e que o dedo mindinho de Thomas era mais maduro do que eu.
Mas isso me fez pensar. Uma noite, depois que Treena saiu para as aulas noturnas, eu me sentei na cozinha enquanto mamãe separava as camisas de papai para passar.
— Mãe...
— Sim, querida.
— Será que posso me mudar para o quarto de Treena quando ela for embora?
Mamãe parou, pressionando no peito uma camisa meio dobrada.
— Não sei. Não pensei nisso.
— Eu pensei que já que ela e Thomas estarão fora, é justo que eu tenha um quarto mais adequado. Não parece inteligente deixar o quarto vazio, se eles vão morar no campus.
Mamãe concordou com a cabeça e colocou com cuidado a camisa no cesto.
— Você tem razão.
— E, por direito, aquele quarto devia ser meu, já que sou a mais velha e tal. Ela só ficou com o quarto por causa de Thomas.
Mamãe reconheceu que fazia sentido.
— É verdade. Vou falar com Treena — disse.
Agora percebo que foi mais sensato da parte dela consultar a minha irmã primeiro. Três horas depois, Treena entrou furiosa na sala.
— O cadáver ainda nem esfriou e você já pula em cima da minha cova?
Vovô acordou assustado na cadeira e instintivamente pôs a mão no peito.
Tirei os olhos da TV.
— Do que você está falando?
— Onde você acha que Thomas e eu vamos passar os fins de semana? Não cabemos no quartinho. Lá não tem nem espaço para duas camas.
— Exatamente. E estou enclausurada lá há cinco anos. — Constatar que eu estava sempre em desvantagem me fez soar mais ofendida do que eu pretendia.
— Não pode ficar com o meu quarto. Não é justo.
— Você nem vai estar aqui!
— Mas preciso dele! Thomas e eu não cabemos no quartinho de jeito nenhum! Papai, explique isso a ela!
Papai afundou o queixo no colarinho e cruzou os braços. Detestava quando brigávamos e costumava deixar mamãe resolver a questão.
— Deixem isso para lá, meninas — falou.
Vovô balançou a cabeça como se não nos compreendesse. Nos últimos tempos, ele balançava muito a cabeça.
— Não dá para acreditar em você. Por isso estava tão disposta a me ajudar com a mudança — reclamou Treena.
— O quê? Então a sua insistência para que eu mantivesse meu emprego para ajudar você financeiramente faz parte de um plano sinistro meu?
— Você é tão falsa.
— Katrina, acalme-se. — Mamãe apareceu na porta, com as luvas de lavar louça pingando espuma no carpete da sala. — Podemos discutir isso civilizadamente. Não quero que incomodem o vovô.
Katrina ficou com o rosto vermelho, como acontecia quando era pequena e não conseguia o que queria.
— Na verdade, Louisa quer que eu saia daqui. É isso. Quer que eu vá logo porque está com inveja pois eu vou fazer alguma coisa da vida. Ela só quer tornar a minha volta para casa mais difícil.
— Ninguém sabe se você virá mesmo nos finais de semana — gritei. — Preciso de um quarto e não de um armário, e você ficou com o melhor quarto esse tempo todo só porque foi tão idiota a ponto de engravidar.
— Louisa! — ralhou mamãe.
— É, pois bem, se você não fosse tão burra a ponto de nem conseguir um bom emprego, podia ter sua maldita casa própria. Tem idade para isso. Ou será que finalmente percebeu que Patrick jamais se casará com você?
— Já chega! — papai rosnou. — Já ouvi demais! Treena, para a cozinha. Lou, sente-se e cale a boca. Já tenho problemas suficientes para ainda ter que aguentar vocês me azucrinando.
— Se acha que vou ajudar você com a sua lista idiota, está enganada — sibilou Treena para mim, enquanto mamãe a retirava da sala.
— Que bom. Eu não queria mesmo a sua ajuda, sua aproveitadora — falei, e me esquivei do exemplar da Radio Times que papai jogou em cima de mim.

* * *

No sábado de manhã, fui à biblioteca. Acho que não voltava lá desde que estava no colégio, certamente por medo de que lembrassem do livro de Jude Blume que perdi no segundo ano. Temia que, ao passar pelas colunas vitorianas da entrada, algum funcionário estendesse a mão grudenta para me cobrar as quatro libras de multa.
O local não era mais como eu me lembrava. Metade dos livros tinha sido substituída por CDs e DVDs, havia grandes prateleiras cheias de audiolivros e até de cartões de cumprimentos. E o lugar não era nada silencioso. O som de música e palmas vinha do setor dos livros infantis, onde alguma mãe com um grupo de bebês estava com a corda toda. As pessoas liam revistas e conversavam baixinho. A seção onde os mais velhos costumavam dormir em cima dos jornais gratuitos tinha sumido, substituída por uma grande mesa oval com computadores. Sentei, desajeitada, na frente de um deles, esperando que ninguém reparasse em mim. Computadores, assim como livros, são coisas que pertencem à minha irmã. Por sorte, os funcionários parecem prever o medo que pessoas como eu sentem. Um bibliotecário veio até a minha mesa e me entregou um cartão e um papel plastificado com as instruções. Ele não ficou atrás de mim, só me avisou, em um sussurro, que estaria à minha disposição caso eu precisasse de ajuda e me deixou sentada sozinha com meu estranho casaco de capuz e a tela em branco.
Há anos, o único computador que uso é o de Patrick. Ele só usa para baixar programas de ginástica ou comprar livros técnicos de esportes na Amazon. Se faz mais alguma outra coisa no computador, prefiro não saber. Mas obedeci a orientação do bibliotecário, segui cada passo e, por incrível que pareça, deu certo. Não só deu certo como achei fácil.
Quatro horas depois, eu tinha iniciado a minha lista.
E ninguém falou no livro de Judy Blume. Deve ter sido porque usei o cartão da minha irmã.
No caminho de volta para casa, parei na papelaria e comprei um calendário. Não daqueles que tem uma ilustração diferente a cada mês ou então uma linda foto do Justin Timberlake ou pôneis da montanha. Era um calendário de parede, daqueles que você coloca no escritório, com os feriados nacionais devidamente assinalados. Comprei-o com a eficiente rapidez de quem adora mergulhar em tarefas administrativas.
Abri o calendário no meu quartinho, pendurei-o atrás da porta e marquei o dia em que comecei a trabalhar nos Traynor, no início de fevereiro. Depois, contei os meses que faltavam e assinalei o dia doze de agosto, para o qual agora faltava apenas quatro meses.
Dei um passo para trás e fiquei olhando para ele por um tempo, tentando fazer com que a pequena marcação em preto evidenciasse um pouco do peso que tinha. E então percebi com o que eu estava lidando.
Eu tinha de preencher os pequenos retângulos brancos do calendário com um monte de coisas que pudessem causar felicidade, alegria, satisfação ou prazer. Tinha de preencher os dias com todas as experiências incríveis que um homem que não mexia os braços nem as pernas não podia mais realizar sozinho. Em apenas quatro meses de retângulos, eu marcaria passeios, viagens, visitas, almoços e concertos. Tinha de usar todos os meios práticos para realizar as atividades e pesquisar bastante para tudo dar certo.
Depois, teria de convencer Will a ir.
Olhei bem para o calendário, com a caneta na mão. Aquele pequeno pedaço de papel brilhoso passou a significar, de repente, uma grande responsabilidade.
Eu dispunha de cento e dezessete dias para convencer Will Traynor de que ele tinha motivos para viver.

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